quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Life is strange

Não. Isso eu não pude escolher. É... É pedir muito. É demais.
Me desculpe.

O indicador passou pelos cílios, pelas pálpebras, para então voltar à tecla rígida, plástica e aparentemente desalmada. O outro para um botão semelhante, bem mais à direita, de funcionalidade semelhante. Ambos só funcionavam em conjunto.
Na tela, gráficos e personagens se moviam com uma leveza indigna aos padrões eletrônicos e mecânicos. Eles pareciam de verdade. E eu já havia sentido isso antes, de uma maneira bastante familiar.

É engraçado. Nosso cérebro consegue administrar de maneira impressionante diversas tarefas complexas ao mesmo tempo em que está envolto em inúmeras sensações e emoções, todas, mergulhadas no mecanismo da memória. Uma pequena fração do tempo congelada dentro do cérebro e acessível a qualquer momento. Ou seria da mente? Ou não teria diferença entre um e outro?
Seria difícil dizer que não quero que essa sensação seja verdadeira, que seja real. O que é real?

O tempo parou, o dedo se moveu e a lágrima inevitavelmente rolou abaixo, como a grande pedra da vivência que diariamente empurramos morro acima que também, por vezes, vem abaixo. O gelo da memória derrete aos poucos, transformando pensamentos, enquanto a água cristalina que escorre se revela transbordante.

E eu choro.

I wish you'd be real.
But again, what is real?
I wish you were here.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pobre Chico


Não havia dinheiro. Na verdade, faltava riqueza para comprar o que quer que fosse. Ouro é coisa de lenda, diria algum velho aldeão. E tem outra coisa: para que serviria? Não se come, não aquece o pelo do homem; tapar o buraco no telhado, a fim de se livar de uma goteira? Ia precisar de ouro suficiente para pagar uma casa nova, provavelmente alguém o roubaria, e pronto, lá vem a goteira novamente. Não, ouro não serve, não para nós.

“Arranja uma utilidade melhor para a tua sorte”, foi o conselho que restou ao fim de um dia de tentativas de negociação.

Pobre Chico, criador de galinha, de bicho de pé e de falsa esperança; nascido e criado para ser pobre, morrer miserável. Não tinha filho para sustentar, nem mulher para dividir a vida, nem um cusco que lhe fizesse companhia. Menos mal, passaria fome sozinho, se a situação piorasse.

Nasceu no seu galinheiro uma galinha diferente das outras poucas que ciscavam por lá. Botava ovos, como as outras, mas as gemas destes eram puro ouro. Já tinha uma porção dessas gemas guardadas, desde que descobriu este fato milagroso, por acidente, quase perdendo um dos poucos dentes que ainda tinha. Pulou de alegria, quase deu adeus ao barraco, se mudaria para a cidade, pobreza nunca mais; seria bem visto, bem quisto, bendito.

Os dias iam passando e ninguém aceitava negociar por um de seus ovos de ouro. Ninguém o levaria para a cidade, ninguém tinha um cavalo para vender a ele, um burro que fosse. Sua ascenção foi barrada pela pobreza que o cercava.

Sua expressão nestes dias era um misto de indignação e angústia, mas depois foi se aliviando, foi bastante notável num dia em que saiu para recolher lenha. Nesta mesma noite, uma fumaça cheirosa saiu da chaminé do seu fogão. Estava terminada aquela palhaçada: Chico fez uma galinhada com a maldita galinha dos ovos de ouro. E, diabos, que carne dura.
O MACACO ASTRAL VIAJA
Na esteira imparável do tempo
Não vê a hora de chegar sexta-feira
Céus, como o ano passou rápido
Atravessando os dias sem saber da sorte
O MACACO ASTRAL VIAJA

sábado, 5 de dezembro de 2015

O Padeiro

Não era uma padaria ritmada pela pressa, marcada por pedidos para levar. Não estava incrustada em rua movimentada do centro, espremida entre prédios, nem havia um estacionamento pago por perto. Por ali, o normal era comer no balcão, ou à alguma mesa perto da janela; pela qual se veria um céu sem qualquer arranhão; uma rua tranquila: casas sem cerca, pessoas caminhando sossegadas; passava um carteiro, assoviando; um radialista de bigodes, um cão passeando sozinho.
Lugar familiar, repetiam-se os rostos. O próprio dono atendia no balcão. Morava numa casa grande, velha e bonita, nos fundos. Conhecia pelo nome uma boa parte dos fregueses, os mais frequentes. Os que pouco vinham, esforçava-se para que voltassem mais vezes. Menos um deles.
Aquele, esperava jamais ver novamente.
Pois, na única padaria daquele bairro tão simpático, ali bebeu e comeu uma alma perversa, um biltre matador de mulheres. O padeiro ouviu dizer que ele foi preso, que foi morto, que foi para o inferno e voltou e, embora quisesse acreditar em qualquer uma das duas primeiras hipóteses, nenhuma lhe trazia certeza, nem conforto.
Por meses depois dos crimes, sempre fez questão de levar até em casa as suas funcionárias sobreviventes, escrevendo uma história que ainda deve ser melhor contada.
Bom sujeito, diz-se dele. Uma foto na parede da padoca denuncia que já foi guitarrista de uma banda de roque - mas não poderia ter levado aquilo para o resto da vida: não era para ele. E quem o conhece melhor sabe que, apesar do gosto pelo trabalho, a padaria é apenas o seu ganha-pão. No seu íntimo, o que ele realmente é, o que realmente ele sabe fazer, aquilo a que ele dedica os melhores e os piores de seus momentos, é ser pintor.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Velório

Passou muito rápido. Quase não vi passar.
As pessoas me olhavam como quem pede desculpa, sente muito ou mesmo com medo. Eu mesmo não tinha medo.
E agora, 7 meses depois, eu ainda me pergunto quantas pessoas teriam ido, caso fosse para aproveitar uma janta, almoço ou apenas mais uma reunião qualquer, tão em baixa hoje em dia, para desfrutar o pouco tempo que se tem.
É.
Acho que menos da metade, se tanto.

Dear father
Forgive me
I don't know what I've been doing...

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Saudade

Com o tempo a gente vai aprendendo o que de fato saudade quer dizer.
É algo que se descobre com a idade, depois que dá tempo das pessoas entrarem na tua vida e partirem.
Tu começa a entender o quão doloroso pode ser.
Quando tu começa a sonhar acordado com a presença da pessoa.
A música, o canto, a risada, os passos.
Quando tu começa a imaginar o que ela diria, qual seria sua opinião, que piada ela faria
Quando sem querer tu passa a imaginar o que ela está fazendo, o que ela está pensando, aprendendo, vivendo.
Quando saber como ela realmente está se torna uma necessidade física.
Quando pequenas coisas lembram ela e ela invade teus sonhos sem pedir licença.
Quando tu te pega desejando ver ela, nem que seja de longe. Quando tu passa a precisar ouvir sua voz. Quando o coração aperta, a garganta fecha e os olhos marejam a qualquer lembrança mais forte.

Saudade dói. É doce e amarga. Porque apesar da dor, é uma forma de entrar em contato com a pessoa e uma forma de lembrar que o amor e as trocas foram reais.
É uma dor que satisfaz. É sorriso com lagrimas. É arrependimento e orgulho. Tudo junto.
Uma coisa é questionar e rever os padrões e os hábitos que estão arraigados na nossa cultura e reafirmam preconceitos e padrões que não fazem mais sentido. Outra coisa é querer calar, boicotar e prender todo mundo que discorda da gente, que nos questiona ou incomoda.

Tem que ser mais que sexo

Adoro sexo, mas pra mim não tem graça quando não é mais que isso. Não precisa ser amor, não precisa ser paixão, não precisa ter futuro, não precisa ser mais de uma noite, mas precisa ser mais que sexo.

Eu me interesso por pessoas com substância, que me façam pensar, que me inspiram, que me façam que, mesmo por pouco tempo, ver a vida por outros olhos, entender o funcionamento de outro ser além de mim mesmo. Que aquelas horas sejam um momento de intimidade potencializado pela ausência de roupas e excesso de toque.

