quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Entre a Lixeira e Eu


Eu encontrei uma história no lixo. Mas não uma história impressa, nem datilografada ou manuscrita. Não era um livro, essa história ainda não estava num papel e o meu papel seria escrevê-la. Teria que escrevê-la, simples assim: cumpri minha tarefa de levar o lixo para fora e lá fora encontrei outra. É isso, a vida lá fora é cheia de encontros. E tarefas.
A história que encontrei é sobre um velho casal, um par que não se completa à primeira vista, que parece não combinar. Vi-os de relance, por obrigação, sem poder evitar, sem saber que estavam por ali até descobri-los num meio segundo de contato visual. Não foi difícil afugentar pensamentos de imediato mais profundos; estava atrasado e não poderia ficar por ali muito tempo. Mas enquanto seguia meu caminho, depois de ter fechado a tampa da lixeira, me permiti pensar um pouco nos instantes que antecederam a chegada deles àquele local onde os encontrei. Teriam sido levados pela mão, trazidos até ali por alguém que não os queria mais por perto?
O fato é que era um par peculiar, e somente as improbabilidades do destino, que ousamos supor não exisitir, bem, somente elas poderiam causar uma união deste tipo. Ele, um sapato preto feminino. Ela, uma sandália marrom masculina. Lá estavam, lado a lado, descartados juntos por alguma história confusa que levou a este suposto fim, que somente é um fim para quem os deixou por lá.
Enquanto eu caminhava, esperando chegar logo a um lugar onde pudesse anotar meus pensamentos sobre o caso, pensava no futuro que esse par teria e em como estavam condenados a serem separados assim que alguém que, como eu, abrisse a tampa da lixeira mas que, ao contrário de mim, tivesse pelo caso um interesse prático. Pensei, também, se em breve haveria alguém menos descalço por aí, talvez até, sem se importar, usando aqueles dois calçados, chamando atenção pela discordância entre eles, em tantos aspectos; um de homem, outro de mulher, e a pessoa caminhando meio torta pelo pequeno salto que o sapato preto tinha, mas tudo bem, quem sabe esse alguém que os encontrou e os quis, quem sabe tivesse uma perna um pouco maior e essa diferença fosse exatamente compensada pelo salto preto, quem sabe essa pessoa fosse metade mulher e metade homem e aqueles calçados representassem perfeitamente essa essência, quem sabe eles combinariam perfeitamente entre si, finalmente, com a roupa de tantos tons e costuras usada por aquela pessoa que os trouxe de volta a vida, nisso tudo penso lembrando daquele par, e pensando nele me recordo: eram dois pés esquerdos. Teriam que ser encontrados por alguém bem peculiar.