quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Uma pétala no chão
O passado se deita ao solo
O vento não sopra

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Feelin' alright

Abra a porta, a porta não mente.
Abra a porta, alguém quer sair e alguém quer entrar.
Abra a porta, meu amigo, vamos carregar as compras.
Abra a porta, meu bem, eu bebi demais.
O olho que olha no olho mágico vê sem ser visto.
O olho que roda no meio da cara é algo meio místico.
Preciso de proteção anti-cáries.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Sabedoria do Tio Pedro

Paulinho é um cara estudado, chegou em casa e chorou.

O vento que se curve

Nada vai mudar meu mundo
é o mundo quem tem que mudar por mim
adaptar ou ceder
não
isso eu não faço
no meu mundo eu que mando
me mando
na ponta do laço
anotei um recado na ponta do nariz
evoluir é com vocês
eu já cheguei onde pretendia
por que eu deveria sair e procurar uma razão
 se a plantei bem aqui

o vento que se curve

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Sobre um olhar atravessado


Por sobre o muro, passa uma espiada envolta num disfarce que não a cobre totalmente: aquela pessoa me despreza, bastando, para isso, os poucos motivos que a dei. Não conhece meu nome, não sabe onde vivo, se vivo, não sabe do que gosto nem do que ouço; me viu, e isso bastou.
Não me é novidade. O cara vê a pessoa transformar a expressão num momento e seguir adiante andando, como se tudo não tivesse acontecido. Senti saudade disso, fazia mais de ano que não me deparava com isso, que antes era tão comum. Atribuo esse tratamento, numa percepção provavelmente grosseira, supostamente baseada no que sei, a minha aparência que volta a ser ofensiva para alguns, esses que agem do jeito que acabei de contar.
Quando cortei os cabelos, me surpreendia quando esperava ser olhado com desgosto por pessoas na rua e elas simplesmente não o faziam. Eu não fazia, então, parte de nenhuma minoria enviesada, estava tudo bem para eles.
Hoje pela manhã, caminhando contente por uma calçada, encontrei de novo este velho conhecido, aquele olhar neutro se transformando num esgar levemente indignado com alguém que se apresenta por aí de maneira tão ofensiva. Percebi isso e fiquei feliz, matei um pouco a saudade dessa sensação. Segui pensando na importância desse momento, dessa provocação cotidiana, sobre o que significa, num momento e num local onde as pessoas simplesmente não conseguem suportar ser ofendidas pelo que as outras falam, onde um comentário pode facilmente eclodir em um processo, onde as pessoas caçam e pretendem destruir, calar, suspender, invalidar, reprimir opiniões contrárias as suas crenças, bem, me sinto feliz por poder ofender as pessoas visualmente sem fazer esforço algum para isso. Me recolho na confortável posição de ser assim e nada mais, andando desgrenhado por onde quer que as calçadas me permitam.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Me conta...

De onde vem vocês?
De onde vem esse vento morno?
De onde vem os bebês?
Donde vem inspiração?
Me conta, humanoide,
onde tu quer chegar com essas pernas de pau

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Pode digitar tua senha


É pra levar?
Mais alguma coisa?
Pode digitar tua senha, pode dizer que eu anoto, pode informar o valor, pode creditar, pode sonegar, vale tudo ou vale cultura, vale de lágrimas, chora cavaco, vai danada, é marmelada, pode dizer, pode repetir, pode passar amanhã, passa gelol, passa fome, passa roupa, cai balão, cai no golpe, cai na farra, abre tuas asas, abre a porta, abre a porta, abre, abre, não deixa, não descuida, vê se te cuida, vê se te emenda, fez uma encomenda, anota na agenda, põe na conta do Abílio, pode por a tua senha, pode deixar, pode defenestrar, não pode demorar, não digere, não difere, não deixa passar, passa a manteiga, passa a dor, passarela, canela fina, véia grossa, ninguém atende, ninguém entende, ninguém se ofende, ninguém me pega, não pega ninguém, o ano que vem, que tem, tá aí, mas não dura, não doura, não duvida, não desliga, não desligatututututututututu tu pode botar tua senha, é crédito ou incrédulo, é uma mosca sem asa que ultrapassa a janela de nossa casa, não voa mas caminha, nada mas não morre, morre na praia, na praia de azametifo onde se empilham os cadáveres que a química sentenciou. Na atmosfera, os gases liberados pela combustão das folhas arrancadas do calendário. Na estufa, o efeito do carinho sobre uma planta que deixou de resmungar quando foi levada para dentro. O mundo gira, submerso no conhaque que preenche o copo para onde tudo converge.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Por acaso

Não por coincidência, Peixoto deu a Adolfo seu próprio nome. Seria divertido: pintar um pintor com seu nome, um velhote como ele sabia que um dia seria. Quem sabe uma espiada no futuro, uma brincadeira com o que havia por vir, coisa de artista.
Pensou que, se continuasse pintando até alcançar a idade do Adolfo do quadro, precisaria de umas paredes bem enormes e o velho chalé não serviria mais; pelo menos não sem alguma reforma.
Tentou fugir do excesso de pretensões, pintou Adolfo como sentia que deveria e pronto. Era um pintor, portanto pintava. Não por acaso, gostou do resultado. Pendurou o quadro no quartinho onde ninguém dormia, contente, e saiu. No final de semana foi a um festival de rock and roll; divertiu-se. Ficou alguns dias sem pintar e na terça-feira seguinte, pela manhã, bem cedinho, resolveu dar mais uma olhada nas suas obras. A primeira delas era a mais antiga, já fazia dois anos que a pintara; o primeiro quadro do qual havia realmente gostado, o seu preferido; uma moça bonita que parecia não olha-lo diretamente, como se estivesse preocupada em não se distrair com alguma coisa. Tentou acompanhar o olhar dela, ver o que ela via, sabia que daria em nada e viu, do outro lado do quarto, Adolfo segurando o pincel, mirando Sofia. Olhou de um para outro, deu um passo atrás, e soube que não havia sido uma coincidência. Enciumado, saiu dali e foi até a padaria. Na volta, passou no mercadinho da esquina e comprou uma garrafa de conhaque barato, onde, até onde sabia, um dia se afogaria.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Entre a Lixeira e Eu


Eu encontrei uma história no lixo. Mas não uma história impressa, nem datilografada ou manuscrita. Não era um livro, essa história ainda não estava num papel e o meu papel seria escrevê-la. Teria que escrevê-la, simples assim: cumpri minha tarefa de levar o lixo para fora e lá fora encontrei outra. É isso, a vida lá fora é cheia de encontros. E tarefas.
A história que encontrei é sobre um velho casal, um par que não se completa à primeira vista, que parece não combinar. Vi-os de relance, por obrigação, sem poder evitar, sem saber que estavam por ali até descobri-los num meio segundo de contato visual. Não foi difícil afugentar pensamentos de imediato mais profundos; estava atrasado e não poderia ficar por ali muito tempo. Mas enquanto seguia meu caminho, depois de ter fechado a tampa da lixeira, me permiti pensar um pouco nos instantes que antecederam a chegada deles àquele local onde os encontrei. Teriam sido levados pela mão, trazidos até ali por alguém que não os queria mais por perto?
O fato é que era um par peculiar, e somente as improbabilidades do destino, que ousamos supor não exisitir, bem, somente elas poderiam causar uma união deste tipo. Ele, um sapato preto feminino. Ela, uma sandália marrom masculina. Lá estavam, lado a lado, descartados juntos por alguma história confusa que levou a este suposto fim, que somente é um fim para quem os deixou por lá.
Enquanto eu caminhava, esperando chegar logo a um lugar onde pudesse anotar meus pensamentos sobre o caso, pensava no futuro que esse par teria e em como estavam condenados a serem separados assim que alguém que, como eu, abrisse a tampa da lixeira mas que, ao contrário de mim, tivesse pelo caso um interesse prático. Pensei, também, se em breve haveria alguém menos descalço por aí, talvez até, sem se importar, usando aqueles dois calçados, chamando atenção pela discordância entre eles, em tantos aspectos; um de homem, outro de mulher, e a pessoa caminhando meio torta pelo pequeno salto que o sapato preto tinha, mas tudo bem, quem sabe esse alguém que os encontrou e os quis, quem sabe tivesse uma perna um pouco maior e essa diferença fosse exatamente compensada pelo salto preto, quem sabe essa pessoa fosse metade mulher e metade homem e aqueles calçados representassem perfeitamente essa essência, quem sabe eles combinariam perfeitamente entre si, finalmente, com a roupa de tantos tons e costuras usada por aquela pessoa que os trouxe de volta a vida, nisso tudo penso lembrando daquele par, e pensando nele me recordo: eram dois pés esquerdos. Teriam que ser encontrados por alguém bem peculiar.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Os Dois Minutos de Ódio