Que seja um momento de troca. Que sejam trocados mais que toques, fluidos, prazer. Que seja trocado experiência, personalidade, visão, sabedoria, carinho, compaixão e admiração.
Pode ser one night stand, a duração não importa, desde que haja profundidade. Desde que haja troca.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Arlindo e a Guerra


Arlindo P. Schmitt lembrava de histórias da guerra, coisas ruins e formas fatais de morrer. Batalhas travadas na bala, granada, bomba de tudo que é tipo, canhão e sabe-se lá o que mais. Tinha aquela história da trégua no natal, todo mundo tranquilo nas trincheiras, curioso de se imaginar. Ninguém sairia de lá para comprar presente, mas vai saber se o comércio já tinha fabricado essa tradição ilusória naquela época. Quem lhe contava sobre a primeira guerra mundial era seu avô, cujo pai não morreu nela, mas matou. A guerra não prestava, mas as histórias sobre ela, essas eram demais.
Outro tipo de batalha que Arlindo conheceu lhe foi apresentado pelo seu pai, lá em Songaripa, onde moravam. Era coisa feia, mas o velho achava bonito de se ver: briga de galo. Hoje em dia, nem pode mais, que coitado dos bichos, se matavam sem motivo. Que tipo de criatura ia querer matar uma semelhante sem razão? Difícil dizer, mas era fácil lembrar das histórias do avô vendo as rinhas em que o pai apostava.
Um tio lhe falava sobre como cada homem vive sua vida em guerra, e como não é possível haver paz sem haver solidão. Nunca teve provas disso, mas os anos lhe tornaram impossível duvidar.
Cresceu numa época mais fria, onde havia menos perigo e mais conforto, mas não menos medo. Lutou para poder votar, para poder dizer o que quisesse, e valeu muito a pena. Acreditar e transformar. Liberdade de expressão; significava muito, e ainda significa. Não que, hoje em dia, ele possa dizer qualquer coisa que seja sem ser tachado pejorativamente de alguma coisa e atirado, após um julgamento sumário, em uma cela onde ficam os seus iguais, tudo sem sair da frente do monitor.
É, Arlindo entrou no Facebook, seguindo a sugestão do filho. Seria divertido, disse, uma forma de manter contato com amigos que não via mais – e continuar a não vê-los, fazer o quê. Era estranho lá dentro, mas tinha seus pontos positivos. Piadas engraçadas, notícias e polêmicas; Informação instantânea, fotos de gurias fingindo querer esconder o que elas faziam questão de mostrar, essas coisas.
Era uma quinta-feira de noite, primavera, quando recebeu de seu filho um link, via mensagem naquela caixinha que pula e faz barulho na tela, mesmo quando ele não quer ver nada. Era sobre algum tema em voga, e o guri lhe pedia ajuda para uma batalha, mas ele não entendeu bem do que se tratava. Mas se fosse para ajudar o filho a lutar, estaria sempre disposto. O sangue de guerreiro corria em suas artérias, afinal. Foi até o quarto do perú, que se assustou com sua presença, e pediu explicações. “Não é 'ache', é 'résh', pai, 'réshtég'.”, disse e explicou o que queria que Arlindo fizesse. Este, por sua vez, continuou sem entender à que levaria aquilo, ou como funcionava exatamente a dita batalha, mas o que não faria pelos filhos, não é mesmo? Voltou até seu computador e, pela primeira vez na vida, Arlindo participou de uma batalha de hashtags; e três gerações de Schmitt's se reviraram em seus túmulos.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Provocações

Um vestido colado ao corpo, pernas parcialmente expostas, andar provocante.
Um velho com cara de brabo, duas sentenças sólidas, esmurrando o queixo de quem o ouve, provocador.
Escuta uma música que não diz sobre o que fala, mas fala de tudo e não deixa de dizer algo, milhares de coisas por frase. Frase, oração, período. Dias difíceis. Amar e mudar as coisas, provoca sensações inquietantes.
Ouve, lê, enxerga uma novíssima notícia bombástica, injustiça gritante, discórdia incitada, provocação ao seu estado de espírito naturalmente pacífico.
Um poema que não mente, um doce cheiro de comida quente, um olhar saltitante, um grande momento em cada instante: apazigua; paz.
Como as calças que se borram frente ao perigo; como a maquiagem, borrada com o dissipar da mágica; como as árvores, que indistintas vão se transformando, virando borrões, conforme o transporte anda mais e mais rápido; Assim vão se tornando nada mais que manchas borradas os anos que se passam diante de nós, sem que jamais possamos tocá-los, apertar e dizer: que tempo bom, este que estou vivendo.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O MACACO ASTRAL RECLAMA
Sentado sobre o próprio rabo;
Num confortável leito almofadado,
observando os astros na tela e na janela;
Sobre os horrores do mundo lá fora;
O MACACO ASTRAL RECLAMA

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O MACACO ASTRAL REFLETE
Sobre a situação global;
Sobre o efeito colateral;
Sob efeitos da psicologia espiritual;
Buscando um momento de compreensão;
O MACACO ASTRAL REFLETE

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Tem Gente que Gosta


Na volta do feriado, o vizinho Celson já tava com um carro diferente. O segundo só nesse ano. “Pra que isso?”, pensava Tarcísio, refletindo sobre aquele hábito de consumo. Pra nada, concluía. Era só uma forma furada de preencher algum vazio interior que tinha aquele homem, que se deixava mover por um belo carro e uma insaciável vontade de ter, possuir.
É, tem gente que é assim.
Da mesma forma que aquela guria da esquina e o namorado dela, cheios das frescuras, gurus e não sei mais o quê, seguido com conversa sobre ser vegano, sobre benefícios disso e daquilo, alimentação orgânica. Ou o filho do Celson, que cada dia andava se engalinhando com uma moça diferente, descartando uma e indo pra próxima, e se achando grandes coisa.
E aqueles velhos crentes! Com bíblia, bengalinha, levando santa na casa dos outros, fazendo questão de botar a vizinhança pra rezar. O que era isso? Uma forma de satisfazer eles mesmos, mais ninguém. Eles é que precisavam justificar a própria existência com alguma ação, agitação, preencher vazios.
Seguido falava disso enquanto tomava chimarrão na frente de casa com a patroa, a Teresa, que não concordava nem discordava, só tentava amenizar os resmungos do esposo. Mas não adiantava, era cada caso um pior que o outro, gente fazendo plástica, piá com violão sem saber tocar um acorde, e aquilo foi virando uma indignação; o Tarcísio começou a se meter na vida das pessoas, primeiro dando conselhos, depois palpite e depois quase que dando ordem.
Teve todo tipo de reação, de deboche e gente que parou de dar bom dia até bateção de boca, uma fiasqueira, e nada resolveu, nada melhorou. Mas era isso, o hábito estava criado. Tarcísio se acostumou a tentar dar um jeito na vida torta daquela gente, e o caminho era a goela.
Numa tarde de começo de primavera, o Celson lavava o carro, todo arreganhado, uma gurizada jogava bola na rua; o Tarcísio pegou na cozinha uma rosca de polvilho pra comer com o chima, daquelas bem crocantes, tinha recém comprado na padaria da outra rua. Ia voltando ao pátio, olhando o carro do vizinho, que nem bola dava pra ele; enquanto descia os degraus da varanda, nos vidros brilhantes do auto, refletiu Tarcísio; abriu a boca pra fazer algum comentário, mas em vez disso mordeu a rosca e houve um estalo: o que estava fazendo era preencher seu próprio vazio com os ecos de suas reclamações. Sentou-se, quieto, mastigou. Engoliu a rosca e todo o resto. Comentou com a mulher sobre o que tinha pensado. “Pior”, ela disse.
No dia seguinte, foi novamente à padaria; a moça serviu um suco a um carteiro e, ao ver Tarcísio, já ia pegando uma rosca de polvilho, daquelas bem crocantes, quando ele se manifestou: “Não, hoje não.”, disse. Olhou bem em volta, quase tudo parecia delicioso. Pediu pastel, pizza, torta de bolacha e na saída pegou umas paçocas, que é coisa bem boa.
Chegou em casa, não reclamou de ninguém, serviu um café pra ele e pra patroa, que comentou, antes de sorver o último gole: “É... é melhor encher a barriga da gente que o saco dos outros.”

Primavera

Como naqueles sonhos, em que o sujeito acorda logo depois que percebe que está sonhando, talvez justamente por isso; a capacidade humana de se enganar é limitada, apesar da infinitude de sua estupidez. Percebe a enganação e não acredita mais nela. Cria outra.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

E quem mais?

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Mais uma

Entre um cigarro e outro eles te olham de maneira nojenta.
Abanando como se não se importassem.
Acordar, viver, trabalhar, dormir.
Ao mesmo tempo, elas querem trabalhar sem se cansar.
Querem dormir sem perder tempo.
Querem se exercitar, mas não querem que o suor escorra, afinal vai borrar a maquiagem.
Querem comer pão de alho, mas não querem sentir o gosto do alho, que afinal acham ruim.
Querem ser o Silvio Santos, mas não querem ser camelôs.
Querem o asfalto consertado, mas não querem que pare o trânsito.
Querem saber desenhar sem nunca ter rabiscado uns palitos.
Querem saber tocar violão, mas não querem que os dedos fiquem dormentes, ou que as unhas tenham que ser cortadas. Eu tenho unhas ligeiramente compridas, mas nunca quis tocar violão.
Não querem se preocupar com o lixo, com as árvores, mas não querem enchente.
E quem sou eu pra falar?
Eu nem sei o que quero.
Mas acho que saber o que não se quer, já é saber o que quer. Ou não.
Tenho que tirar essa maquiagem de boa moça, tomar um banho e ouvir alguma música que eu goste.
Ou ligar pra Melissa, ver o que se faz de noite.
Sim. Sou só mais uma.
Mais uma que reclama.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Forte Partido

O cerco.
A fortaleza.
Muralhas e pessoas.
Bandeiras e pessoas.
Pessoas e palavras.
Se houvessem trespassado os muros externos, tomado a torre norte, posto abaixo as paredes do castelo, esperariam a poeira baixar; veriam, do lado de dentro, apenas mais uma parede, quase pedindo para ser derrubada - e nada mais.
Neste momento, a dúvida se formaria: quantas camadas mais até chegar ao núcleo da fortaleza, despedaçá-la por completo, expondo seu coração à vontade dos conquistadores. E lá dentro, depois da última, a questão que não seria esclarecida: para que tudo isso?

