sábado, 24 de dezembro de 2016

Nós somos os mortos

Não fez diferença, simplesmente. Deixei de me debater, esforço em vão, contra essas amarras. O furo era mais embaixo, tipo aquele cara que tinha levado um tiro na barriga no agitado fim do meu plantão de domingo. Morte horrível. Ninguém pôde fazer nada.
Ninguém pode fazer nada. É simples assim.
Eu achava que podia mudar o mundo me enchendo de piercings, pintando o cabelo, vestindo preto. Hoje é puramente estético. Antes também, eu só não percebia.
No fim é sorte. Tenho certeza de que eu seria uma das bruxas que queimariam vivas na Idade Média. E queimaria com gosto. Só pra não ter que dizer amém. Só pra não dar o gostinho praqueles velhos miseráveis.
O problema é que hoje dizer ou não, amém, não faz diferença. Dizer ou não dizer basta, também não faz. Dizer sim ou não. Ou os dizeres da cartilha. Dizem eles.

E é um disparo, um estouro.
Parte o partido e dá parte à polícia. Criam se os times separados por uma grade.
O nome da grade você sabe.
Pense um pouco mais.
É o que vive te dizendo pra encher a cabeça de mentiras.

You bastards!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Há çar?

Dia e hora de assar o peru.
Um longo tempo no forno.
Será que não assa também o cu?
De tanto cagar essas merdas no colo da gente.
Se bem que o que assa é o ato de limpar, o papel higiênico resvalando neste vale de nádegas, quanto mais áspero, pior.
Mas o sumo-sacerdote-de-saia não precisa desempenhar este papel. Há quem lhe lamba o rabo e sorria, engolindo tudo que ele cagou pra sua vida, sua doutrina.
Mesmo que não sejamos dignos de que entreis em nossa morada, tudo bem, nessa época o espírito invade os lares, acalenta os corações, invade as vidas, invade as virgens, desencadeia convulsões nas civilizações que não conseguem botar o peru pra fora de suas vidas.
É preciso assar, pra depois engolir.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Ou

Saímos pelas oito. Em oito minutos, estávamos a oitenta por hora. Pelas nove e vinte, a distância era grande: fosse voltar ou apenas ir.
Oitenta quilômetros em oitava marcha; velocidade certa ao longo das curvas tortas.
Oito reais em pedágio, mais, bem mais; ou menos. Nunca pagaria oitenta pila num almoço.
Vinte e oito anos. Quites.
Enquanto íamos ou voltávamos o rádio tocava: oitenta canções dos anos oitenta, oito vezes aquela mesma faixa - não se vá!
Oitenta fotos ocultas, para oito levadas ao vento.
Na beira do quilômetro oitenta, um hotel super ____.
Com ela, só existe uma maneira de não ser oito.
Que sejamos nossos além dos oitenta.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Dia após

Assim era.
Era tudo mais ou menos igual. Mais do mesmo. Dia após dia.
Me pergunto se o que tornava o amor cinza era o tempo ou a cidade que não pára.
Amor. Nunca teve a ver com isso, era mais um engano.
To falando das vezes que tu te sente bem misteriosamente não. Falo do enfado. Do que é falado cotidianamente, erroneamente e fadado ao fracasso. Falo de mim mesma também, afinal os dedos apontam até onde eles acabam e sobram os alvos.
Porque a surpresa? Alguma vez foi diferente? Alguma voz fez diferente? Fez diferença?
Tive raiva do pedreiro que me assediou. Duas quadras atrás. Dois minutos apenas. Dois minutos de ódio. Há pena?
Há. Ainda que seja uma sociedade em boa parte machista. Mas não sei como era na sua cabeça, seus problemas. As angústias de viver uma vida sempre competindo com todos, problemas criados no cerne. Seria considerado um fraco se não tivesse gritado sobre a minha bunda, pernas e seios? Eu seria considerada fraca se tivesse gostado?
Eu teria muito mais medo se não ficasse tão triste.
Acho que devo parecer arrogante. Mas não tem como saber pra onde o nariz aponta quando estou distraída. Melhor arrogante do que fraca.
Oi, me dá um Dunhill preto.
Downhill, o mesmo trocadilho sem graça me vinha sempre à mente. Pensei na hora de pagar.
Que caro. E que cheiro de guarda chuva que tinha aquele boteco.
Eram quase sete.
Eu não devia estar perambulando, confabulando sobre o lixo humano.
Mas a pergunta sempre era:
Até quando?