O tempo é relativo: o dia tem 24 horas e mais de mil telejornais. Não me interessa como se escreve telejornal. Não me interessa. O tempo é uma farsa e o telejornal prevê o tempo. O tempo todo, prevê o ódio.
Prevejo um tempo em que não seja possível deixar de odiar, o que eu preferiria evitar. Somos rivais dos vizinhos, prega o comentário. Eles são diferentes, nós somos iguais. O joio e o trigo só queriam se enturmar, mas alguém pregou que isso não era permitido. Permitido mesmo é proibir.
O telejornal ficou pequeno e hoje é só mais um dos muitos veículos que servem para nos impulsionar. Há tempos que não ando por algum lugar em que consiga ficar muito tempo sem ver uma tela. As telas pulsam, pulsam os pulsos dos ouvintes que queimam lentamente em ódio. Dois minutos por hora, noventa batidas por minuto; e as doses aumentam. O telejornal e as outras telas concordam sem dizer que sim; contam histórias que só diferem no necessário. Por todo o lado, as telas nos cercam – estão entre nós; evitam que cheguemos uns aos outros, criando distâncias que não podemos saltar pelo peso do ódio com que nos carregam.
Entre as torcidas, uma grade suficientemente frágil isola as vontades de cada lado. Ela os conta que devem estar separados daqueles outros, aqueles de lá, que são adversários. E cada lado aprende essa lição em silêncio, queimando dois minutos por vez até estourar em ódio. Quando arrancam a grade de seu caminho, a motivação é destrutiva: em vez de unirem-se aos que diferiam, querem aniquilá-los, torná-los nulos e conseguir a unidade – mas não através da união. Foi assim que aprenderam: temer o distinto, odiar o que se teme, destruir o que se odeia. Sobre aprender, aprenderam muito pouco.
Bruxos e necromantes fazem parte da ficção. Rogam pragas, sugam almas, drenam vidas. Criaturas fantasiosas capazes de espalhar o mal entre as pessoas. Telas e telejornais não são fictícios, estão aí piscando de maneira odiosa, uma vez a cada dois minutos. Estão aí, mobilizando-nos uns contra os outros, criando facções extremistas em cada assunto que julguem que não deva ser ponderado racionalmente. Aqueles, os do lado de lá, dizem, eles estão errados, inimigos da verdade que são, e devem ser calados. Gritem, meus aliados, gritem alto para que os gritos dos outros não se ouçam, e se não for possível deixar de ouvi-los, calem-nos a pontapés, tudo será justificado pela veracidade da nossa causa.
As telas e os telejornais agem de uma forma que me faz odiá-los ardentemente; paro por dois minutos e percebo a armadilha. Recuo, me livrando do ódio, até uma posição que me permita tentar entender. Dois minutos depois, serei odiado por minha omissão, percebendo que a grade que separa os dois lados, entre os quais decidi escolher nenhum, ela é uma grade e não um muro exatamente para que eu não possa ficar sobre ela. Porque odiar é preciso.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Uma súplica pelos dias de hoje

E tu, viajante, não desconfia da tirania desses gigantes que te empurram contra as falésias? Tu não te perguntas: por que me sopram nessa direção? O que há de inimizade naqueles que tanto a mim se assemelham? Tu viajante, andando no trilho dos outros, não te surpreendas que não veja as paisagens que queres, que só conheça o mesmo ritmo dia-a-dia. Eles saúdam o seu próprio poder às custas de nós. Não somos inimigos por pensarmos diferente; arranque do mural o ódio que eles tanto pregam; não sou teu rival por não pensarmos igual. Pelo contrário e pelo bem, diria que isso possibilita uma boa conversa, cada um tem algo a dizer. Não deixe que te ensinem a não escutar. Pegue essas pedras que te deram e construa um abrigo; e quando a chuva for forte, me convide para entrar.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Songaripa


Havia, no vilarejo de Songaripa Nova, diziam os moradores, um homem que fazia milagres. Uns diziam que era pura bobagem, baita charlatão; outros que era o Messias, Cristo retornando para nos salvar. Viram-no andando na água, curando cegueiras, transformando vinho em água, entendendo mentes femininas. Cada coisa que diziam tornava mais difícil me fazer acreditar na história.
Resolvi conhecê-lo.
A única maneira de chegar em Songaripa Nova, durante o verão, era pegar o trem de Sacramento, onde eu me escondia na época, seguir até Sorrateiro do Sul, e de lá subir o morro no lombo de um jegue, a um preço ridículo de alto, ou alugar um jipe. Mas não tinha jipe para alugar. Foram catorze horas de trem, devia ter levado só onze. Mas a seca fode tudo. Inclusive, por causa dela não dava para simplesmente subir o rio em algum barco a motor, o que seria bem mais confortável que o jegue. Se eu quisesse conforto, não sairia de casa. Aliás, nem entraria naquela casa, aquele ninho de lagarto que foi o que eu consegui arranjar enquanto esperava a década passar.
Cheguei em Songaripa Nova, que tinha ouvido falar ser um lugar fedido e imundo, e vi que era mentira o que haviam me dito. Desinformação ou efeitos dos milagres, eu descobriria em breve. Fui acompanhado por um sujeito suficientemente simpático chamado Salvio. O filho mais velho dele, cuja diferença de idade para o pai pouco passava de uma adolescência, veio nos receber e levar a uma sombra onde os jegues ficariam e nós não. Eu prentendia ver de zero a um milagres e me mandar dali o quanto antes.
Esperava encontrar um homem barbudo, cara de profeta vestindo roupas largas, alto, esguio. Depois de tomar alguma água barrenta, comer uma fruta cujo nome jamais saberei recordar, fui apresentado a um rapaz chamado Jórbeson. O porqueira não passava de um metro e sessenta, tinha uma barriga de vermes ou de chope, não tinha cabelo, estaria nu não fosse por um shortinho ridículo da Umbro, atolado na bunda, e andava descalço. Primeira surpresa positiva: era uma simpatia só. Me recebeu com um sorriso caloroso, um abraço e me pediu que sentasse com ele, na sombra de um murinho branco que separava a pobreza da miséria. Sentamos numas cadeiras de palhas, seriam chamadas de rústicas na cidade, ali era: o que tinha. Eram boas.
A dor nas costas foi passando, ali o ar era fresco depois de ter parado um pouco quieto. Haviam dito ao Jórbeson que eu viera procurá-lo e ele se preparou para me receber – o que, depois, fui informado de que significava, entre outras coisas, vestir aquele short. Na presença de desconhecidos ele não andava pelado. Minha visita o deixara contente, disse-me. Disse a ele que estive curioso e quisera conhecê-lo o quanto antes, afinal Cristo não volta todo dia. “Ele nunca nos deixou, vive em nós”. Perguntei se, afinal, ele não era o próprio. “Não”; “E essa história dos milagres?”; “Eu nada fiz”; “E o que aconteceu?”; “Não sei dizer, as pessoas se deixam levar muito pela fé, o que é bom, mas tendem a relacionar a ela acontecimentos cuja explicação está muito mais perto do que pensam”. Sua eloquência me foi outra surpresa e me alegrou. Quando fui tirar os óculos para limpar o suor pela terceira vez, percebi que já não transpirava mais. Conversamos por mais uma hora ou menos, ele me contou sobre algumas aflições que ajudara a superar com um pouco de conversa, me disse o nome daquela fruta que depois eu esqueci outra vez, disse que torcia para o XV de Songaripa Velha e que morou lá até os dezesseis. Andara pelo país e veio parar ali, tão perto. Morava em Songaripa Nova há menos de dois meses mas já era amado por todos.
Comentei com ele que duvidei sobre os milagres desde o início, o que ele concordou ser sensato. Disse que um milagreiro não deixaria a região onde mora na seca, o rio morto e esquecido. Ele perguntou “Tem um rio aqui?” e eu expliquei que tem, quando resolve chover o suficiente, disse onde ficava. Supreendeu-se e me lembrou que morava ali fazia pouco e que chuva ainda não tinha visto.
Viu no dia seguinte, alguns pingos pela manhã. O pessoal festejou e eu, que pretendia passar apenas uma noite por lá, fiquei foi logo duas. Não passei fome, e me perguntei se alguém ali passava. Comi um pão muito bom no café da manhã; o almoço foi vegetariano, mas bastante farto. No meio da última tarde, quando me preparava para ir embora, sentia-me leve. Hoje, quem me acompanharia e ajudaria com os jegues era o Claito, o filho do Salvio que nos recebera no outro dia.
Despedi-me de Jórbeson, que agradeceu a visita e disse que eu deveria voltar em breve. “Certamente”, respondi pensando que um falso messias não leria a mentira em minha mente. Descemos até Sorrateiro do Sul sem percalços, tirando uma pancada de chuva que teria sido incômoda não fosse bem vinda.
Chegando na estação, vi que o pequeno prédio onde fui deixado pelo transporte animal tinha uma discreta placa que não havia notado antes, cuidadosamente pintada, onde se lia: “Jórbeson Transportes”. Ri enquanto ia até o banheiro da estação, vi que havia algum tempo antes do trem, entrei para dar uma mijada e lavar o rosto. Fui tirar o óculos e vi que não estava usando. Teria me olhado no espelho, caso houvesse, mas logo deixei a surpresa de lado e tentei lembrar onde o teria deixado, procurei na mochila, bolsos e nada. Puta que pariu, aquela armação linda que foi o último presente do meu único tio. Me dei conta, depois de algum tempo vagando perto da entrada do banheiro, que estava sem óculos o dia inteiro. Na verdade, não tinha usado no dia anterior, também. E lembrei do meu primeiro encontro com o Jórbeson, quando tirei os óculos e, bosta, foi ali, não coloquei de volta.
Logo pensei em voltar lá e buscar, mas, antes de chegar de novo ao aluguel de jegues, lembrei do compromisso que tinha assumido para dali a dois dias, onde seria padrinho de crisma do filho de um primo. Olhando para a placa, percebi que conseguia ler suficientemente bem. Testei ambos os olhos, que praticamente concordaram com o que viram. Fiquei mais tranquilo e resolvi deixar para subir o morro na semana seguinte.
Doze dias depois, numa terça-feira pela manhã, cheguei novamente à sede da Jórbeson transportes, onde havia um movimento intenso. Pensei em quanto lucro um profeta pode gerar e não fui capaz de condená-lo. Disse que queria uma condução para subir até Songaripa Nova e a atendente me perguntou se eu preferia ir de jegue ou fazer a volta subindo o rio. Surpreso, escolhi subir o rio, incapaz de perguntar se era séria esta opção. Partiria após o almoço. Partimos. No caminho, descobri que o condutor do barco era sogro do Salvio, o qual comentei que era um sujeito atencioso e que havia me atendido bem. Pouco importava minha opinão, percebi.
Cheguei novamente a Songaripa Nova pela tardinha. Fui recebido, naquele mesmo patiozinho murado, por um Jórbeson alegre e sem camisa, vestido apenas com uma bermuda preta de elástico, pés no chão. Disse “Sabia que voltavas”, ao que respondi que foi bom ter a desculpa de buscar o óculos, assim poderia vir até ali ter mais uns momentos de prosa. Nisso ele lembrou que havia guardado para mim meus óculos, pelo que lhe agradeci. Trouxe-me e logo os vesti. Estranhei. Tirei-os, olhei-os, reconheci-os pela armação. Comentei que não consegui enxergar direito com eles. “Estranho”, disse ele. Levemente perturbado, deitei-os em alguma mesinha e logo me entreti com alguma conversa. Afinal, era bom estar ali. Acabei ficando cinco dias, e por três deles consegui me lembrar o nome daquela fruta, que acabei esquecendo de novo. Chegando em Sorrateiro do Sul, me dei conta de que não foi a única coisa que esqueci. Li a placa da empresa de transportes, cada vez mais próspera, e percebi que a lia perfeitamente. Apenas uma coisa me faria voltar lá de novo: a armação.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Tentaria alcançar novamente a fronteira, caso houvesse alguma expectativa de êxito em tal intento