Escudo Arcano

Vez por outra me pego despertando de um transe sonolento, sensação de ter ido a algum lugar um tanto distante, andando a passos curtos, terreno difícil que é, caminhada entre pensamentos desconexos, como são aqueles que tentam explicar realidades. Sei que não se explica, mas saber não basta.
Olho em volta e a vista se desembaça aos poucos, mas nunca totalmente.
Como no despertar de um sonho, é difícil lembrar onde se esteve. Sei que gostaria de ter criado uma barreira, ilusória que fosse, a fim de me conceder cobertura total contra os disparos de ódio e incompreensão que jorram no mundo a cada dois minutos.
É uma ideia repetida, o isolamento, algo impossível. Ensinamentos dizem que não, um estudo aponta que não, dados e imagens comprovam que é bem assim.
Mas ainda assim o pensamento vai e volta e persiste. Não lembro de ter empilhado algum tijolo para o muro, mas sinto como se estivesse com as mãos sujas de cimento.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Malogro

Sentimento estranho. Quase como colocar uma calça comprida no primeiro dia frio depois do verão interminável. Deserto, secura mental. Páginas em branco. Estranho o ato de escrever, que por tanto tempo me foi tão natural. Mais fácil do que falar em voz alta. Me refiro a escrever sobre o que penso e sinto, não sobre os códigos secretos, as respostas para o que me perguntam, as questões banais que não calo. Pontos finais, façamos as pazes? Espero que sim. Há tempos alongava as orações tanto quanto o sono pela manhã. Acordei cedo em um dia e no outro também. Fui outra pessoa? Claro que sim. Quem sou eu que não escreve? Não, não falo de rezas, falo de orações coordenadas, subversivas, períodos longos e inexistentes. Na verdade, não me veio vontade de escrever, não quis dizer algo. Apenas quis querer, e isso não basta para afugentar a modorrenta sensação de perda do hábito. Não há a quem culpar antes de mim, então me calo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Arrogância

Depois que tudo aconteceu eu passei a não gostar muito de carros. Máquinas estúpidas.
Quando ela me deixou, fiquei meio pra baixo. Simplesmente me abandonou na rua, e com razão, talvez meus modos não se fizessem agradáveis. Sempre fui sujo, pouco higiênico e sempre comi com as mãos.
Mas a sociedade acha que nos entende.
As pessoas nos olham, e acham que tudo sabem sobre nós, nossos gostos, quando estamos felizes, quando estamos tristes, com fome, frio, etc.
Sempre fomos coisas. Aí elas tentam nos defender dizendo para os outros como proceder e o que fazer, pressupondo um entendimento sobre nós. Eu nunca gostei disso.
Assim como passei a não gostar de carros, depois que ela me largou. Sempre que passam por mim eu grito muito alto. Fico angustiado, você me entende.
Essa galera aí que fica largando comida pra gente. É meio automático até. Como se soubessem o que estão fazendo. E talvez saibam...
Às vezes eu acho que elas sabem.
Largam no chão, como tem que ser. Exatamente como eu gosto. Essas, que não se gabam pras outras, como se nos conhecessem, acho que essas estão certas.
Elas não tem a arrogância latente de querer nos dar banhos, nos vestir, nos usar para proveito próprio e depois dizer que é porque estão nos cuidando.
Nos dar nome! Ora. Pra sempre me chamarei Dimes.
E a rua agora é o meu lar. Sou livre.
Humano nenhum vai me usar pra dizer que é porque é uma boa pessoa e se preocupa com os animais. Quando na verdade tudo o que ela quer é ter algum outro ser pra suprir uma carência e ser espelho para refletir todos os seus costumes de gente. Eu sei porque tive que me acostumar a andar de carro com a Maria antes dela me largar, mesmo sem gostar.
Engraçado que ontem mataram o Antônio na sua própria casa e não vi ninguém reclamando. Inclusive comeram o pobre coitado, acho que era porque alguém tava ficando mais velho. Depois presentearam sua gordura aos que moravam perto. Muito gordo era o Antônio, mas gostava do estilo dele, sempre num lamaçal...
Enfim. Tu me entende né Sultão? Tu mora aqui faz tempo já...
Já deve ser sabido das coisas.
Vejo pelo teu rabo que ainda tenho muito o que aprender.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Embalagens


Comia um iogurte super-sem-gordura enquanto comentava com a amiga sobre como aquele mingo da outra turma era inseguro. Um piá bobo.
Ouvia a velha enrugada falando por trás do vidro e das camadas científicas removedoras de idade sobre o caos na saúde, as crises e os mercados, com ênfase especial na falta de segurança no estado. Um horror.
Saía do automóvel após desafivelar o cinto, pisava na calçada, olhava para o lado e atravessava na faixa, sendo atropelado de qualquer forma. Faixa e trânsito nada seguros.
Tu precisas de alguém que te dê segurança, senão tu danças, dizia aquele outro, com outras palavras, encabulando seu futuro eu pela gramática tortuosa eternizada pelas próximas décadas.
Quem melhor para cumprir esse papel do que alguém que não existe fora dele, que personagem melhor para disfarce do medo do que uma fantasia de palhaço, velho cósmico universal, MACACO ASTRAL, com sua enorme mão capaz de tomar e tapar todo o céu, mas não de calar tua boca antes que tu bostejasse culpando por tudo a todas as terceiras pessoas como te convém, uma mão gentilmente evitando a fala, a outra levando o indicador aos lábios, sssh, e então apontando um confortável assento, senta lá e deixa o pessoal em paz, não isso ele não faz, ora, o filho segue o exemplo do pai; herda, sob duras taxas, os seus bens, alguma virtude, seus graves defeitos; sim, o homem cria seu deus à sua imagem e semelhança, e esta criatura passa a agir conforme seu idealizador, cometendo as mesmas falhas, mesquinhando tanto ou mais; por que, então, faria a ti um bem que nem tu mesmo te faz, em especial, sugeriria, desentupir os ouvidos, lavar em um jato de água quente a imbecilidade da qual te recheaste.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Nomeie seus demônios


Existe uma tradição, um punhado de regras, um código de conduta, a tábua de leis; existe um comportamento certo e vários errados; existe sofrimento pregado pelos cantos, carne arrancada, pregos na cruz, prata no bolso, bolso do paletó, paletó de madeira, descanso perpétuo, silêncio sepulcral.
Existem dois tipos de pessoas, bandidos ou não; mortos ou vivos, ou mortos-vivos, terceiro sexo, quarto estado da matéria, quinta-feira pela tarde, sexto sentido, igreja do sétimo dia, oitava maravilha, nona sinfonia, dez anos se passaram, sim, contar até dez e ver se a raiva passa, raiva queima e não é azia, não é incêndio pondo abaixo os templos da mentira, erguidos como peste se espalhando na lavoura, jesuítas, catequistas, vendedores.
Para que serve o sofrimento eu não sei, eles que devem saber. Espalham a doença e vendem a cura, e ainda fingem que se importam. Sim, cuidaremos de vocês, na trindade você pode confiar, palavras ditas com um sorriso assassino, a confiável face daqueles que podem.
Quem salva o salvador? Que salva o salvador? Salva a si mesmo, apenas, e finge que poderia ter feito mais, mas não permitimos, sacrificou teu filho, é, por que não a ti mesmo?
Não, eu não preciso de um demônio para me acompanhar, não preciso ouvir, recitada em meu ouvido, a mágica fórmula do cumprimento de um código absurdo que somente serve a quem o cria.
Igreja, governo, sociedade opressora, tanto faz. Nomeie seus demônios como quiser, não vão me convencer.
  
(por Norik Cara-vermelha, de certa forma)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

I.I.


