quarta-feira, 21 de maio de 2014

Júlia talvez estava certa

Porque era sempre assim. Como a palavra de Sêneca, ecoando pelos tempos, ou numa nota musical do lado escuro da lua. Ela gostava da lua, mas isso fugia ao assunto.

Tantos papéis de fórmulas falidas, apontando apenas uma direção. Eu sei, parece tão óbvio. Mas não é.
Eu tentei dizer, que andar em círculos não é percorrer um caminho. Qual é o caminho?
Eu disse que o ponto era o acúmulo de riquezas, e que isso era assunto que não deveria vir à tona, afinal, em que chão repousariam as "instituições" e a máscara do "estado", caso um dedo incômodo do questionar tocasse a ferida deixada de lado?
Enfim, você deve perseguir a riqueza e o sucesso na vida. Pra mim isso é claro. Mas posso citar dois desfechos muito recorrentes. Ou você de fato consegue o sucesso e a riqueza através do convencional esqueça-de-tudo-o-que-pode-te-atrapalhar-na-grande-escadaria-para-o-sucesso e escreva livros sobre atitude e palavras chaves, ou você pode acabar no outro lado, que muitos podem forçar o esquecimento. Talvez por ser extremamente parecido com o "homem de bem", palestreiro e grande escritor.
Você pode vir a ser famoso nas reportagens dos jornais e em grandes campanhas de ódio promovidas pelos mesmos... Já pensou?
É. É disso que falo. De arma na mão, atirando no espelho vazio que restou da própria sanidade. Ferida social, mancha do progresso e alvo da sociedade.
Tá. Pena de morte. Mate-os então. Mate todos.

Nessa hora, acendeu um cigarro e olhou em volta.
Centro 1, noite chuvosa e um cheiro de cachorro molhado. As pessoas saíam das salas. Muitas provas.
Ela estava escorada na parede, com o pé apoiado e cigarro pro lado.

O que quero dizer, é que a busca é a mesma, de arma na mão ou de barba feita e paletó engomado. E um lado sempre vai achar que o outro está errado, acredite...
Eu não tenho a solução.
Sinceramente, parei de procurar.

Por um momento ele olhou daqueles coturnos pretos até as pontas rosas dos cabelos dela.
Irritado.

"Esperava mais de ti. Uma guria tão inteligente..."

O blábláblá continuou.
Por entre a fumaça do cigarro veio aquele sorriso de sarcasmo barato e de dentes escovados.
Muitas pessoas estavam indo pegar o ônibus, era final de semestre.
É.
Por que me pergunta?
Tu não quer minha opinião, tu só quer que eu concorde.

O rapaz, irritado e ao mesmo tempo pensando se ela não estaria certa. O que o deixava mais irritado ainda.
Isso era muito comum. Mais comum do que imaginamos.

Era delicado, no fundo. Era como jogar ping pong, era necessária a força certa, nem muito forte e nem muito fraca.
Normalmente ela falava sem pensar muito, e as conversas dificilmente duravam mais que um cigarro.
É o que temos.
Colocou os fones, enquanto o rapaz se distanciava.
Banda Focus.Destino: Topique e depois casa.

sábado, 17 de maio de 2014

As calçadas e eu

Coisas aconteceram e as percebo enquanto caminho em alguma calçada. Vejo sinais que poderiam ser interpretados de tantas formas diferentes que acabo escolhendo apenas uma: um dia inteiro aconteceu ontem, aqui.

Borboletas voam baixo, vejo um lixo sem educação jogado ao chão; um cachorro cagou aqui; um homem comeu ali e deixou o que restou da sua marmita; outro deixou o que restou da sua sorte, nas gotas de sangue arrancadas por mais uma tentativa.

Atravesso ruas para chegar em outras calçadas, sigo por elas acompanhado apenas pela história silenciosa que habita aquele ar que, ontem, alguém respirou; se paro, não volto e enquanto caminho me lembro que somos um pássaro num galho. Passo pelas esquinas e elas me soam tão cretinas: paradas ali, dizendo-me que eu vá, escolha um lugar para ir.

