Eu encontrei uma
história no lixo. Mas não uma história impressa, nem datilografada
ou manuscrita. Não era um livro, essa história ainda não estava
num papel e o meu papel seria escrevê-la. Teria que escrevê-la,
simples assim: cumpri minha tarefa de levar o lixo para fora e lá
fora encontrei outra. É isso, a vida lá fora é cheia de encontros.
E tarefas.
A história que
encontrei é sobre um velho casal, um par que não se completa à
primeira vista, que parece não combinar. Vi-os de relance, por
obrigação, sem poder evitar, sem saber que estavam por ali até
descobri-los num meio segundo de contato visual. Não foi difícil
afugentar pensamentos de imediato mais profundos; estava atrasado e
não poderia ficar por ali muito tempo. Mas enquanto seguia meu
caminho, depois de ter fechado a tampa da lixeira, me permiti pensar
um pouco nos instantes que antecederam a chegada deles àquele local
onde os encontrei. Teriam sido levados pela mão, trazidos até ali
por alguém que não os queria mais por perto?
O fato é que era
um par peculiar, e somente as improbabilidades do destino, que
ousamos supor não exisitir, bem, somente elas poderiam causar uma
união deste tipo. Ele, um sapato preto feminino. Ela, uma sandália
marrom masculina. Lá estavam, lado a lado, descartados juntos por
alguma história confusa que levou a este suposto fim, que somente é
um fim para quem os deixou por lá.
Enquanto eu
caminhava, esperando chegar logo a um lugar onde pudesse anotar meus
pensamentos sobre o caso, pensava no futuro que esse par teria e em
como estavam condenados a serem separados assim que alguém que, como
eu, abrisse a tampa da lixeira mas que, ao contrário de mim, tivesse
pelo caso um interesse prático. Pensei, também, se em breve haveria
alguém menos descalço por aí, talvez até, sem se importar, usando
aqueles dois calçados, chamando atenção pela discordância entre
eles, em tantos aspectos; um de homem, outro de mulher, e a pessoa
caminhando meio torta pelo pequeno salto que o sapato preto tinha,
mas tudo bem, quem sabe esse alguém que os encontrou e os quis, quem
sabe tivesse uma perna um pouco maior e essa diferença fosse
exatamente compensada pelo salto preto, quem sabe essa pessoa fosse
metade mulher e metade homem e aqueles calçados representassem
perfeitamente essa essência, quem sabe eles combinariam
perfeitamente entre si, finalmente, com a roupa de tantos tons e
costuras usada por aquela pessoa que os trouxe de volta a vida, nisso
tudo penso lembrando daquele par, e pensando nele me recordo: eram
dois pés esquerdos. Teriam que ser encontrados por alguém bem
peculiar.