Acordei, foi um susto, acordei sem grito, assustado. Sentia as cócegas de um fio de bigode que não era meu. Olhos remelentos, não via de onde vinha a sensação de angústia. Não era apenas um fio, era um tufo significativo. Esfreguei a cara, pisquei olhando em volta. Não eram murmúrios que ouvia, apenas vozes em algum outro apartamento, esperava que não fosse o nosso. Falavam muita coisa, eu entendia pouca, talvez uma palavra, me salvaria o latim, falavam em algo paterno, tom de preocupação. Compreendo, também fiquei preocupado.
A sensação causada pelas cócegas era angustiante, estava no rosto, atrás da orelha, pelo pescoço, raspei as unhas, tirei tudo que podia, passou, mas não para sempre, nem o término é eterno. Sede. Levantei. Raios, estava no sofá, descobri ao pousar os pés no tapete da sala. Sim, lembrei, esquecera de ir para a cama, rádio ainda ligado, tocando bem baixo a mesma música, alguma coisa sobre a europa, sul. Banheiro. Lavei os olhos, mandei embora tanto quanto pude da preguiça, da confusão. Não vi bigodes, mas sabia que eles estiveram ali, de alguma forma.
Já havia passado por isso. Eles vinham, não se mostravam, apenas deixavam marcas e a angústia de não saber para onde haviam ido. Não seria capaz de segui-los, desentoca-los; subir a serra não bastaria. Sobre a mesa, vi alguma sujeira. Louça na pia, mancha de molho de tomate na toalha, um pedaço de espaguete fugindo pelo ralo. Nada daquilo era viagem minha.
Ouvi as pessoas falando, atrás de paredes. Não me dizia respeito, não me diziam nada, meus ouvidos não prestavam, eu estava prestes a prestar atenção; não conseguia. Percebi que falavam mais alto, mas ainda assim não entendia, o som era abafado, as palavras se ligavam umas às outras de maneiras incoerentes. Não vinham do apartamento de cima, me dei conta de que não morava mais em apartamento, acima do meu teto somente céu e uma mentira; e milhões de estrelas. Vi alguns fios na pia do banheiro. Mais deles no chão, perto do caminho que segue o cano que leva a água embora. A mudança é algo confuso, o sujeito se perde. Curvas. Alguém esteve ali. Um ou mais homens, uma mulher. Algum perfume ficou para trás.
Do lado do sofá havia uma taça, um restolho de vinho no fundo, cheiro de ontem à noite. Eu também estive ali, disso não há duvida. As falas paravam e continuavam. Chego perto da parede, extremamente próxima à casa do vizinho, o som parece vir dali, da casa daqueles vizinhos que nunca voltaram de sua viagem de férias, ou eu que imaginei essa explicação, talvez tenham ido embora e nada mais, muita gente tem esse hábito, mudar-se.
Paro perto da janela, uma cortina me proíbe: não verás. Faz sol lá fora, tanto faz, tanto sol, que calor, onde está o inverno que me prometeram, o tempo pretérito virou presente e nem percebi, passam-se instantes e eles voltam a se manifestar, essas vozes estrangeiras, um sotaque carregado, percebo que não vem da casa ao lado, ando em círculos, canção em repetição, uma frase se encaixa em meu ouvido, mastigo seu significado, desconheço-o, não desisto, sigo até a porta, trancada e sem sinal de chave, serei prisioneiro, claro que não, logo encontro a saída, assim espero, paro e penso, nenhuma pista, fio da meada, fio de bigode, encontrei outro, e mais um, um bigode inteiro me encara do terceiro degrau da escada. Sério. Seria imaginação ou haveria uma chave acima dele, sim, há, abri a porta.
Aquela voz fala em italiano, palavras que parecem inventadas, não as entendo, algo aqui e ali, apenas. Arrivederci, ecoam. Riem. Finalmente as reconheço. Volto para dentro, não há mais coceira. Há poeira em meu violão, há um mistério que jamais desvendei. Nenhum bigode, sem resto de vinho, foi só uma ideia presa, alucinação; casa cheia de italianos. Um copo d'água, outro. Na pia, um pedaço de espaguete se esgueira pelo ralo. Em algum lugar além da porta, debocham de mim num insulto inofensivo; riem, italianos imaginários.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Pia

O movimento é simples. A leitura, complexa.
E não é uma narrativa. É um escape. É fuga.
A água escapa de uma caixa, e não um box, que segue pelo cano, que vai até a torneira.
A leve abertura dos manípulos com a mão direita, e a água, quente ou fria, vai escorrendo. Tanto faz.
Em seguida, entram na orquestra, o sabão e um outro movimento distinto, a fricção do vai e vem, vem e vai, uma mão na outra. como quem faz planos maléficos, ou mesmo como quem não se importa, porque talvez chegue a esse ponto mesmo.
Sabão, detergente, só água ou sabão em pó. Vai depender do tamanho do estrago.
A orquestra da limpeza segue, removendo um a um os resíduos, germes e bactérias, a sujeira.
Sujeira grossa pede movimentos rápidos, semblante rígido. Leve, só esfregue, rapidamente e levemente, como quem tem frio.
Por fim se encerra a peça, como quem está caçoando. Ou, se preferir, como quem despreza. Tem também o método feiticeiro para aqueles que ainda não sabem distinguir a fantasia da realidade.
Um pano está ao lado para o último e derradeiro movimento. As mãos embrulhadas e o cuidado vai depender de uma perspectiva de tempo.

Lavo minhas mãos.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Poder e a Glória

Querem o mundo e o querem agora; podem querer e querem poder; O poder. São tantos lados correndo com o mesmo sentido.
Querem polícia, mas não ser policiados; liberdade suficiente para poder engolfar as correntes opostas; eu queria entender; querem encarcerar os hábitos contrários, mas assim como onde come um comem dois, todos se molham no mar de intolerância que jorram sobre os outros, ora, pode parecer que eu seja a pessoa menos inconveniente do mundo, estando tão acostumado aos meus próprios hábitos, mas habita aí um engano que cometemos a torto e a direito.
Isso, direito, o que é? Direitos humanos, direitos iguais. Direitos para quem eu decido que é direito, assim é fácil. O eu é a maior minoria do mundo e se vendo assim fica fácil desprezar as outras, tão pequenas, tão menores.
Querem ser um empreendedor de sucesso como o Silvio Santos, mas não querem um dia serem camelôs. Querem um omelete de ovos inquebráveis.
Eu queria dizer mais alguma coisa aqui no final do texto, mas deixei pra lá e não sei onde ficou. Queria ser escritor, mas não quis escrever.

Ranço.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Juntas


Tão especial, né, tão orgânico. Totalmente biológico. Essa carne e pele e osso, humano e mundano, cidadão do mundo. Bacana. Pensamento, reflexão, escolha própria, direito a opinião, tudo isso num organismo... vivo. É, uma vida. Uma pessoa.
Que superior que tu acha que é, por quais razões? Essa pele que não é de alumínio, esqueleto que não é de aço, isso te torna tão diferente de mim, ou esses teus olhos míopes que não conseguem diferenciar o milho da ervilha, o cachorro do tamanduá, será que é isso? Talvez o bafo pela manhã, a incapacidade de cumprir os próprios propósitos, a cara torta e as rugas sobre ela, não sei, nem tu. Prefiro precisar de óleo nas juntas do que pintura na cara, cheiro de flor no pescoço, bisturi nas fuças; melhor enferrujar, melhor virar sucata.
Diferente, hm, não, falando disso o que me vem à mente é um robozinho, uma pequena máquina de comer e cagar; uma criatura – espera aí, criatura alguém cria, mas quem criou, ah, tu não sabe, não é, o que tu acha que sabe é apenas uma crença, ou várias delas; enfim, aí está, algo ou alguém, comendo, cagando, vivendo, crescendo e depois morrendo, tirando um tempo para por a andar – criar, talvez - outro exemplar com o mesmo funcionamento, alguns defeitos semelhantes, os mesmos objetivos, ou falta deles, naquilo que aprende a chamar de vida, outra maquininha de estrutura frágil, programada com a mesma missão: viver e morrer, cagar e comer, reproduzir; criar de si uma réplica ingrata e infiel, que pode ficar não sem comida mas sim sem explicação.
Mas o pior é esse bom dia mecânico, dado por obrigação, não tenta me enganar, isso é o pior, eu sei que meu dia não te importa coisa alguma.

Máquina de cocô


-Matéria prima
-Dentes
-Língua
-Faringe
-Esôfago

-Estômago
-Intestino delgado
-Intestino grosso
-Ânus
Cocô!