É, Zé, os passos que nos restam estão contados, mas não sabemos o tamanho desta conta. E um dia eu voltarei aqui pela última vez.

terça-feira, 13 de maio de 2014

De alma armada

"Deve ser muito bacana cuidar dos outros né?"
"Deve ser gratificante. Um dia queria aprender a fazer algo parecido."
Na verdade, não sabem do que falam. Nem como falam.
Aliás, só falam mesmo. Não querem saber de pensar criticamente, ser cri-cri, chata, incomodativas mais do que investigativas. Como ela era.
"Então por que tu não faz?" 
O velho azedume.

Na primeira vez que a vó dela a viu com o uniforme de enfermeira, foi igual. Um igual mais familiar, aquela simpatia de velhinhas bondosas que querem o bem para as netas.
"Que coisa bonita! De uniforme e tudo para trabalhar bastante."
Por baixo do uniforme, mal sabia a avó, estava aquele tecido com estampa de banda de "róque pauleira", definição dos mais velhos.
Júlia nunca se incomodou com isso. Na verdade fazia tempo que não se incomodava mais com nada. Ia para a faculdade, fazia os trabalhos, assistia as aulas. Ia ao trabalho, cumpria seu horário, suas obrigações. E era isso. Na verdade gostava de ser enfermeira, só não admitia.

Tinha amigos no Bloco A do centro 1 da Unisinos, de calças surradas, all-stares, cheios de ideias na cabeça sobre mudanças sociais. Ela achava tudo muito interessante, gostava de todos eles, sem dúvida, mas não se importava.
No fundo a não-importância era superficial. Mas não se engane: Nem mesmo com uma arma apontada na cabeça ela admitiria que se importava.
Seria por isso suas lágrimas?

Mas isso é o que eu acho. Não sei se naquela cabeça as coisas funcionariam assim.
Eu acho que ela entende muito sobre o que 'precisa ser feito', só talvez perdeu o jeito no caminho.

O seu jeito de desleixo charmoso e bagunça ordeira iria dizer "Por que?".

Muitas noites olhando para aquela cidade grande, na vista do seu apartamento, os porque's ecoavam de volta para ela. Numa retórica destrutiva, silenciosa.
Onde o cigarro não traz nada além de fumaça.
Diabólica.
E a maquiagem serve apenas para tapar as olheiras do dia seguinte.
A sua paz.

Era quando ela lembrava daquele trecho do Rappa:
Paz sem voz, não é paz é medo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Lágrima de Júlia

A Júlia não era nenhuma dama fantasia, que andava em nuvens provocando sonhos lúcidos nos jovens desavisados em topiques ou parques... Mas, não posso dizer que se tratasse de uma garota ordinária, de vida comum, que adorasse comprar roupas ou ir no salão de beleza.
Uma das poucas enfermeiras que conheci, que se recusava a consultar, ou mesmo tomar remédios. Júlia estava certa nisso. Estava certa até mesmo em pintar o cabelo de rosa. Não que fosse feio na cor natural.

"O que eram as doenças?"

Ela sempre perguntava num azedume.
Aliás, perguntava tudo, perguntava os por quê's. Questionava e insistia, era chata demais.
Ela era brilhante.
Havia algo, no entanto, havia algo escondido dentro daquela mente.
Talvez a razão pela qual ela não consultava psicólogos ou psiquiatras, nunca sei qual é qual...
Pelo menos pra mim ela nunca falou. Acho que nunca vai falar.
Se ela estivesse no meu lugar, teria dito: "é impossível saber exatamente o que se passa na cabeça de outra pessoa, logo, não há preocupação".

Era simples assim.

Em diversos momentos, ela já foi surpreendida com os olhos repletos de lágrimas, seja numa visita inesperada, em seu apartamento em Porto Alegre, ou mesmo, perto do xerox no Centro 1 da Unisinos, naqueles lugares escuros de noite. Sempre na mesma posição, escorada na parede com um cigarro entre os dedos, às vezes apagado e às vezes aceso. Uma das poucas coisas que ela fazia que podemos dizer que era 'estático'. Além de vestir sua baby look do Led Zeppelin é claro...

E é isso que me preocupa.
Por que chora uma pessoa que parece estar certa sobre muitas coisas?