Ainda não

Pitava. Como de costume.
Hábito. Difícil de mudar. Mais difícil ainda, querer mudar. Não queria.
Por isso pitava.
Pitava sob um céu avermelhado, sabor baunilha. Como eu gosto desse horário, pensava eu. Quase sete.
A rua merecia aquelas chuvas para lavar a imundície como sempre. Imundície invisível. Visível apenas para quem olha e vê. Bastante raro no meu caso, mas a frequência aumentava eu acho.
Moça, tem um pito? Um senhor. Um gari. Um agente invisível se pondo visível na minha frente. Tão visível quanto a sua aparente reação tímida e envergonhada quando eu me virei. Devo parecer aquelas que andam com o nariz empinado como se cheirassem carne podre. Ou sei lá. Achei estranho ele ter me chamado, normalmente essas pessoas evitam falar com as outras, por uma boa razão.
Esbocei um meio sorriso, estendendo a pata do camelo azul para fora da carteira, para que compartilhássemos uma fumaça tóxica empolgante. Ninguém pode recusar um pedido de cigarro. Era a regra.
Fogo? Disse , já acendendo.
Ficamos parados, eu olhando pra ele e ele olhando pro vazio.
Pra mim uma conversa interessante sempre começa com o silêncio. Porque as gentes que eram desprezadas pelos cidadãos de bem, desenvolviam outro tipo de sintonia.
Mas é verdade que somos todos parte do lixo que ele juntava todo dia.
Raça humana tão querida.
Enquanto eu tirava aos poucos sua máscara invisível, ele tirava a minha máscara de cidadã da grande cidade, da cidade que não pára, para que enfim pudéssemos conversar. Numa boa. Como deveria ser sempre.

Nunca fumei um camêu azul.

O que eu poderia dizer? Eu, que posso escolher?
Comentei sobre a banda baseada na marca de cigarro. Falamos sobre música um bocado. Era claro que ele era do tempo do vinil, mas que nunca pôde ter. Diferente de mim que tinha e não tinha como escutar. Coisa de guria de apartamento. Foi quando ele riu pela primeira vez na conversa. E eu também.
Era como uma bolha se formando no meio daquele movimento apressado de gentes apressadas, às pressas.
Sem pensar, joguei a bituca no chão, uma ação automática da qual me envergonho. Quando ele fez menção de recolher, me senti o pior verme da face do planeta. Segurei o seu braço e disse não, que eu deveria pedir perdão. Pura idiotice. Eu disse.
Disse também que ele provavelmente estava acostumado com pessoas idiotas como eu.
Ele murmurou alguma coisa e apoiou a vassoura com pazinha no carrinho.
Acendemos mais um cigarro cada um. Dificilmente uma conversa minha dura mais que isso, mas era incrível o quanto se podia aprender com as pessoas invisíveis, ou melhor, era invisível o quanto se podia aprender com pessoas incríveis.
Me envergonhava não ter nada para ensinar.
É. Eu com minha boca cheia de dentes bem escovados, minha roupa lavada e uma posição de certa forma privilegiada. Sempre que pensei ter certeza sobre coisas, estava eu muito enganada.
A vida era dura, segundo o seu relato. E eu acreditava. Imaginava.
Problemas na família, irmão preso. Problemas na rotina, o ódio do dia a dia não deixa ninguém escapar ileso.
Era esse tipo de gente que meu tio tanto desprezava. Me incomodava demais tudo isso, ali naqueles momentos. Tentei dizer o quanto era importante o seu trabalho e que independente da situação no momento, a vida seguia:
Tenho que ir.
Eu não conseguia dizer mais nada. Alguma coisa me impedia.
Coloquei a minha carteira de cigarro, com sete camelos ainda, no bolso do uniforme dele e dei um abraço.
Não era muito, mas era o que eu podia oferecer.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Ponta de agulha