Árvores e telhas dançariam juntas se conhecessem os mesmos ritmos - não há motivos para brigar. Motivo talvez haja, razão não. Eu diria que seríamos bons amigos: tu, eu, aqueles que pisoteiam as calçadas que estendemos atrás de nós, aquele pessoal batendo papo ali debaixo da sombra.
Aqui na nossa terra não há pregadores de deserto, não há deserto, não tem nem trem que solte fumaça pelas ventas. Só nós, e nós cuspimos fogo quando preciso; mas não temos asa, nem andaimes, nem vagão. O desenho é inocente de seus traços: "eu sabia de nada". Hervé Joncour nada temia. Quem era Sofia, ele não sabia.
Acredite em mim quando eu disser: Oz nunca deu ao homem de lata algo que ele ainda não tivesse.
Me pergunto como se atrevem a descrever o invisível.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

*•*

Somente foi entre tropeços e solavancos que o senhor subiu a montanha. Pra quê? Pra sentir-se pequeno. Sucesso? Não sei... Não no calor do momento talvez. Era possível residir no início da escalada, no verdinho, pra não se cansar muito.
No processo do pequeno gesto não importava muita coisa. O que se pode fazer?
Quando sobram pessoas e faltam dedos para apontar, talvez a maneira certa seja outra.
Lá de cima o que se vê é o que se é. Somente quem senta no trono poderia ver adiante, e verá o que quiser ver. Ou estaria vendo somente o que o trono quisesse mostrar?
Se algo aconteceu é porque ainda não chegamos lá.
Ainda está incomodando o problema do outro. A sabedoria do espelho viaja longe em um Ba Chuan chinês, entre vários outros espelhos para todos os gostos e ao mesmo tempo nenhuma sabedoria.
Porque o que precisamos ver não é o que queremos ver e sim o que é.

Assim, depois de muito tempo, ao retornar da montanha, quase morrer de fome em um jejum sem precedentes, após a jovem camponesa o ajudar, após o barco passar e a corda do violão afinar, nem muito apertada e nem muito solta...

Nós lhe chamaremos Cygnus. O deus do equilíbrio você será.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Prova Real

Tu chega num resultado e faz a prova real pra saber se ele é verdadeiro. Na vida, não teríamos uma consulta depois das escolhas, nos dizendo se foram acertos. Ou sim. Nos dias que se enfileiram, sensações e percepções nos dão a resposta. Acertei hoje, errarei amanhã. Não que certo ou errado seja tão simples, até porque o que foi certo um dia pode ser errado em todos os outros, mas nessa transmutabilidade, portanto, reside a simplicidade - não há o que se analisar se a resposta é inobtível. O que não é o caso. Quando estou com ela, estou no lugar certo; me sinto feliz. Amor é a resposta.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Revestido de Xadrez


Dormia noites em claro num travesseiro de duras penas. Escolhia meias, escolhia um prato; para votar, um candidato; para escrever, nenhuma ideia. A duras penas desligava o cabo de força, quando a fraqueza tomava conta do corpo. Olhava os poetas, suas auras de mistério, envoltos em mantos que somente o tempo sabe tecer. Fechava os olhos e eles cantavam. Abria os olhos, eles sumiam até serem encontrados, por acaso, outra vez.
Cada dia era uma partida.
Contra si, dizia que não importava concordar, importava mesmo era a reflexão. Retratos, pedregulhos, uma colcha, um vestido. Não fez a cama, não fez um plano, não fez o tema, não fez amor, não fez faculdade, não fez de salame, não fez careta, não fez nem nada.
Nunca mais vi Jairo. A culpa dele e disso é minha, percebo sua ausência por pouco. Ele de repente vem me visitar e todas mágoas jamais existiram. Acolho-o, feliz por seu retorno e deixo-nos estar por um momento. Em breve ele volta para o seu canto. Poeta que é, cantará atrás das grades e um dia me darei conta novamente de que há tempos não o vejo.
Cada dia na vida é uma partida.
Bom mesmo é ter um segundo controle.

Desafilho


Desafiei a mim mesmo: deveria enfileirar palavras, ordenando-as de maneira que formassem sentido. Escrever. Desatinei pensar em um tema que as fileiras obecessem, tropas governadas pelo autor que um dia poderia ter sido. Desafinei no grito de pedido de socorro, não sei nadar, morrerei enforcado por uma gargantilha sem nome. Deixei pra lá, pra outra hora, quem sabe.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Diabos e Demônios

Eles não dão satisfações, não votam eleições, não praticam meditações, não vestem aos gibões; diabos e demônios gritam em diferentes línguas. No fim, somente querem uma coisa: o poder.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ventania

Por trás de corredores labirínticos, entre as janelas quebradas dos becos antagônicos, viradas surpreendentes em trajetórias imprevisíveis: ventava, inquieta, a calada noite. O surdo tiroteio do firmamento, na sua eterna ameaça de queda, anunciava acontecimentos inevitáveis para antes da aurora. Nada havia a dizer, e nada seria feito quanto a isso.

sábado, 30 de agosto de 2014

Por pouco

Tenho pensado pouco, escrito pouco, lido pouco. Tenho expressado pouco, tenho parado pouco para pensar em tudo. Me tornei alguém produtivo. Quando trabalho, trabalho. Deixei de ser um autor clandestino, porque tenho escrito pouco. Podei de mim a criatividade que poderia ter. Lendo textos publicados em 2012, percebo que já desempenhei melhor o papel. Todos nós, na verdade. Ando preocupado, ando distraído por outras necessidades da minha atenção. Perdi a coragem, revesti a sensibilidade que aprendi, outrora, a valorizar.
Vendi-me por pouco; por pouco, eu poderia ter sido outra pessoa; por pouco que me resta, ainda não me desintegrei por completo.
Céus, até me queixar sobre o tempo passado eu fazia melhor antigamente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Algo

Há algo nesse lance de viver, nesse jeito de atravessar pontes, andar entre os dias de um futuro sem promessas. Há algo que reluz em um sorriso, algo que se possa dizer de uma pessoa para outra, sem pretensões.
É muito bom ser quase ninguém. Pisotear calçadas sem se importar com a chegada, ver uma coruja nos galhos de uma árvore. Ser alguém só para quem tu quer. Escolher seguir as melhores regras, aquelas que nos servem. Não ser reconhecido. Não ser esquecido por gente que não pretendia te conhecer.
Há algo de doce naquela caixa de correio na casa sem cerca bem na frente da padaria mais simpática da cidade. Há uma cidade esperando, borbulhando, querendo nascer. Sim, nossos personagens querem vir à tona, querem ser atoa, ficar devarde.
Há todo amor em uma sensação que se perde e reencontra, acima das distrações, dos embustes e outras peripécias que os meios de tarde nos pregam; não existem pacotinhos, objetos que possam contê-lo. Esse advento chamado amor rodopia sob o sol, preenche as ruas, atropela os planos, explode cabeças, ocupa espaços. Sinto-o no ar, sinto em mim todo amor que pode existir no mundo, e o mundo vive por ele e a primavera vem chegando, como sempre, finalmente, amemos.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Papo de Surdo e Mudo

Diziam, que todo advento necessita uma proclamação.
Mas o advento daquele que não veio é um simples piscar de olhos, uma simples constatação. Graças ao Diabo. Isso, se relaxado e bem servido, de uma grande fatia do bolo místico que rege a consciência.
Do contrário, graças a Deus.
Afinal, graças a Deus, não tenho tempo para fazer o que eu gosto, ou o que eu quero e quando quero.
É graças a Ele, que não chego a conclusão nenhuma em função do pouco tempo que tenho para dedicar-me a mim mesmo, ou aos que gosto, naturalmente nem Ele nem o Outro entram nesse jogo astuto. Porque? Acho que porque não cabe. O que é parte não cabe ao todo.