Você é uma máquina de fazer cocô!





terça-feira, 14 de julho de 2015

Liturgia

"Dizem que"; não ouço, teimoso.
Ansioso, rançoso.
Falar de si: ciclo vicioso.
Gira em torno de um umbigo qualquer, roda o copo de conhaque, anda em círculos, indo de não saber a nem desconfiar.
Que deus que te abençoa? Aliás, como ele não o faria, ou tu inventaria para teu proveito alguém que te despreza? Não duvido, que tem gente que gosta, gosta de espalhar sofrimento.
Não que alguma melancolia permeando as tardes que não passam deixe de ter seu lado bom: proveito, algum prazer, inspiração. Mas ora, catequista, um ranço escorre no canto da boca motivado por essa palavra, esse ato desrespeitoso de doutrinar, ptuí!, espalhar a culpa entre os inocentes, ah para isso não há perdão, muito menos desse perdão vendido que tu ensina mas não aprende, isso não; romaria, cruzar em eterna angústia o vale de lágrimas, não, para quê? Ensinar a se ajoelhar, baixar a cabeça, não sou digno de que entreis em minha morada, mas quem te convidou?
Queimadores de bruxas; mas e que feitiço é pior do que adquirir o poder sobre milhões de mentes antes mesmo de estas virem à luz, essa luz que dizem ser deles, de um velho fodão que manda e desmanda, que anda e caga, que os deixa desabrigados, se aquecendo pelas orações que morrem no silêncio que sempre vem das bocas que morrem caladas, sozinhas, esperando a salvação prometida em mentira pelos mesmos que criaram a necessidade dela, pois, ora, eu não tive culpa, nem vou ter por vocês, velhos de saia, velhas de véu, contem outra que essa não pegou.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

É preciso partir, é preciso chegar

Tropecei porque corria.
Não parei para pensar: havia muito o que fazer.
Passei correndo, pés mal tocando o chão, empurrado ou puxado, havia pressa, algum lugar para chegar, pouco tempo a perder.
Freio.
Conhece DKV?
Ter pressa é, hm, é ruim, e não é bom.
É possível ser inteligente e ser burro ao mesmo tempo, conheço alguém assim, alguém além de mim.
Mas isso não importa.
Alguém me apressa, há tempos estou atrasado.
Batem na porta, ninguém se importa.
Quem não tem pressa não me interessa.
A mim sim.
Quando era pequeno, meus joelhos viviam despedaçados. Havia tempo para sarar, tempo para crescer.
Minhas costas doem, é preciso chegar, produzir, resultar, é preciso partir.
Por que a pressa, afinal, não sei, não me deram tempo de pensar na resposta, era preciso perguntar, cobrar, calamitar.
A previsão do telejornal era de tempos difíceis.
Não sei, há tempos que não me entristeço, o que não é ruim; mas parece que falta alguma orientação, de que lado fica o lado de baixo?
É difícil se orientar, pés no ar, sendo empurrado por um vento mecânico, giram as hélices, dão voltas os ponteiros, é preciso chegar, é preciso bater, vôo pela janela, no vôo não tem assento, mas no trem tem, ele precisa partir, mas não passa por aqui, ele e tudo isso, nada passa de ilusão.

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terça-feira, 7 de julho de 2015

Votos

Eu prometo te amar, te respeitar e ser honesta contigo sempre

Eu prometo me relacionar pelo simples prazer de compartilhar momentos contigo, trocar carinho, amar e ser amada, sem interesses ocultos
Eu prometo nunca te idealizar, me esforçar para te enxergar como tu é e jamais me relacionar com uma ideia de ti
Eu prometo não perder tempo com o futuro ou com o que a nossa relação pode vir a se tornar, eu prometo focar no presente e no que nós construimos no agora

Eu prometo te aceitar como tu é e aceitar o que tu está disposto a me dar, sem exigências e manipulação
Isso não quer dizer que eu não ficarei incomodada nunca, mas eu entenderei os teus defeitos como parte de quem tu é e aceitarei eles, mesmo que um dia eles façam com que um relacionamento não valha mais a pena

Eu prometo que não tentarei te possuir ou me fundir contigo, eu prometo respeitar a tua individualidade e teu espaço
Aceitar as nossas diferenças, que nunca dividiremos tudo um com o outro e que jamais compreenderemos o outro por completo

Eu prometo aceitar o teu espaço, as coisas que tu precisa fazer sem mim e os momentos que minha companhia não é bem-vinda sem me sentir ferida ou rejeitada
Eu prometo aceitar que tu vai ter atração e identificação com outras pessoas e me esforçar para não ter ciumes delas
Eu prometo não te exigir exclusividade, mesmo que te imaginar com outra pessoa venha a doer
Porque, apesar do medo de perder espaço, essa possibilidade (que irá existir de qualquer maneira) é melhor do que a ideia de te prender, te obrigar a te privar e te fazer negar algo tão natural

Eu prometo fazer o possível para manter uma relação fácil e leve, sem ser superficial e me cegar para os problemas que virão a aparecer
Eu prometo ser tua amiga, te aceitar como ser humano igual e parceiro de caminhada
Eu prometo aceitar o fato que pessoas mudam e se afastam silenciosamente, eu prometo compreender que pequenos erros do dia a dia aos poucos desgastam o sentimento e um relacionamento sem que ninguém perceba

Eu prometo ser honesta, te amar e te respeitar para sempre, porque mesmo quando nosso relacionamento mudar de natureza e talvez tu nem venha a acreditar mais nisso, eu estarei aqui

terça-feira, 23 de junho de 2015

c r o n o m e t r a d a

A diferença que encaramos como um ataque
O medo que faz que a gente fuja
A insegurança que nos leva a usar máscaras
A ansiedade que nos paralisa

O eterno medo de errar
A fobia de sentir dor
O pavor de não bastar
A tentativa de viver uma vida ilesa

Uma vida sem erro. Uma vida sem arrependimentos. Uma vida sem vergonha. Uma vida sem dúvida. Uma vida sem dor.

Uma vida sem surpresas. Uma vida sem histórias. Uma vida sem se encontrar. Uma vida sem o extraordinário. Uma vida sem amor.

A cabeça que não para de pensar. O ego que ainda se preocupa com que os outros acham. Uma vida que deixa de ser vivida em busca de certezas que não existem.

A sobrevivência controlada. Certificados de felicidade nas paredes e nas redes.

A ausência do envolvimento, do laço, da fraqueza, da franqueza, da nudez, das coisas feias. Pessoas plásticas, sem egoísmo, inveja, apego, raiva. Pessoas que não perdem a cabeça, que não abrem o peito.

A vida controlada. c r o n o m e t r a d a.



sexta-feira, 19 de junho de 2015

Woof!

“A preguiça tá grande”, disse o cachorro, ali na calçada, através de gestos, claro, pois cachorro não fala. Sei, há quem diria que fala, sim, que ouvem, respondem, entendem, sim, conversam: a pessoa e o cachorro. Ora, dão até nome e ainda acham que ele aceita, atende, gosta.
Aquele cachorro na frente do portão da vizinha estava gostando, ar meio frio, sol meio quente, espreguiçar; olhávamo-nos, ele e eu, eu com preguiça não de caminhar, mas de chegar onde ia.
Perguntou:
-  Que tal se eu morar por aqui?
Por mim não tem problema, só não vai cagar aí na grama.
Por quê não?
Ah, sei lá, não é legal, daqui a pouco o cara pisa em cima, fica fedendo.
Tua merda não fede?
É, fede, mas...
E o que tu faz com ela?
Ahn, eu...
Joga no rio, né?
É.
Pelo menos aqui na grama tu tem a escolha de ver e não pisar, saca.
Bom... é... mas caga aí na do vizinho, então, faz favor.
Não, não, cachorro não fala, não pode falar, nem fazer favores. Favor, fervor, coisas de gente. É, cachorro não reza, não precisa de céu, ele tem aquela calçada, aquela grama, o sol sob o qual se espreguiçar, agradecer por que, fez porque quis.
Seria ele parente do Pata, ou do Dimes? Parecia tão ruabundo quanto se ouve falar deles. Tão distantes, não tem como saber, ou a cachorrada é toda a mesma, filhos da rua, uma história esperando na calçada para um dia ser contada, não latiu, nem falou, palavras são dispensáveis quando se é um cão, um olhar, o olhar certo basta.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Debaixo do sol

O Daron estava certo e errado.
E não era só em Holywood. embora não fosse exatamente o que ele quis dizer.
O que ele quis dizer?
O olho dela tinha fechado muito lentamente, dando espaço a mais uma lágrima. No canto do olho.
No canto do ônibus. Em um dia quente sobre o sol. Contudo, mesmo olhando para o sol, não parecia haver mais muito. Não parecia haver esperança.
Sinto muito. Falou a lágrima. Não é necessário palavras para falar, nem ouvidos para ouvir. Não para o que não entrava na categoria de convencional. Corriqueiro.
As pessoas em volta, rolando. Como porcos num chiqueiro.
Era o fedor. O cheiro insuportável que o seu nariz não sentia. O horror assim como seus olhos não viam.
Saindo do ônibus ela não iria querer um cigarro.
O cheiro da fumaça não era mais agradável.
E todos acenavam, como se não se importassem.
As ruas empoeiradas pela imundície.
Mas era somente no seu coturno preto que a poeira engrossava, e somente no seu rosto delicado que o calor se fazia sentir.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Choque térmico

Lembrou-se de quando era uma criança. De tudo que viveu até ali. Ou do que conseguia lembrar.
Muita coisa perdida, depois recuperada e depois perdida novamente. Como se tudo o que tivesse feito fosse pelos outros e nunca por si mesma. E agora restava o vazio.
Era preciso lembrar também das palavras afiadas daquele cara na internet. A vida não precisa ser miserável. Era o que ele dizia. Ele e alguns outros poucos que, assim como ela, precisavam de um lembrete constante para sarar todas as feridas de uma sociedade doente em demasia.

