sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Sobre um olhar atravessado


Por sobre o muro, passa uma espiada envolta num disfarce que não a cobre totalmente: aquela pessoa me despreza, bastando, para isso, os poucos motivos que a dei. Não conhece meu nome, não sabe onde vivo, se vivo, não sabe do que gosto nem do que ouço; me viu, e isso bastou.
Não me é novidade. O cara vê a pessoa transformar a expressão num momento e seguir adiante andando, como se tudo não tivesse acontecido. Senti saudade disso, fazia mais de ano que não me deparava com isso, que antes era tão comum. Atribuo esse tratamento, numa percepção provavelmente grosseira, supostamente baseada no que sei, a minha aparência que volta a ser ofensiva para alguns, esses que agem do jeito que acabei de contar.
Quando cortei os cabelos, me surpreendia quando esperava ser olhado com desgosto por pessoas na rua e elas simplesmente não o faziam. Eu não fazia, então, parte de nenhuma minoria enviesada, estava tudo bem para eles.
Hoje pela manhã, caminhando contente por uma calçada, encontrei de novo este velho conhecido, aquele olhar neutro se transformando num esgar levemente indignado com alguém que se apresenta por aí de maneira tão ofensiva. Percebi isso e fiquei feliz, matei um pouco a saudade dessa sensação. Segui pensando na importância desse momento, dessa provocação cotidiana, sobre o que significa, num momento e num local onde as pessoas simplesmente não conseguem suportar ser ofendidas pelo que as outras falam, onde um comentário pode facilmente eclodir em um processo, onde as pessoas caçam e pretendem destruir, calar, suspender, invalidar, reprimir opiniões contrárias as suas crenças, bem, me sinto feliz por poder ofender as pessoas visualmente sem fazer esforço algum para isso. Me recolho na confortável posição de ser assim e nada mais, andando desgrenhado por onde quer que as calçadas me permitam.

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