Chuva.
E era uma chuva boa, mas não para limpar a imundície das ruas. Márcia dizia que quando se ficava em silêncio, havia um choque. Era um grande choque, as pessoas ficam chocadas com o que vêem quando realmente vêem. Só parecia um esgoto aberto na verdade, uma cegueira daqueles que podem ver.

Chuva.

Quinta-feira e um homem velho, bem sucedido, mas não na arte do bem estar, nem na arte de falar.

Ela tinha perguntado se o moço que o acompanhava era seu filho. Não. Não que ela já não soubesse a resposta, mas dizia respeito aos bons costumes e também a ser uma boa moça para  com os pacientes.
O filho dele, provavelmente estaria estudando medicina ou direito.
Media a pressão do senhor enquanto ele comentava azedo sobre estar chovendo.
Ele pedia sem ao menos falar, uma injeção para a alma. Pedia um remédio para a solidão. Trocaria suas roupas caras por um caro carinho.
E era caro, porque nesse caso ela não saberia dar. Poderia trocar por algo que ela quisesse, não sendo mais um carinho, afinal o que é dado não tem valor.

Estava quase suando. Pela janela embaçada, o movimento e o calor do lado de fora indicavam o humor da cidade.
Choveu mas não esfriou.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Nem tudo tem uma sigla


Agora que dei um recado a uma amigo, não tenho mais o que dizer. Mentira, tenho sim, só que ainda não sei o que é, e a forma de extrair as ideias, não, não são ideias, seriam, sei lá, pensamentos, sensações, percepções, tudo menos algo que se saiba nomear, enfim, a forma de extrair essas coisas que se diz num texto, ela ainda não é um processo documentado, como uma receita de bolo ou um manual de operação do seu amigão de plástico. Não. É algo como voar, existe todo um jeitinho para isso. Tu pega o papel em branco, ou a tela, ou o quadro negro, enfim, o que raios tu for usar pra escrever, tu encara aquele troço ali, sem coisa alguma, e não olha nele, tu não pensa nele, tu só faz com que ele deixe de estar em branco e, quando vê, tá ali, alguma coisa escrita, sabe-se lá o que queira dizer, na verdade tudo que a gente queria dizer era algo que explicasse o que a gente não consegue dizer, que vem a ser muita coisa, a imensa maioria, e como bom mesmo é ser minoria, a gente finge que sabe do que tá falando num charlatanismo mútuo: eu finjo que demonstro, tu finge que percebe. Conoto, discorro. De tudo um pouco; tudo menos algo que saiba se explicar. Quem faz o manual de instruções da máquina de lavar roupa, de lavar prego, qualquer máquina, que eu saiba não é ela mesma. E quem é esse cara que diz como se deve usar alguma coisa, se ele nem sabe usar a cabeça, a mão ou a orelha pra dizer o que ele pensa, que não vem nem a ser pensamento, porque o que ele pensa ele até entende, agora essa coisa que sai quando o cara resolve se expressar, o que é isso?, expressão?, isso eu não sei, nem ele, mas ele escreveu um manual, pelo menos não se atreveu a falar de si, e eu, de que ouso falar aqui, ah, Joe, é só sobre o tempo, que tá uma chuvinha boa demais, adoro essa época, o tempo passa e a chuva também, mas explicação, essa não vem, e nem precisa. Eu devia ter anotado o telefone do doutor.

Bitcho!


Houve uma época em que a chuva inspirava, em que as bétulas eram algo de que eu me lembrava. Eu sabia o que dizer entre um ponto e outro, numa palavra trocada por outra, na hora certa. Ouvia uma canção, lembrava de alguém, esquecia o assunto. Tropicava em frases que não esperava, silenciosamente me aproximando do fim de um parágrafo não planejado. Não era eu que escrevia. Talvez por isso eu não possa desaprender.
Meu amigo, deixa as palavras saírem, deixa que elas não são tuas, não é com elas que tens de lidar. Sobre pensar: nem pensar. Scataplam!

terça-feira, 22 de julho de 2014

mais Não escrever sabia.
No fim, se as luzes não se apagassem sozinhas, elas ficariam acesas.

Eco


Na mesma chuva que despertava um pássaro, um desenho se apagava na calçada. O pássaro decidiu subir na vida; o homem buscava reconhecimento. 
Sujeito oculto, pretérito mais-que-imperfeito, futuro insensato; suspeito de um crime imprevisto, foi reconhecido por um auto-retrato falado feito às cegas; não, não voltaríeis para o inferno. Cada lugar tem seu tempo, e sem o espaço o tempo não exisitiria. Encaro a tela em branco como quem encara a navalha do barbeiro. 
Arrastam-no solito ao xilindró, que cúmplices não havia. Culpado de não saber é condenado sozinho. E, não sabendo, apenas invento, imagino, seguindo adiante depois da vírgula, parando um pouco antes do ponto.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ás de Copas


Diferentes línguas falam diferentes palavras,
diferentes histórias variam entre bem e mal contadas
Sufoca um grito,
deixa escapar um gemido
desaba em suspiro na vontade de mudar a si mesmo, que vem e até vai
mas volta

Si bemol

Houve uma época sobre a qual eu falaria no final desta frase, mas ela passou.

Sobre refugos e resmungos

Me dei conta há pouco de que o processo que compreende o ciclo de escrita de textos é composto em forma de círculo. Mais ou menos como um cu.
Primeiro, se pensa em algo; segundo, se começa a escrever sobre o algo; terceiro, se perde o foco e muda de assunto; quinto, se se esquece de alguma coisa sobre o algo. Depois, a ordem não importa e as frases vareiam de tamanho, acabou-se de escrever errada uma palavra, ora até eu erro, chora cavaco, vai-se embora a prosa, porque da poesia não se tem notícias há tempos. Ah, há deus? Somente um, mas não é o mesmo para todos. Então ele teria várias facetas, pois cada um o enxerga de uma forma, tipo isso? Então ele é um duas-caras, é isso? Sendo um para cada um, seu tamanho, pressuposto pela quantidade de um's que tem por aí, acreditando nele mesmo contra todas as probabilidades, enfim, seu tamanho variaria de acordo com a quantidade de cada um's disponíveis para ter um dels, o que, aimeldeus, faz com que ele possa variar até o infinito, o que seria deveras divino, mas poderia cair a zero, o que seria diabólico. Há quem? Não, muito além, cidadão qual, tão jovial me sinto a saber que ainda falta muito tempo para que se chegue a uma conclusão sobre toda essa história, e nesse meio tempo, mas como que vai dividir tempo no meio!, é que nem dizer "meio eito", o eito é universal, assim como o universo é atemporal, assim como um temporal se avizinha com um propósito siniesto, oras, nesse tempo, então, que falta para se chegar a qualquer lugar, bem, eu posso procurar aprender se ali atrás eu devia ter usado próclise ou ênclise e, quem sabe, sair corrigindo as cagaditas desse tipo que eu venho deixando pra trás há tempos. Aliás, há tempo?

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Uop

A janela mostra um mundo mais escuro do que aquele que eu me recordo de ter deixado lá fora, tempos atrás, quando entrei aqui. Numa sala com muitas luzes, a minha mão tem várias sombras, umas mais fracas que as outras. A parte sobre a qual as lâmpadas concordam: "não a vemos", essa é a mais forte.
Falar em tempo é tão incerto... mas deixei para trás uma época em que era mais natural sentar aqui e me expressar. Nunca me tornei um especialista, desconfio que primeiro por conveniência e, depois, por concordar comigo mesmo.  É, foi escolha minha - mesmo que eu não a tenha feito a princípio, depois acabei por adotar; e pai é quem cria. Fico feliz por não ter, por isso, precisado deixar de lado algumas coisas, como quem abdica das escolas proibidas - e não como quem abdica de um toco; Ao contrário, pude deixar de lado tantas coisas quando quis, sendo não mago nem mestre, mas aprendiz universalista de uma escola em suspensão temporal por falta de conclusões práticas - a prática leva à confusão.
Mas isso também é bom; aprendi a não me deixar impressionar por aqueles que queimam cana com chuvas de meteoros. Em vez de criar fogo a partir de um nada, aprendi muito bem a não conseguir fazer funcionar um isqueiro.
Acumulo as funções de mago e escriba, mas escrever minhas memórias ainda é um processo mundano. Me incomoda, apenas, não lembrar onde guardei a pena e a tinta invisível.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Alcancei Godofredo com certa facilidade enquanto cruzávamos pátios acolhedores e surpreendentemente mais tranquilos. Ali não tínhamos pressa e era mais fácil caminhar sem ter que desviar das carcaças, dos pedintes e dos advogados que encontrávemos em ambientes passados.
Quando cheguei até ele, encontrava-se iracundo, pela falta de

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Talvez não vale a pena

Ela dizia que se o horário que deve cumprir, o trabalho que deve realizar, o trânsito que deve enfrentar ou a conversa que urge comunicar, ficar no caminho daquilo que considera o famoso "Bom Senso", havia algo errado com a sua ação.
Normalmente suas críticas e seus argumentos desviavam ao longe, os olhares raivosos e as aproximações latentes, odiosas, providas talvez daquilo que ela mesma falava, inclusive. O seu ato de fumar, beber e gastar dinheiro em coisas como festas.
Talvez o que escapasse fosse o fato de tudo o que ela fazia ser equilibrado. Fumava pouco, bebia pouco, e festejava pouco, em um estranho ciclo. Transava pouco inclusive.