Quando ela vagava por entre todos esses pensamentos, se deu conta que seus amigos não falavam com ela fazia uns minutos, estavam olhando o Faustão e suas canastrices. Vou embora, por fim disse.
Mais um dia que se vai. Um entardecer. Júlia vai ao seu lar, lar novamente. Escondido entre quatro paredes. Gosto de estar aqui quando posso, pensou. Mas isso já havia sido dito ou pensado. Não adiantava andar num caminho pisado por outrem. Nem mesmo descalço. No entanto, só se lembrou disso quando seu pé descalço pisou na laje fria próxima ao chuveiro, que logo transbordou de água quente.

Não se lava a alma com água e sabonete.

Era uma lógica perigosa, na qual estava entrando. Voltando. Não tem como entrar de novo onde já esteve mais de uma vez, não ela. Precisava da ardência do lembrete. Abriu os olhos ainda com o xampu. Era a mesma ardência, a que dói e que limpa.
Era o lembrete que quebraria a lógica, novamente, como tantas vezes já havia feito.

domingo, 7 de junho de 2015

CRESCER. Eu já fui criança

Observar o céu e contar as estrelas
Branco, azul, cinza, laranja, listrado, estrela cadente. Disco voador
Maria Fumaça e logo atrás a fumaça O.O 
Grande, tudo era muito grande
Uma imagem na lancheira, a fantasia me fazia entrar lá 
O tempo era distante, as responsabilidades, também
É... A roda girou e hoje eu vivo como os meus pais.
 

domingo, 31 de maio de 2015

Que deus? abençoe

Que deus?
O seu? O meu? O meldels...
Abençoe, lance suas bênçãos. Faça da minha vida uma miséria, um vale de lágrimas, uma tristeza sem fim.
Um amor ao medo, um medo d'Ele.
Ele que castiga, que mata, que inferioriza.
Ele que roga. Rogai.
Mas se você disser, diga apenas amém. Porque com amém você passa de bandido à bom moço.
Com o amém você vai do ruim ao bom. Ao passo que falar 'rogai', numa conversa, só te faz um louco.

Palavra da salvação.
Glória a vós senhor.
E teu cú também.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Bom-com-pão

Queria escrever algo bom.
Não algo que pareça bom, que soe bem, que faça bem ou que caia bem num cartão de formatura, que forma, formou-se o quê, vaso moldado pelo pensamento acadêmico, pré-dataminado, determinado a subir em todas as cadeiras que fez, destacar-se, obter colocação, nem escrever algo que combine com a cor daqueles olhos verdes cor-dos-olhos-dela-e-nada-mais, nem queria escrever algo que faça sucesso, nem que gere críticas, nem que aplique conceitos, gere preceitos, nem dividendos, não queria aperto de mão, nem tapinha nas costas, não queria ser o tal, não queria oba-oba, certamente aquele eba, que o jorro de alegria me lava não a cara mas a alma, suor não me incomoda tanto quanto choramingo, mas até ele tem suas razões, eu tenho as minhas, quais sejam espero descobrir algum dia, estou interessado em nenhuma teoria, certamente não, mas melodia, os orientais, tanto tenho para entender, mas nem entender me preocupa, desocupo os canais, desobstruir as vias, liga o pisca, filho da puta, leia-se a placa, leia-se a bula mas não muito, que remédio assusta e não se pode parar de tomar, tomar é comprar, comprar é matar, matar de remédio por goelabaixo, encontraremos a cura, não se preocupe, enquanto isso faça as anotações relevantes, ponderantes, penetrantes, entre-e-saia, há que se disfarçar os movimentos, ah, se eles descobrem esses passotes fora da linha, doutro lado da cerca, o que escreveriam sobre este ato infracionário, ora eu não sei, não se sabe ou não se diz, fingir não é saber, fingimos que não sabemos, enquanto isso penso na possibilidade, sí se puede, escrever algo bom.
Não, não. Algo ótimo.

Mundar

Modos estranhos.
Divertidos.
Modos que não mudam, mas não mudar é impossível.
Mudam.
Mas é impossível serem diferentes, eis que na mudança é que se mantém sempre como são: estranhos modos, nada há para entender.

Descobri que há muito que aprender.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

A proclamação

E foi então que a senhora da rua de cima, aumentou o volume da sua TV de tubo, para ouvir melhor os enlatados do sabadão monótono. Que algazarra nessa tarde, ela teria dito.
Eu acho que vão matar o Sultão. Antes dele proclamar. O Dimes quase teve um treco hoje de manhã, estava tremendo muito parecido com a betorneira do véio Sadi na construção da rua de cima. E, homem, só eu sei o quão terrível é uma betorneira sendo ligada quando você está com a sua garota no momento da varde. O Dente Massado sempre avisou pra cuidar com os pedreiros. É uma enrabada atrás de outra gargalhada e assim vai.
Mas não foram eles que vieram buscar o Sultão de madrugada. Eu estava indo comer um lixo perto do valo do mutirão quando vi as luzes. Fui atrás gritando como sempre faço, mas só depois fui ver que o Sultão havia sumido.
Só pode ter relação com a briga que tivemos com os sabujos lá atrás do galpão do Roque. O Sultão sempre foi tinhoso e ainda ameaçou o pessoal. Diz ele que os territórios deles iam fazer parte da gleba nossa.
Mas agora me preocupa o estado do Dimes e o Dente Massado só quer saber de fazer peregrinações até a praça do Índio.
Pra mim eles sabiam que a proclamação ia ser feita hoje. Só espero que o Sultão consiga escapar gritando.

terça-feira, 12 de maio de 2015

O Suco

Pode-se sentir um aperto. É metafísico, mas dói um pouco ou muito a espremência sobre o peito; basta ser vivente, não há quem não experimente. Não que faça mal. Não faz. Também talvez não seja bom, quem sabe, é difícil observar os mesmos sintomas quando eles sempre mudam.
Falta espaço no mundo, sobre espaço no espaço. Esprememo-nos na superfície de um planeta sobre a qual, ora que conveniente, nascemos. Aperta a mão, rói os dedos, cruza a faixa de pedestres, tudo no aperto de quem vive dentro de uma armadura de pano.
Tudo isso tendo de teto uma placa de concreto ou um céu tão abstrato, tão amplo, tão incompreensível que se sente no peito um aperto, um verbo espremer, esmagar até que se pinga alguma coisa, seja palavra ou suco de laranja, não difere muito, que em nenhum de nós a ciência me disse onde fica a consciência.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Sobre Segurar a Carga

Numa rua perto de casa, havia uma academia e por ela passavam pessoas pesadas ou leves, carregando nos ombros um par de pesos ou uma mecha de cabelos; erguiam os pesos, pesavam as palavras, iam, ficavam e voltavam, pensando que um dia ficariam em forma; um dia de cada vez: assim passaram-se as semanas e os anos, e me atrevo a pensar em como pesa essa palavra anos.
Silêncio!
Vultos esquisitos tentam ser ouvidos acima da chuva, mas não quero ouvir mais nada enquanto tento escrever.
Passaram instantes de distração e empilharam-se as carcaças irreaproveitáveis das datas que passaram, umas de boa lembrança, outras de ressaca ou dor de ouvido, reduzidas à quase igualdade pelo peso que podem possuir depois de terem sido usadas, viradas do avesso, drenadas, sugadas, riscadas para sempre do calendário que carrego no peito, folhas contadas mas não por mim, que não sei com quantas ainda conto.
Os bipe's e os bit's me ferem a carne, a cada vez que as vozes dos vultos se esfregam à alturas maiores que o som da chuva, enquanto tentam entender-se, explicar-se, dar razão e sentido ao número infindável de caracteres que pretendem enfileirar.
Não que isso faça muita diferença.
De certa forma, até entendo aquelas pessoas erguendo os pesos, repetindo o esforço até que eles fiquem leves, refletindo sobre esses borrões confusos até que eles desapareçam.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

I did it

O fiz.
Fiz porque quis, sei bem.
Estava bem comprido, mas nunca seria demais.
Numa vez foi quase e na outra também.
Não sei o que me deu, mas cortei o meu cabelo.
Foi um bom tempo atrás, os dias agora são outros, outra coisa, outros ventos.
E o vento balança na minha cabeça: cachos mal comportados de um piá resmungão.
Foi preciso que eu o cortasse pra saber o que isso significava.
E pode não parecer muita coisa, mas para mim diz muito, pois deixei meu cabelo crescer de novo e sei porque o fiz.
Fiz porque quis.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A Caixinha de Música


Tinha história, aquela caixinha.
De musiquinha e historinha.
Por que eu não a tocava?
Bem, eu não sei.
Fazia falta a ela; alguém pra conversar, jogar-se fora.
Ficar preso ali dentro era um saco, mas nada pior do que andar por aí habitando um corpo sem cabeça.
É isso.
Era apenas rock'n roll, mas eu gostava e não trocava por quase nada.
Um toca e o outro conta, dupla sonora.
Da historinha eu não lembro, mas não começava com era uma vez, porque era sempre a mesma coisa.
Mas é isso.
Para alguns, uma bailarina numa superfície espelhada.
Para outros, a caixinha de música é um amplificador bem mais pesado que o ar, capaz de abrir crateras estratosféricas na superfície lunar.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Puta que pariu, roubaram o aquário!

