Ora,
eu tenho desde o dia em que, inesperadamente, pelo menos para mim,
que nesse ocorrido sou dos mais inocentes, nasci, uma alma de ser
humano, pois a única possibilidade de alma é a humana, isso
aprendi anos depois do mesmo dia ao qual me referi há pouco. Pois
tendo essa tal alma e sendo, talvez por obrigatoriedade, humano,
coube a mim uma responsabilidade intransferível, o papel de
negociador entre um corpo de carne, uma mente de animal e uma suposta
consciência de ser humano.
Ao ser-me transferida,
ou informada, de forma não devidamente instrutiva, esta incubência,
em momento algum foi esclarecido qual destas três partes eu
deveria chamar de guia. Também não pude descobrir, fosse por
leitura de escrituras sacras, ou por descoberta própria, qual destas
três partes era eu, se é que era alguma delas, se é
que eu era alguma coisa.
Pois,
analisemos a relação do suposto eu com cada um.
Ao
meu corpo não sabia dominar em funções, em forças, em
resistências, senão debilmente. Não tínhamos a afinidade própria
de quem foi concebido em conjunto, de quem foi feito para conviver em
harmonia. Fiz e faço uso dele, instrumento que é para as básicas
tarefas e subordinações das quais aprendi a depender. Porém, falta
nesta relação algum alcance, a capacidade do meu corpo
levar-me a lugares que outras partes de mim desejam ver, ter,
penetrar. Não pode ser este, portanto, a responder pelo meu eu.
À
minha mente não sabia controlar e direcionar em ímpetos, vontades e
desejos. As satisfações de que necessitava, conquanto as tentasse
obter com o uso do corpo, não as obtinha de todo, e nisso faltava a
mim ser um apenas com a suposta mente. Servia-me, ainda que
não de forma totalmente precisa ou incontestável, para me informar
sobre o entorno em que me encontrava em dados momentos em que a minha
consciência pudesse estar desperta.
Eis,
então, que falo aqui sobre a terceira das partes que julguei
existirem compondo o meu ser. Ora, esta foi, durante muito
tempo, aquela que pensei devesse ser a ponta onde se encontrava a tal
alma de que há muito falei aqui, por mais difícil que fosse
separar ou pensar separadamente sobre ela e a mente de que
falei antes. Pois no raio que explode um pensamento dentro da cabeça
de um ser humano, ou seja, parte de seu corpo de carne que
vive e morre, tomaria papel nesta explosão uma mente que sente e
reflete o que ocorre em volta deste corpo, e combusta esta e
outras percepções num suposto pensamento que ocorre então
num ponto imperceptível da mente e que vem, agora ou depois,
se é que vem, a ser recordado, interpretado, em vezes negado, pela
consciência, que habita um lugar que não sei dizer qual é,
se é que habita, e pela qual passam apenas algumas das sensações,
ideias ou percepções da mente, ou interpretações feitas a partir
do que recebe o corpo, também são poucos que são pegos pela
consciência. Pois, incapaz que é a suposta consciência
de estar ciente do que ocorre a meu corpo, minha mente, acima de
tudo, a mim, seria ela então mais uma impossível eleita para
chamar-se de eu.
Posto
que não me encontro, pelo menos não de forma garantida e aceitável,
em nenhuma destas três partes, que não sei se deveriam ser
contadas em três, se é que deveriam ser contadas, caminho então em
direção a uma questão que vem a ser a impossibilidade de
reconhecer-se-me caso tivesse a oportunidade. Ora, nunca tendo visto
antes o seu reflexo, qual animal, ao entrar numa casa de espelhos,
saberia que aquelas lá são diversas cópias suas?
Ora,
falo em animal pensando, e isso faço por ser mais que meramente um
deles, pensando, pois, em que existem animais que não são humanos e
animais que são humanos, e qual me foi ensinada a diferença entre
estes dois? Supostamente uns, nós, teríamos a nossa consciência,
n'outra explicação a razão, raciocínio, digo, e, n'outra ainda,
pasmo, uma alma. Pois, cheguei por conta de reflexões que, pela
própria forma de chamá-las percebe-se, não passam de resultados de
ideias que foram atirados pra dentro desta cabeça, ou mente, ou
consciência que eu julgo ter, cheguei há pouco a conclusão de que
não me encontro plenamente em nenhuma das partes definidas
para o meu ser humano habitar, ou o espaço que me deram para
ser humano.
Dentre
alma, mente, consciência ou capacidade racional, pouco se elucida
neste simples ato de tentar entrar em algum canto do cérebro, único
lugar onde isso tudo pode existir, se é que existe, abrir uma
janela, uma fresta que seja e iluminar, arejar um pouco esse lugar
tão peculiar que trazemos para lá e para cá. Sequer consigo chegar
a um culpado pelo fracasso nas relações de raciocínio e conclusões
espirituais que almejava um dia, quando aqui comecei a escrever. E eu
que sou, que não consigo chegar onde queria ir?