Aí um cara se atira do último andar do prédio do Banco do Brasil. "Talvez não valha a pena trabalhar em um banco."Se a coisa ultrapassa o limite do "Bom Senso", é algo que talvez não valha a pena ser feito.
Existe tanta gente dizendo o que precisamos fazer, mas poucas nos dizendo para pensarmos por nós mesmos.
Existem pessoas que te perguntam: "O que é a felicidade?" Para logo em seguida 'combater' toda e qualquer resposta no melhor estilo Sebrae de ser.
Decididamente ela odiava as palavras 'chave'.

O ônibus ainda estava na Ipiranga. Era um dia de chuva e as pessoas se xingavam como nunca no trânsito.
As pessoas no sinal eram ignoradas como de costume. Ao menor sinal de aproximação o vidro do carro levantava, como se alguma coisa podre exalava seu cheiro, insuportável... Não sei mais o que é insuportável.
No banco vermelho e preferencial da frente, duas adolescentes, cada uma em uma bolha diferente. A maçã mordida em suas mãos, do grande gênio que mostrou ao mundo que o mundo precisava de fato de algo que não se precisava. Enquanto os velhos ficavam de pé olhando o horizonte nebuloso, e esperando o momento de sentar nos bancos destinados a eles.

Havia quem reclamasse de seu azedume, mas com certeza não seria o senhor que sentou em seu lugar quando ela se levantou.

O que vale a pena ser feito?

terça-feira, 1 de julho de 2014

O Feitiço


Era uma noite espelhada; as pedras das ruas e as calçadas refletiam a chuva que caía e não passava. Atrás de uma porta, ouvia-se gritos alegres e protestos inúteis.

Debaixo da ponte que levava à cidade alta, um guerreiro pede ao seu escudeiro que lhe traga sua espada larga e sua cruz de ouro. Numa batalha que deve ser decidida na força, poderá encontrar reforço na fé.
Um sinal e um amuleto o acompanham até a saída da cidade.

Longe dali, no terceiro andar de uma torre sem fim, um mago prepara um feitiço. Que caiam os cavaleiros; queimaremos as pontes. Sobre a estante cheia de poeira e tomos, um corvo observa com cara de corvo. O feitiço não tarda. O mago não se atrasa.

No segundo andar da torre vizinha, um escriba comete uma profecia e tenta esquecê-la: é tarde demais.

Amanhece na taverna. A umidade seca e as paredes se negam a cair por mais um dia; bebedeiras viram ressacas e os estupros resultarão em bastardos - ou não.

Num campo cinzento, a espada desce num golpe, a cruz de ouro cai; romperam-se a corrente, os vasos sanguíneos do guerreiro e a fé que ele ousava carregar em mais uma derrota.

O mago abre a porta e desce as escadas. Não usa amuletos. O corvo o acompanha num bater de asas vagaroso.

O escriba perece em meio às chamas em que tentou desfazer a profecia - que sobrevive: era tarde demais.

O mago chega ao pé da torre, caminha até a ponte que leva à cidade baixa. Apoia no chão o seu cajado e lança dali um feitiço que consome toda a terra que se estende até o horizonte. Sem esperar seu efeito, retorna até sua torre, tranca-se no terceiro andar, onde preparará um feitiço.

O dia desemboca numa noite chuvosa. Na taverna, mulheres fogem de homens que chovem da chuva, protestando em vão: é cedo demais. Uma batalha será perdida; nesta guerra que nunca acaba, jamais conheceremos o vencedor.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Vai sonhando

Que sonho. Que coisa.
Coisa alguma agora.
Ela olhou o celular. Ainda era noite, madrugada, horário de estar dormindo.
Tinha a impressão de ter tido uma paralisia do sono, como se alguém estivesse no quarto. Alucinações.
Na sua cabeça, pairava uma adorável música. Adorável, porém desesperada:
"All you maggots smokin' fags on Santa Monica boulevard..." Cantavam duas vozes.
Nesse momento Júlia curiosamente estava procurando o maço de cigarro. Desistiu.
Quando foi até a cozinha atrás de um copo d'água, percebeu que sua mãe teria um treco ao ver aquele apartamento. Ela diria que tudo estava fora de 'ordem'.
"Humpf. Como se houvesse uma regra..." pensou alto. O velho azedume se manifestando novamente.
Pegou o celular enquanto sentava no sofá. Havia uma mensagem de um cara muito chato, que parecia estar a fim dela. Mas era aquela coisa, ele havia demonstrado tudo que faz uma garota não querer se envolver de forma alguma.
Jogou o celular no sofá e bebeu um gole de água.
A tv a sua frente era quase como um espelho... empoeirado. Mas ela não esquecia, e ficava feliz sempre que lembrava o quanto não lembrava da última vez que ligou o aparelho.

Lembrou novamente do sonho. Era quase um pesadelo, quando se acorda. Porque no sonho estava muito melhor, havia aquela coisa boa que os sonhos gostam de proporcionar só para quando você for acordar se lembrar que a realidade é diferente.

Por que as coisas que não existem, geralmente são mais atrativas?

Com certeza era por alguma razão muito estranha que somente se pode ver o que não existe, de olhos bem fechados.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Fica proutra hora

Para hoje, um hiato.
Fica pra'manhã aquela conversa sobre o tempo, sob o vento, debaixo de uma marquise que protege da chuva mas não da friagem.
Para hoje, apenas um gole d'água que nos ajude a engolir mais uma pílula frívola de passagem temporânea; depois, uma bolacha maria encharcada por um excesso de saliva que não significa coisa alguma.
Para uma tarde que ainda não principiou, mas já se anuncia malpassante, eu nada preparei. Nem mesmo a mim, e nem um sanduba.
Penso que deveria invocar alguma coisa. Ou evocar. Ou comer uma pizza com os sabores da minha preferência. Ou escrever um texto. Não, amanhã eu faço isso. Para hoje: um silêncio.
Shiu

terça-feira, 3 de junho de 2014

Ka-tet

No início, era só uma voz agradável tentando agradar um número indeterminado de outras vozes: entre duas e cinco mil. Pelo que me lembro, aquela tentativa não estava muito exitosa. Não que isso fosse levá-lo a desistir, afinal tentar era tudo que ele precisava. Uma parede fina e fajuta separava-nos visualmente, mas por enquanto não importava, em um dia por vir eu estaria lá dentro.
Um tempo depois, acabei de perceber que nesse dia eu conheci, sem me dar conta, a essência do dono daquela voz: tentar agradar àqueles de quem gosta. Ao contrário de mim, que do outro lado daquela parede me esforcei um tantinho para que não me gostassem; mas ele não sucumbiu ao poder da minha antipatia - de início, o único. Pelo contrário, acabou por me guardar um lugar dentro de si, carregando-me com ele debaixo do guarda-chuva que nos une, lugar este onde, um dia, deixarei de lembrança um peido bem fedido antes de partir - e ele vai cheirar com muito gosto: ele adora isso.
Apesar da minha velhice, ele sempre foi mais velho do que eu, e como é natural que aconteça, me ensinou oh so many coisas. E me orgulho às pampas de ter-lhe ensinado umas duas ou seis. Bem, de fato ele me apresentou um guia, e desde então nunca mais estive em pânico.
Aprendemos juntos que as garotas azuis vêm em todos os tamanhos, e ele me levou até aquela que tem o tamanho certo pra mim; mas isso é outra história, e cada história é uma história de amor.
Quem diria que um dia eu sentiria saudades de uma coisa tão feia e peluda?! E tão amável e supimpa, e outras qualidades catastróficas! Falo do meu discípulo preferido, o inestimável companheiro da liturgia da palavra e da experiência única que é conhecê-lo. Pois ora, ninguém o conhece como eu conheço - e eu não o conheço como outros o conhecem. É assim, para cada um somos um; ele que me ensinou isso.  E veja, ele andou tanto e chegou tão longe (perto) - imagina se tivesse boas as duas pernas; chegou, enfim, à posição de segunda pessoa na sonora frase: Te amo, cara.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Júlia talvez estava certa

Porque era sempre assim. Como a palavra de Sêneca, ecoando pelos tempos, ou numa nota musical do lado escuro da lua. Ela gostava da lua, mas isso fugia ao assunto.