terça-feira, 14 de abril de 2015

Bogas Borbulhantes

Eu não sei o que dizer.
Poderia parir uma bola de sebo ou tentar verborragear até achar algo que fizesse sentido em meio ao gorfo, no angu.
Seria uma fraude.
Mais ou menos do que isso, charlato.
É... uma prática que não me atrai, mas que as vezes sou incapaz de evitar, tal qual as reticências que acabo de cometer.
Ara, é o que acontece na vivência de um pangaré deste naipe.
As vezes, o Macaco Astral tem mais é que se calar. Mas não quer, não, não quer.

terça-feira, 7 de abril de 2015

No início era eu, o Dimes e o Pata, ou Pedro, ou Paulo. Paulo Portela. Não tinha um nome específico. Acho que Pata era o mais chamado.
Homem, aqueles eram os tempos! A comida era frequente e o conforto bastante. Bastava.
Perseguíamos aquelas grandes máquinas barulhentas. Dimes dizia que era o início do fim da tranquilidade. Hoje, imagino que ele esteja certo. Mas sei que tranquilidade nunca me encheu a barriga. Conforto também não.
Uma vez pegamos umas fêmeas, que dia de sorte. Uma pra cada um. Tivemos que brigar com o sabujo da rua de baixo porque o Pata era muito possessivo. No fim ele ficou nosso amigo, o Dente Massado, porque faltava dois dentes.
Sobre garotas ele tinha sábios conselhos, até mesmo o Pata começava a ficar esperto. Morrer nas ruas não é coisa que dá certo. Sei porque o Dimes muito se lamentava a morte da sua mãe. Ouvi dizer que todas as costelas foram quebradas.
Hoje eu estou velho e os tempos são outros. Outra rua. O conforto quase basta, e a comida enlatada, arroz, galinha, mandiocada. Claro, sempre sobras. Dos outros habitantes que, numa ação robótica quase, depositavam do outro lado da estrada.
Pata morreu semana passada. Fiquei triste. mas não gritei de noite. O Dimes ainda está por aí, umas duas ruas pro lado, coitado. Já levou até pedrada.
Hoje, há outros no nosso lugar, aprontando. Se aventurando. Até que o corpo diz que chegue.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Helpless


Não havia peixe ali, haviam dito. Mas havia água, algum deus quis, e, se ele quisesse, sairia de lá alguma coisa. Tentou de novo; nada. Ondas minúsculas caminhavam para longe do pouso do anzol, um ar frio levantou a gola da camisa, protegendo o pescoço. Se tivesse um barco, embarcaria nele e pescaria aquele monstro perpétuo que o assolava lá do meio do lago.
Mas havia madeira, algum deus a plantou ali, tão próxima da água, e alguém que conhecesse o ofício poderia produzir um barco a partir dela; não era o seu caso, e seu Moacir lamentaria mais este infortúnio. Soube construir sua cabana e ela tinha goteiras, mas disso a raridade das chuvas não o permitia reclamar. Pensando nisso e sabe-se lá em que mais, recolhe a linha mais uma vez, sem tirar qualquer fruto dela, preparando o braço para tentar mais uma vez, tantas quanto forem necessárias, pés cravados na beira do lago, aquelas ondas demarcando domínios que não são seus, verdadeiras fronteiras a flutuar.
Poderia construir uma ponte, chegar mais perto, encarar o monstro, derrotá-lo sem sacar armas, pescar sem uma vara; bolear o braço cansa, vai para casa sentar um pouco, cevar um mate, de repente sentiu sede, o ar é seco e frio, sopra vento afiado na cara, a porta de entrada do lar é um convite. Pela janela, mira o lago e pensa que aquele demônio não poria a cara para fora assim, sem mais nem menos, e talvez a solidez de uma ponte o mantivesse a distância.
Há apenas sua linha de pesca, e os anos a tornaram capaz de voar tão longe, e há vento, pois algum deus, talvez o mesmo de sempre, quis assim, e seu Moacir lança seu anzol cada vez mais longe, cada vez mais perto da atroz toca subterrânea que aquele, aquele... monstro deve habitar, que não é possível que seja diferente.
Seu Moacir não sabe nadar, que deus nenhum jamais lhe ensinou, criou-se peixe e criou-se homem, uma coisa não é a outra e então, então não há como ir lá ver o que há, resta imaginar e lançar a linha, a linha voa sem passarar, não tem asa e por isso cai, cai tão perto que nunca é perto o bastante de onde deveria chegar, e seu Moacir sabe que é velho e logo cansa mas ainda é jovem, jovem demais para encarar aquela água escura, mas um dia ele chega lá, um dia ele toma coragem e vai encontrar a mulher, tirar ela lá do fundo, onde é prisioneira, só pode estar presa, somente assim se explica ela ter entrado e nunca ter voltado.

segunda-feira, 16 de março de 2015

A Poison Heart

Não é meu tempo nem meu dinheiro o que querem de mim; desejam minha carcaça e todo o proveito que pode existir na obliteração dela, inclusive, é claro, uns poucos trocados que possam arrancar no processo; pisar é pouco, sapateado vem mais ao caso, marcham a marcha que não é a do povo cananeu, é o desfile da selvageria com que perpetuam seu sistema de existência; fossem abutres, quebraria seus bicos;

Anseiam, no seu coração venenoso, pelo poder, pela ascenção, fincar a bandeira, meter a mão; de fato, poder-se-ia representá-los como uma grande piroca voadora que nos tenta sodomizar sempre que pode.

Planejam, em sua mente vil, um movimento bem disfarçado, uma articulação além da minha visão, planejam cravar as presas e preparar o jantar. Ara, azar o deles, eu tenho para mim o meu antídoto, foda-se o veneno.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Macaco Astral

Na extensão de seu braço vibravam notas de rancor, flores roxas que não eram de amor, vitupérios querendo vir à luz. Queria falar e dizer o que pensa. Macaco Astral tem opinião, ara veja só, que improvável, que insuportável ver aqueles braços peludos, não há problemas nas pelugens, e sim no que eles fazem, aqueles braços que descem e sobem sem ordem nem ponderação, suas garras dilacerando tímpanos, martelos e marretas batendo na madrugada, marcando o passar do sono que não vem, lá vão aquelas mãos sem oposição, sem polegares, exprimindo uma revolta com tantos alvos indefinidos, atirador franco, sincero, tal qual aquela vadia da página azul, tudo muito verdadeiro, o Macaco Astral se expõe e se defende, dispara e nunca recua, trepida, tripudia e trepa na sua máquina de escrever, e troca o papel, e trocar de papel nem pensar, segue o curso, pragueja curses, que macaco canalha, biltre astral, não nega a que veio, não é apicultor, não filosofa, não para pra pensar nem compra ações, não analisa o mercado, não especializa, tem conta e banco, mas não tem talão, nem cartão, deita no banco quando tem de descansar, descansa enquanto conta quanto tempo terá para martelar na próxima noite adentro, rasgos trovoantes num papel sem cor, sem cansar, ele tem opinião e tratará de manifestar, o Macaco Astral não cala, não.

sábado, 7 de março de 2015

Fazer de conta




Tem gente que vive num mundo de faz de conta, faz de conta que vai ali ser feliz, faz de conta que tem amigos, faz de conta que tem namorado, cônjuge ou companheiro, faz de conta que é pop, faz de conta que tem o rei na pança, faz cara de rica.
Fazer de conta e depois fazer as contas, perceber o quanto se consegue ser boçal ao ponto de se sentir importante, legal, amado.
Fazer da vida um faz de conta é viver enclausurado na mentira, é não viver verdadeiros momentos felizes, é ser um refém de si mesmo, mal resolvido.
Fazer de conta; eu faço de conta que sei escrever =p

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Laboríntico

O longo corredor desabrochou em labirinto. Poderíamos andar devagar, por que correr? Parar aqui e comer uma pêra, olhar um quadro naquela quina, querer um sorvete, escolher o caminho do meio na próxima bifurcação; Pode até dar mais trabalho, mas também dá mais gosto.
Caminhar de mão dada e dando belisques no dedinho alheio; seguir pela saída e encontrar uma sombra bem boa, construir um abrigo, enroscar as pernas, estica-las, fechar os olhos por um instante sentindo o conforto que nenhum sofá proporciona, a suave sensação de ter encontrado um lugar no mundo, um paraíso entre um par de braços.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sacro

Seria um homem santo, se soubesse ser assim.
Não incomode aquele sujeito.
Ele poderia ser tanta coisa, uma pessoa sagrada.
Poderia caber em uma palavra,
mas uma longa conversa não bastaria.
Àquele homem nada basta.
Não o chame de santo em sua frente,
apenas sorria e saia de seu caminho.
Lutaria, se houvesse razão.
Imaginaria algo que pudesse parar a carreira lomba abaixo que arrasta a nossa santidade à insanidade.
Fala com boca seca, palavras secas, nenhuma água veio dos céus.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