Tantos papéis de fórmulas falidas, apontando apenas uma direção. Eu sei, parece tão óbvio. Mas não é.
Eu tentei dizer, que andar em círculos não é percorrer um caminho. Qual é o caminho?
Eu disse que o ponto era o acúmulo de riquezas, e que isso era assunto que não deveria vir à tona, afinal, em que chão repousariam as "instituições" e a máscara do "estado", caso um dedo incômodo do questionar tocasse a ferida deixada de lado?
Enfim, você deve perseguir a riqueza e o sucesso na vida. Pra mim isso é claro. Mas posso citar dois desfechos muito recorrentes. Ou você de fato consegue o sucesso e a riqueza através do convencional esqueça-de-tudo-o-que-pode-te-atrapalhar-na-grande-escadaria-para-o-sucesso e escreva livros sobre atitude e palavras chaves, ou você pode acabar no outro lado, que muitos podem forçar o esquecimento. Talvez por ser extremamente parecido com o "homem de bem", palestreiro e grande escritor.
Você pode vir a ser famoso nas reportagens dos jornais e em grandes campanhas de ódio promovidas pelos mesmos... Já pensou?
É. É disso que falo. De arma na mão, atirando no espelho vazio que restou da própria sanidade. Ferida social, mancha do progresso e alvo da sociedade.
Tá. Pena de morte. Mate-os então. Mate todos.

Nessa hora, acendeu um cigarro e olhou em volta.
Centro 1, noite chuvosa e um cheiro de cachorro molhado. As pessoas saíam das salas. Muitas provas.
Ela estava escorada na parede, com o pé apoiado e cigarro pro lado.

O que quero dizer, é que a busca é a mesma, de arma na mão ou de barba feita e paletó engomado. E um lado sempre vai achar que o outro está errado, acredite...
Eu não tenho a solução.
Sinceramente, parei de procurar.

Por um momento ele olhou daqueles coturnos pretos até as pontas rosas dos cabelos dela.
Irritado.

"Esperava mais de ti. Uma guria tão inteligente..."

O blábláblá continuou.
Por entre a fumaça do cigarro veio aquele sorriso de sarcasmo barato e de dentes escovados.
Muitas pessoas estavam indo pegar o ônibus, era final de semestre.
É.
Por que me pergunta?
Tu não quer minha opinião, tu só quer que eu concorde.

O rapaz, irritado e ao mesmo tempo pensando se ela não estaria certa. O que o deixava mais irritado ainda.
Isso era muito comum. Mais comum do que imaginamos.

Era delicado, no fundo. Era como jogar ping pong, era necessária a força certa, nem muito forte e nem muito fraca.
Normalmente ela falava sem pensar muito, e as conversas dificilmente duravam mais que um cigarro.
É o que temos.
Colocou os fones, enquanto o rapaz se distanciava.
Banda Focus.Destino: Topique e depois casa.

sábado, 17 de maio de 2014

As calçadas e eu

Coisas aconteceram e as percebo enquanto caminho em alguma calçada. Vejo sinais que poderiam ser interpretados de tantas formas diferentes que acabo escolhendo apenas uma: um dia inteiro aconteceu ontem, aqui.

Borboletas voam baixo, vejo um lixo sem educação jogado ao chão; um cachorro cagou aqui; um homem comeu ali e deixou o que restou da sua marmita; outro deixou o que restou da sua sorte, nas gotas de sangue arrancadas por mais uma tentativa.

Atravesso ruas para chegar em outras calçadas, sigo por elas acompanhado apenas pela história silenciosa que habita aquele ar que, ontem, alguém respirou; se paro, não volto e enquanto caminho me lembro que somos um pássaro num galho. Passo pelas esquinas e elas me soam tão cretinas: paradas ali, dizendo-me que eu vá, escolha um lugar para ir.

É, Zé, os passos que nos restam estão contados, mas não sabemos o tamanho desta conta. E um dia eu voltarei aqui pela última vez.

terça-feira, 13 de maio de 2014

De alma armada

"Deve ser muito bacana cuidar dos outros né?"
"Deve ser gratificante. Um dia queria aprender a fazer algo parecido."
Na verdade, não sabem do que falam. Nem como falam.
Aliás, só falam mesmo. Não querem saber de pensar criticamente, ser cri-cri, chata, incomodativas mais do que investigativas. Como ela era.
"Então por que tu não faz?" 
O velho azedume.

Na primeira vez que a vó dela a viu com o uniforme de enfermeira, foi igual. Um igual mais familiar, aquela simpatia de velhinhas bondosas que querem o bem para as netas.
"Que coisa bonita! De uniforme e tudo para trabalhar bastante."
Por baixo do uniforme, mal sabia a avó, estava aquele tecido com estampa de banda de "róque pauleira", definição dos mais velhos.
Júlia nunca se incomodou com isso. Na verdade fazia tempo que não se incomodava mais com nada. Ia para a faculdade, fazia os trabalhos, assistia as aulas. Ia ao trabalho, cumpria seu horário, suas obrigações. E era isso. Na verdade gostava de ser enfermeira, só não admitia.

Tinha amigos no Bloco A do centro 1 da Unisinos, de calças surradas, all-stares, cheios de ideias na cabeça sobre mudanças sociais. Ela achava tudo muito interessante, gostava de todos eles, sem dúvida, mas não se importava.
No fundo a não-importância era superficial. Mas não se engane: Nem mesmo com uma arma apontada na cabeça ela admitiria que se importava.
Seria por isso suas lágrimas?

Mas isso é o que eu acho. Não sei se naquela cabeça as coisas funcionariam assim.
Eu acho que ela entende muito sobre o que 'precisa ser feito', só talvez perdeu o jeito no caminho.

O seu jeito de desleixo charmoso e bagunça ordeira iria dizer "Por que?".

Muitas noites olhando para aquela cidade grande, na vista do seu apartamento, os porque's ecoavam de volta para ela. Numa retórica destrutiva, silenciosa.
Onde o cigarro não traz nada além de fumaça.
Diabólica.
E a maquiagem serve apenas para tapar as olheiras do dia seguinte.
A sua paz.

Era quando ela lembrava daquele trecho do Rappa:
Paz sem voz, não é paz é medo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Lágrima de Júlia

A Júlia não era nenhuma dama fantasia, que andava em nuvens provocando sonhos lúcidos nos jovens desavisados em topiques ou parques... Mas, não posso dizer que se tratasse de uma garota ordinária, de vida comum, que adorasse comprar roupas ou ir no salão de beleza.
Uma das poucas enfermeiras que conheci, que se recusava a consultar, ou mesmo tomar remédios. Júlia estava certa nisso. Estava certa até mesmo em pintar o cabelo de rosa. Não que fosse feio na cor natural.

"O que eram as doenças?"

Ela sempre perguntava num azedume.
Aliás, perguntava tudo, perguntava os por quê's. Questionava e insistia, era chata demais.
Ela era brilhante.
Havia algo, no entanto, havia algo escondido dentro daquela mente.
Talvez a razão pela qual ela não consultava psicólogos ou psiquiatras, nunca sei qual é qual...
Pelo menos pra mim ela nunca falou. Acho que nunca vai falar.
Se ela estivesse no meu lugar, teria dito: "é impossível saber exatamente o que se passa na cabeça de outra pessoa, logo, não há preocupação".

Era simples assim.

Em diversos momentos, ela já foi surpreendida com os olhos repletos de lágrimas, seja numa visita inesperada, em seu apartamento em Porto Alegre, ou mesmo, perto do xerox no Centro 1 da Unisinos, naqueles lugares escuros de noite. Sempre na mesma posição, escorada na parede com um cigarro entre os dedos, às vezes apagado e às vezes aceso. Uma das poucas coisas que ela fazia que podemos dizer que era 'estático'. Além de vestir sua baby look do Led Zeppelin é claro...

E é isso que me preocupa.
Por que chora uma pessoa que parece estar certa sobre muitas coisas?

terça-feira, 29 de abril de 2014

Alma

N'alma perdida que foi revelada como familiar.
Na pedra amanhecida da beira do mar. Musgo.
Mar revolto, no entanto, distante, quando grande é o pesar.
Que reino é este? Já não mais esquecido?

No sonho que a vi, não mais a mesma, cara pálida, caolha, nada de mais. Pra talvez nunca mais. Espero que não.
Cara escorrida quando pego nos braços, diferente sem ser desigual.
Cadê você?
Engraçado. Estava tudo como antes, a mesma aparência. Mas algo havia mudado, não em seu coração, nem na paisagem. Mas eu havia mudado.
No meu novo 'eu', sem precedentes, nada mais deixaria de sucumbir, tamanha a especulação de uma varredura minuciosa e derradeira.

E assim, mais uma coisa você se tornou.

Como todas as pessoas que eu vejo na rua, você é comum.
Você tem defeitos e está impregnada, assim como eu, nesta existência, onde nada que for mágico resiste.
Como as frases de motivação que não passam de uma cilada. Dos muitos gênios de escadarias, e engenheiros de sapatos...
Como em uma reunião beneficente, onde favores são trocados na base da moeda e a moeda de base é o seu mais frágil princípio. Decadente.
Onde o deus maligno das tentações e duras provações anda à espreita.
E quando ele lhe disser: "Você venceu. Você é poderoso." Recue.

Da prisão eficiente, uma saída: A sua lucidez.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Por que você não me toca?
Me toca!?
Por que você não me toca?
Me toca!
ME TOCA!
AGORA!
AGORA!
AGORA!
AGORA! 
AGORA!

sábado, 26 de abril de 2014

O norte

Para dar um norte...
Mas por que não o Sul?

terça-feira, 22 de abril de 2014

Angu


Léo é uma bunda com nome, um dos poucos casos conhecidos.
Preferência nacional, nunca sofreu muito com qualquer tipo de rejeição. Mesmo assim, houve uma época difícil em sua vida, onde outras bundas a encaravam com desdém e seus cus peidavam palavras de deboche, por causa de uma característica sua que a diferenciava das demais - fisicamente. Léo era uma bunda estranha.
Acostumou-se: era quem era. Encarava seus deveres e sua rotina com a determinação mediana de qualquer um; ia levando a vida, que mais poderia fazer? Sabia que as outras bundas queriam vê-la pelas costas, mas seu desprezo não a atingiria.
Com o tempo e a maturidade, vivendo numa época que pretende fortalecer auto-estimas, Léo passou a valorizar a sua chamativa diferença: era quem era.
Quarta-feira pela manhã, enquanto seguia em direção ao centro e ouviu, sem se importar, alguém peidando baixinho: "Olha aquilo ali! Uma bunda com cara de gente", simplesmente seguiu adiante: estava cagando e andando.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Segura a carga da Fâni
Segura a carga de graça
Segura a carga da Fâni
Eeeeeeeeeeeee
Põe a carga logo em mim!

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O OESTE É O MELHOR

sábado, 29 de março de 2014

O MACACO ASTRAL RECORDA
Do dia em que não calou,
da noite que não veio
Da vontade de berrar incontrolavelmente
e de uma época onde tinha algo a dizer
O MACACO ASTRAL RECORDA

sexta-feira, 28 de março de 2014

Peixes

Incapazes de encontrar uma saída, desaguaram em uma história absurda. Batiam no vidro, voltavam para cama. Sentam sobre suas bundas, olhando para fora da vidraça: Espectando.

terça-feira, 25 de março de 2014

Dente-de-leite e a guerra fria


Caí num poço por toda uma vida. Caio enquanto tento compreender as paredes tão distantes, que passam sem se mover, sem se deixar nada a mim. Mas oh, repentinamente as encontro, a brisa que quase nunca interveio me joga, lentamente, de um lado ao outro. Caio sem ruído e dou de cara na pedra fria das paredes de um poço que não sei quando acaba. Minha face se esfacela lentamente, meus cabelos vão caindo; aqui jaz um fio branco.
Passaram-se estações, uma após outra; as paredes mudaram sem minha intervenção, sem pedir opinião. Deixei de minha pele uma trilha, partes de mim que virarão poeira antes do resto, enquanto vou me raspando incontrolavelmente neste túnel inexplicável.
Penso em como seria ter a opção de voltar. Nadar até a superfície, descobrir como foi que caí aqui, neste mundo feito de nós desatados.
Chovesse.
Se houvesse água neste poço e eu soubesse nadar, quem sabe
não
água
nem
deus
Quem sabe; eu poderia subir, sim, se este não fosse um buraco vazio que alguém cavou sem motivo, se é que alguém cavou, se é que poderia haver motivo para alguém que cava sem saber, buracos e trincheiras, pátios e patíbulos, uma guilhotina sem fio barbeando a esperança de uma mente que pensa, quem sabe se eu aprender a nadar, se aprender a matar, quem sabe se eu aprender a voar, quem sabe se ele, ele quem, não sei, se ele o que, se ele atirar uma corda e me puxar de volta, pra cima, sim, pra cima, o que tu faria então, não sei, então o que queres de lá, saber como vim parar aqui, mas não parei, continuo caindo sem saber onde, como saberia se não estou em lugar algum enquanto caio, sim, Joe, eu caio e como sei, porque debaixo de meus pés nada há, nem botinas, nem salvação, nem tesouro, nem miséria, só um destino de cair onde não sei se pararei, dando de cara no caminho, devagar, ralando o nariz, perdendo a face, perdendo o sorriso, empurrado por uma brisa que não sei de onde vem, ou será uma mão, mas de quem, de deus, que deus, não tem, não tem mão nem deus nem nada me levando para baixo, se é que vou para baixo, agora me ocorre, nada há sob meus pés, e porque haveria, e não sei se não caio de cabeça, a verdade, existe, não, mas a vejo, ora nem saber eu sei, só acho que não saberia dizer se caio de pernas para o ar ou para o chão
ah, Joe, sinto nos poucos cabelos que me restam, sim, sinto algo tocar de leve minha cabeça, estou sentado de pernas estendidas, escorado num pequeno muro de pedra, o sol não brilha, eu não brilho, venta pouco um vento bom, é tarde mas há tempo, nuvens cinzentas esbravejam: é chegada a hora de levantar. Ergo a cabeça e encaro a jovem que sorri me perguntando onde estive, em que pensava. Eu jamais saberia responder. 
chove

(Sobre nós dois e o mundo, sobre todos nós um pouco de chuva deve cair)

quarta-feira, 12 de março de 2014

A esquina e eu

A cidade é tão pequena e sofre tantas mudanças. Quanto a isso, não somos diferentes. Uma esquina por onde pouco passei no passado, plantada num lugar tão distante, repentinamente é logo ali: perto de casa. A casa e eu somos outros. Mudou a cidade, mudei eu - nós.
Aquela esquina continua lá, bem ali onde a deixei. Quanto tempo levou até que eu a reencontrasse, hoje, tão mudados nós dois? Deixei-a para trás, segui meu caminho caminhando.

Ouvi palavras e frases, vi pessoas e gestos. Uma reclamação sobre etiquetas de preços, um até logo murmurado por preguiça, um diálogo decisivo sobre o futuro das portas do automóvel: abertas ou não. Pedaços daquelas pessoas, partículas que elas atiraram ao vento, como pingos de chuva contra os quais eu jamais me chocaria caso tivesse dado aquele passo em qualquer outro lugar que fosse.

Como eu teria me visto se aquela esquina cruzasse consigo mesma dez anos atrás, dez anos passados num piscar de passos, oh questão improvável. Em verdade, ainda me vejo por lá, esperando o dia de hoje chegar, esperando à toa, vadiando como sempre, viajando em passos curtos um caminho indefinido, procurando sem achar, passando por si sem saber, como passo hoje por alguém que me viu, invisível, a não reparar que me via. Ah, Joe, que belo lugar é este por onde ando.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Velha-e-estranha sensação

Um dia eu soube como era ser jovem, mas não foi para sempre. Que estranha sensação: envelhecer. Esqueci tanto do pouco que aprendi, e tenho uma dívida com a minha consciência. Uma mistura borbulha num caldeirão enorme; tento decifrar sua fórmula sem a receita.

Que bizarra equação é essa que envolve o tempo que vivi, o quanto envelheci, a idade que tenho, as verdades que desconheço.

Agora penso em ser jovem novamente, mas essa é uma novidade da qual não me recordo. Tão longe, lá atrás, há tanto tempo, o futuro parecia um mistério. E como era belo não conhecê-lo. A mim ele me mostra a mesma cara: um rosto sem face - ou uma face sem olhar? Então não sei se ele mudou, se não mudou ou se eu simplesmente não saberia dizer mesmo se o conhecesse.

Há muito tempo eu pensava que os mistérios são, hm, coisas ocultas, sabedoria, receitas, fórmulas mágicas, alquímicas ou dietéticas, enfim. Eu era jovem, então. Agora não sei mais como é isso. Agora me parece que só existe mistério naquilo que alguém conhece. Não conhecer no sentido de saber como algo funciona, ou para que algo serve. Apenas conhecer do tipo já ter visto alguma vez na frente das fuças.

Sim, a minha curiosidade pela cachola que matuta somente passou a existir depois que a descobri, ali em cima, martelando a si mesma com planos e dúvidas. Com um velho e estranho sentimento: a confusão causada por um mistério indecifrado.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Elísio

Depois da ponta aguda, da dor no peito, e da lágrima última.
'Depois', era uma definição vaga. Em realidade, inexistente.
Já não havia mais o antes, o durante e o depois.
Mas podemos nos referir como antes, o brilho intenso da transição, para uma nova pessoa, um novo propósito.

Não havia dor, tristeza ou alegria. Apenas o estado natural de absoluta paz.
Quando ela abriu os olhos, a aurora familiar e o brilho da nova esperança, inundaram seus bonitos olhos verdes. O céu estava limpo. Estava deitada em um vasto campo verde.
Parecia que há muito tempo atrás ainda sentia-se pesada, como se vestisse uma volumosa armadura, grandes fardos e uma bravura no olhar. A bravura não esfriou, mas o tempo já deixara de existir.

Sentia-se leve.
A visão lúcida e plena.
Olhou seus pés. Os movimentos eram suaves como suas vestes. Mesmo se quisesse não iria conseguir nada brusco naquela ocasião.
Apoiou as mãos no gramado alto e macio para se sentar, lembrou-se da outra vida quando fora uma criança, quando os gramados costumavam irritar um pouco a pele, isso já não mais acontecia. Não ali.
Levantou.
Até mesmo isso, vindo dela, naquele lugar parecia um gesto de bondade e de paz.