De onde vem?
Essa voz maravilhosa, quem és?
De preto e de branco, de sorrisos e encantos, que dentes!
Melhor seria nem saber ou não poder saber?
A verdade é que hoje está logo ali. Exposto e escondido num mar aberto, como uma ilha ou um caminho pisado.
Já sei o nome, o que faz, a data de nascimento, até algumas preferências sei eu.
Já é possível apontar o dedo e dizer.
É mais difícil mas ainda se tem a escolha do não saber. A magia do não saber. A pretensão do imaginar.
Daria pra ficar horas pensando. Não mais.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Notícias lemos, mundos criamos

Tá. Mas e se fosse diferente?
A unanimidade da comemoração do baleado. O credo, depositado nas histórias inventadas.
Eu falei pouco. Falei menos do que ouvi, e vi mais do que olhei.
O que seria diferente? Se até ti chegassem as cores, a alegria e somente?
Se das barbaridades que conhecemos todas, pensamos que miserável são as nossas vidas.
Mesmo a miserabilidade precisa de um sustento, como um cão precisa de um lar.
E se não prestássemos atenção? Como aqueles que estão inventando a miséria. Como a constância e a insistência no engano. Como o ódio de selo oficial, estampado.
Como seria o seu mundo então?

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O dia que Chico chorou

Chico é um cara normal.
Poderia ser eu ou você. Chico trabalha, e só trabalha. Chico já estudou mas não quis virar doutor.
Chico, o que você fez? Magoou alguém. Não fez o bem.
Chico! Lhe apontavam os dedos. E os dedos... os dedos falam.
Mais do que falam, gritam. Xingam.
Então Chico é muito xingado. É.
Chico já tentou escrever muitas vezes em vão; Começou, continuou e parou.
Tentou falar. Tentou consertar, mas não haveria conserto. Nem mesmo concerto.
Uma orquestra talvez. Uma junção de todos os gritos apontando seus erros. Um coro que dá nascimento. Um coro que faz Chico nascer novamente, diferente, com outra cara. Um cara do comercial.
Um dia Chico ouviu um muito obrigado. Na sala de espera. Do Doutor Ricardo. E, ressabiado, colocou empenho em sua investigação. O erro não estava ali. E sim um acerto.
Logo depois Chico foi informado. Um câncer. Estava tomado.
E isso era tudo. Era muito.
E nesse dia apenas, Chico chorou.

Cinco dez quinze

Um abraço. Um amasso.
Uma dor depois do calor. O frio da lembrança de como era a felicidade. O abrigo danificado.
A busca. A luz e o esplendor que no futuro serão referidas como coisas que duraram.
E cinco anos se passaram.

A irresponsabilidade. A diversão. A vida eterna fora do vale de lágrimas.
Um abraço bem dado. De hiperatividade, um bocado. "E eles quase se amaram."
E dez anos se passaram.

As marcas da alegria intensa. O adeus da infância. O início da astuta elegância.
A promessa e a mentira. O arauto das regras.
Os heróis. O bem e o mal. Tudo o que é agora e tudo o que já se foi.
Lembranças que marcaram.
E quinze anos se passaram.

E a pergunta que não cala. A pergunta que brota a angústia, o pavor humano e o tempo que passa voando.
Até quando?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Não é por nada

Não é algo que deixe de não ser ruim, usar mais de uma negação na mesma frase. É uma forma de confundir o que estamos dizendo, evitar a cara feia que uma frase assertiva tende a apresentar. Tá aqui, embrulhadinho, aquilo que eu tinha a dizer, até mais. Não que isso mude muito, o destinatário tem sempre de decifrar o que queriam dizer aquelas palavras; isso, as palavras são uma cifra, algumas chave, outras fechadura. Algumas, feito coice & ferradura, golpeiam logo de cara o cidadão, erguendo crateras de incompreensão. É muito fácil não entender. A primeira impressão de alguma coisa vai ser uma versão pouco alterada da impressão anterior, a zero, a do pré-conceito, sim, chegamos a ele, e quanto menos se pensa sobre a novidade, mais provável que ele perdure. Talvez por isso seja uma boa, a gente pega umas palavras e obriga as pessoas a pensarem quando lerem, desembrulhando todas aquelas negações, toda aquela mascarinha que encasca o significado que talvez esteja lá dentro. Mas se cada bala de funcho do pote tivesse mais uma casca, será que o Adão não ia deixá-las pra lá? Não é por nada, não, mas nem sei.

Eu ainda gosto de viajar

Eu gosto de viajar. Ainda. E você?
Faz bem, alivia, diverte. Maravilha.
Assim falou Jeremias.

Além de viajar, eu gosto também de não receber uma pressão para fazer-lo, gosto de fazer por conta, espontâneo. Não quero ser forçado a fazer isso. Assim como não quero ser forçado a optar por beber em um restaurante, pagar um preço muito maior pela bebida do que pela comida. Não gosto de me sentir obrigado a fazer. Todo mundo tem um caminho. É nisso que eu acredito.
No meu caminho eu gosto de evoluir, em diversos sentidos. O que eu não gostaria é de dizer para o Outro que pra evoluir ele precisa andar como eu, fazer o que eu faço, querer o que quero. Acharia um saco. Eis que desembainho a minha espada em uma nova cruzada. Inevitável.
Eu preciso viajar para ser feliz? Talvez.
O talvez é bom. O talvez talvez me dê chance de me redimir, talvez me faça ver que estou errado. Talvez isso faça com que o Outro tenha chance de se acertar também talvez.
E foi justamente na separação, que tal vez eu me vi embrulhado em um casaco, ou uma jaqueta de louco, aquelas de hospício, tal a força que usaram nessa tal de vez.
Talvez eu seja maluco por estar vendo coisas nas entrelinhas, porque o que digo não foi percebido logo de cara na máscara das palavras.
Mas se as palavras já usam máscaras, não é para decifrarmos suas intenções?
Enfim, no fim tudo o que quero dizer é que ninguém precisa fazer o que alguém diz para fazer, para evoluir.
Porque talvez é uma ilusão.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Eu sei...

Porque em toda verdade que se chega, inicia-se uma nova cruzada.
Se esta for uma verdade, então, eis mais uma cruzada.
Porque verdade é profundo. Porque é de verdade, é a própria verdade. E você quer que os outros a vejam (invejam) e lhe parabenizem por semelhante descoberta. E isso não está certo.
O certo não precisa ser verdade. A verdade precisa ser certa, dentro da sua lógica, e se ela lhe faz bem você a quer dentro dos outros mundos, das outras bolhas. Mas pra isso você normalmente esquece que é preciso saber da verdade das bolhas desses mundos. Mundos moribundos. Não confunda.
Surge o problema. O problema do outro. A mentira. Porque não é a sua verdade.
A verdade é simples. A verdade não é fácil. De verdade.
Terminada a cruzada pode embainhar sua espada.
E parta para outra encruzilhada.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Planícies Montanhosas

É legal ter um plano; se der errado, plano B, acabou o disco, lado B, B-52, boom! Um planisfério - é plano ou esférico? A planície é algo plano, achatado, chato, um tédio e as montanhas: um perigo. Um par de nádegas ou um par de tetas, carnes montanhosas, convites, embustes, todos um perigo. O plano é não planejar, deixar rolar, mas na planície não rola, deixa pra outra hora, cair não é rolar, lá dos cumes que se cai, não se rola mas se chega a planície. Toneladas de pressão, aplaina as carnes do vivente que despencou lá de cima. Se não fica plano, pelo menos não planeja mais, não.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Olhos

Fecha os olhos.
Cierra tu ojos.
O que você vê?
Um monte de imagens esquisitas, muitas cores, formas e às vezes lembranças. Seria isso mesmo que estaria escondido atrás dessas pálpebras finas?
O que estamos vendo é o que é realmente? Ou é o que queremos ver?
Quando você fecha os olhos, você vê o que é, ou vê o que você quer ver?
Ou você estaria vendo um reflexo? Um reflexo de todas suas escolhas destrinchadas até aqui? Um reflexo do que você é? Do que quer ser? Você vê o que não existe? E, se não existe, como pode ver?

Fecha os olhos.
O que você vê?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Teto

O buraco perturbava. Mas Fusco não sabia. Não poderia enfrentar a luz que vinha e os monstros que ali se escondiam. 
Por vezes, a curiosidade surgia. Principalmente quando via o fundo mudar de azul celeste para vermelho alaranjado e então negro. Não o mesmo negro. 
A escuridão ele conhecia. Das sombras era amigo. 

Assim, o buraco perturbava.

Fusco vivia em um pequena comunidade, conservadora demais para admitir um explorador.  
Consciente disso, ele passou sua vida evitando o buraco. Já havia sofrido demais quando sua noiva caiu e nunca regressou.

Fusco não voltou a ver Aurora.