Tinha poucas lembranças da batalha do dia anterior. O que era o dia anterior, para ela, já parecia tão distante... As lembranças estavam ficando para trás, junto com o tempo. Como se tivesse acordado de um sonho. Já não era mais importante.
Só o que importava agora era o novo propósito. A nova tarefa.

Já não havia nenhuma cicatriz em seu corpo.
E nenhuma cicatriz em seu coração.

Três por três

Aguardavam debaixo de uma sombra forte, num dia de sol bruto, esperando um bom momento para sair embora, mundear por aí, ir para casa, repousar em paz.
O espectro do necromante estava vencido, não poderia mais toca-los. Sentiam-se leves, vivos. Esperavam esperançosos pelo saboroso momento em que chegariam de volta à aldeia, onde veriam pessoas comuns, tão inofensivas quanto eles próprios foram um dia.
Entardecido, o sol brilhava sem queimar; havia paz; as perturbações passaram. Eram, de novo, donos de suas consciências. Vencido o inimigo, iriam embora carregando o tesouro.
Contarão sobre a aventura a outros amigos, que ouvirão incrédulos. Acabarão sendo convencidos - tudo parece tão possível, olhando para seus rostos pálidos, sofridos.
Partem; chegam, bebem e brindam. Há música na taverna, há alegria vitoriosa. Endurecidos pela experiência, seus corações agora se enlevam, aliviados, empolgados. Talvez essa vida lhes seja uma boa escolha. Aventurar-se, enfrentar perigos - quem sabe?
Os velhos amigos os reconhecem, mas somente se acostumam com seu novo aspecto após terem bebido alguns canecos. Os três jovens, que estavam sumidos há dias, finalmente voltaram, mas estão tão brancos e magros, com olhares tão diferentes da antiga inocência, que é como se fossem outros. O que teriam visto de tão impressionante, se pergunta o taverneiro.
Enquanto a noite avança, o ar esfria e um vento afiado sopra pelos becos, por entre as casas. Do lado de fora, o olho furtivo do necromante espreita. Pois ele jamais veria seu fim.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Separar rótulos com vírgulas

Parem! Por que não param?
Seria eu o responsável por parar?

Sigo a fila do caixa, a fila do banco, sigo ao passar pelo brete, tomar a vacina, sigo a fila do restaurante, sigo o caminho planejado, sigo sem parar por mais de um instante, sigo dando um passo a mais em direção ao início dessa fila que sempre existiu, não tomei meu remédio, não tomei um rumo, não tomei medidas, não apliquei sanções, não me especializei, não soube o que dizer, não soube perguntar para onde ia esta fila, continuo sem saber onde vai ela, onde vou eu, sem saber quando foi que entrei nesta fila, de fim tão distante, e quem são essas pessoas que me seguem, nem a quem eu sigo, sigo nesta fila sem saber onde ela vai dar, se é que vai dar pra chegar em algum destino, essa fila inafiançável que vai sempre curvando pra direita, com que direito nos colocaram aqui, não sei, quem foi que o fez, não sei, por que o fez, também não sei, só sei que quando a pessoa, que pessoa, a da frente, o que tem, só sei que quando ela dar um passo a frente eu farei o mesmo, por que, não sei, não tenho alternativa, o de trás fará o mesmo, deixe estar, somente posso deixar, deixar de dar mais um passo, posso, ainda não, é preciso chegar, chegar onde, no próximo passo, no fim da fila, mas o fim não é lá atrás, é. Então para onde vão estes que aqui caminham?

Daniel

Cadê você Jovem?
Por que trocaste a alegria
Pelo sorriso enferrujado pelo tempo?
Saberia dizer o que te faz bem.... ontem
Está diante daquilo que lhe estende os braços
Mas saiba que o que é dado não tem valor

São longos braços estendidos,
De um único desejo, coletivo
De mocinhos a bandidos
Saberia diferenciar os mortos dos vivos?

Hoje você está seco, duro
Dureza daquele que diz acreditar
E acaba acreditando mais do que diz
Faz sem falar, e fala sem pensar
Quer ter paz, mas não tem voz
Saiba que paz sem voz é medo

De quando brincava de qualquer coisa, lembra-te
De quando trocou o jovem pelo velho, aprende.

De quando pensou ouvir das genialidades e sabedorias de "mercado"... Esqueça.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Breve-Idade Crônica de Uma Passagem

  Nasci sem saber onde estava. Enxergava nada, conhecia menos ainda. Fui estapeado, primeiro de leve, depois mais forte. Chorei até parar e parei. Acabei aprendendo que as intenções estão por trás de tudo que é feito entre duas pessoas. Fossem elas boas; fossem más. Intenções.
  Cresci acreditando que todos precisam de alguém, tendo provas disso a cada dia em que aprendia algo novo. Alguém me ajudou a comer, a limpar o cu. Depois eu pude fazer isso sozinho. Percebi, com o tempo, que tudo que está limpo tende a se sujar; limpar. Tudo pode ocorrer sozinho.
  Vivi pensando sobre não saber quem somos, o que viemos fazer aqui nesse mundo, se é que ele é um mundo, seja lá o que for isso. Havia perguntas, havia respostas, mas elas não estavam ligadas umas às outras - e continuam assim. Não estão ligadas ao meu entendimento, que, por sinal, não conheço, apenas ouso tentar adivinhar - e nisso eu falho.
  Tenho um abrigo onde me refugio dessas sensações, e por formidável que seja ele e nossa união, ora, nada é impermeável, nada é intransponível para energias cósmicas sem corpo. Percebo que eis uma diferença entre mim e meu desconhecimento. Eu tenho um corpo, ele não. Apesar de eu ser um dos tantos universos que preenchem a calçada, sou menor que o infinito; ele se expande a cada momento; eu me dissolvo a cada momento. O tempo é um inimigo fiel: nunca me abandonou. Criou-me esperanças de crescer e aprender, que foram gradativamente frustadas, substituídas pela divertida sensação de estar zonzo de tanto pensar, essa sensação boa de só achar que nada sei. Pois, cresci, aprendi e continuo sem saber. Ultrapassei os primeiros horizontes que, anos atrás, eu mesmo me impunha e até onde tentava imaginar no futuro, no longínquo ano em que eu esperava ver algo acontecer e que já passou, me deixando na dúvida entre eu ter esperado algo que não existia ou eu não ter percebido o que aconteceu. 
  Tenho em casa um óculos de lentes grossas, que uso quando necessito me iludir pela ordem das coisas ou saber onde encontrar uma cueca limpa pela manhã. A cada manhã, encontro lentamente a mente e uma ou outra ideia que saiu do meu corpo durante a noite.
  Ah, Joe! Eu tenho no peito uma contagem regressiva.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Você é um cocô

Triste resquício de uma frustrada perspectiva de existência; roendo e rastejando pelos corredores, cochichando e lastimando sobre o que poderia ter sido ou o que procura fingir ser; deixando-se corroer por lamentações de uma saúde nunca tida, uma riqueza que só existe em planos indignos; contaminando aqueles ao seu redor com os mesmos sentimentos pútridos que correm por sob a sua pele; sugando, usurpando, malfadando; incapaz de cumprir um propósito na terra; pobre, triste e desprezível.
Você é um cocô. Mas eu não vou matar você. Não eu.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Conheceu ele em um veranico sem lua. Noite de pouco vento.
Não falhou a voz, não parou no tempo. Não dividiu a cerveja, a conversa e nem guardou os traços vistos.
Ficou poucos minutos. Despediu-se sem contato físico.

Já era frio quando ele apareceu novamente. 
Olhares foram dados, sorrisos aumentados e portas se abriram com leveza.
Abraços, agora, eram dados com frequência. 

Cativou-se em fracas luzes.
Amou sob as estrelas.
Se deixou levar mesmo quando sua birra era bastante intensa.
Ele era seu lugar. Ela disse que ali ficaria.
Num tom-batida-compasso de quem não sabe o que fazer além de piscar os olhos e abrir os braços.
"Vem, constrói aqui tua morada.
Com café quente e um espaço pronto para criar histórias.
Com bagagens tuas, das quais me encarrego."

Com amor, em uma estratosférica batida - seja lá o que isso significa.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Tivera o azar de nascer um daqueles que não chama muito a atenção, filhote de uma inúmera mistura de raças, no fundo do quintal de pessoas que o consideravam apenas como um objeto de decoração. Tivera o azar de crescer, deixando de ser bonito e fofinho, e de ter seu olhar de tristeza coberto por pelos cinzentos, grandes e desordenados.
Vagara de um lado para outro durante um dia inteiro, procurando alguém que pudesse lhe dar o que fora negado pelo dono do carro vermelho, que há três dias o abandonara próximo dali.
Buscara, sem muito sucesso, entre latas e sacos plásticos jogados pelos outros veículos, por algo para matar sua fome e sua sede.
Repousando, agora, abaixo de um sol escaldante, movendo-se, ocasionalmente, ao passar dos carros, um pouco pra cá, um pouco pra lá, os olhos do cão se mantém grudados na estrada que desaparece no horizonte.
Cortesia da roda do caminhão, que não teve tempo de frear.