O tempo se passou e a canção acabou.
Eu pensei que tinha algo mais a dizer.
Ei! Tem alguém aí pra me ver chorar? Não vêem que eu estou morrendo!?
Essa era a beleza melancólica de um hospital.
Todos os outros problemas das pessoas diminuem, e num piscar de olhos percebemos o quanto se briga só por causa de besteiras. Mas não adianta querer ser santo na hora da morte.
Depois da gritaria pediram pra mim e pra Aline sedar aquele senhor. Vi a expressão de seus olhos amolecerem e lentamente ele começar a "dormir". Vi que ela me olhava com uma expressão meio assustada. Só mexi os lábios esboçando aquele clássico meio-sorriso rápido de consolo fajuto e sem mostrar os dentes.
Era um recado silencioso àqueles que juravam de pés juntos terem controle sobre toda a sua vida. Sobre não confiarem em ninguém. Sobre serem independentes. Nunca serão. Pensei eu enquanto esvaziava a seringa do sedativo.
Desde pequena eu quis ser enfermeira. Acho que por não ter medo de agulha nem de sangue. Tinha mais medo de gente, normalmente. No hospital eu percebi o quão fácil era tirar a vida de alguém.
E me dei conta do quão esquisito é as pessoas não morrerem mais do que já morrem, uma vez que se briga por besteira e as brigas só aumentam. Quanto às besteiras, são pequenas, mas é o que mais tem.

Era só uma medicação para ajudar. Foi o que eu disse ao senhor.
Um velho de cara vermelha, provavelmente no fim dos seus dias.
Era normal as pessoas sentirem simpatia pelos velhos. Mas nunca se sabe o que eles fizeram em vida.
Podem ter sido as piores pessoas possíveis. Mas acho que não tem nada a ver. Sei lá.

Minha mãe diria que é absurdo alguém ter de morrer em uma cama de hospital com uma doença horrível, tendo passado a vida trabalhando duro. Ela diria que não era justo.
Essa discussão sempre me incomodou. Nunca pensei que justiça tivesse algo a ver.
Afinal, tem como se inserir em uma sociedade doente e exigir a sanidade no final?

domingo, 27 de novembro de 2016

Dezesseis por Nove

A tela
é ciumenta; não tire os olhos dela.
O que se passa num pisque de olhos enquanto a gente fita o brilho sem piscar
nunca saberemos
Enquanto isso
a tela pisca.

sábado, 26 de novembro de 2016

Mais ou menos

Mais um ano que chega ao fim. Mais um ano que me pego imaginando passar o natal ouvindo música trancado num aposento com a janela fechada.
Menos um ano que poderia ter olhado pra trás e me orgulhar de não ter cometido os mesmos erros.
Mais um ano que me distancia daqueles que já se foram.
Mais um ano que me vejo mais velho e perdendo a vontade de fazer as coisas.
Mais um ano que vejo a prática desandar por incompetência.
Mais um ano que pensei ter encontrado um sentido, e menos um ano que poderia estar indo atrás de um.
Mais um ano que mal chegou e já ficou pra trás.
E o que tu fez de bom?

Nada de mais.
Nenhuma novidade também.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Olhar e ver

Cinco. Pelo menos não era onze e onze.
Ver novamente essa combinação ia me dar nos nervos. Nas entranhas. Sensação estranha.
Estranhamente familiar.
Os sinais estavam todos ali, e eu não vi nenhum. Não me culpo, mal me vejo no espelho. Nesse caso, olhar e ver são coisas diferentes.
Me olho no espelho. Olho uma cara inchada. Não gosto do que vejo, quando realmente vejo a mim mesma.
Seria tão fácil, se fosse só corrigir essa maquiagem borrada. Se fosse terminar uma cerveja.
Se.
Ultimamente tenho dúvida se essa maquiagem é pros outros ou é pra mim. Como o cara do comercial que tanto desgosto, acabo na mesma armadilha. Uma cara arrumada pra não mostrar a podridão interna. Disse que não me culpo, mas não devo dar atenção ao que eu digo, e sim ao que é.
Eu tento apontar o dedo, em vão, sabendo que ele volta pra mim. É o que vejo no espelho.
Seria fácil também culpar a ele e não a mim, pelo que me acontece. Pelo que sou.
Mas todo mundo tem um lado que não quer mostrar.
Como eu sei?
Olhe o comercial, olhe o outdoor. É quase como uma porta para a percepção.
De tão escancarada é fácil não ver.
Devo estar com mau hálito. De tanto café.
Ou estou tentando evitar de pensar em porque realmente eu não consigo dormir.
Vê?
Não importa pra onde eu aponte, volta.
Volta com força.
Na força da batida, cai a lágrima. Mais uma. É só o que me permito no momento.
Uma só. Áspera na pele e corroedora na alma.
Uma lágrima para um problema de primeiro mundo.
Que me sinto frustrada em não saber lidar.

Amigo da Lua

Como poderia dar certo? Um amor à distância, tudo bem, até funciona. Amor é projeção. É esperar, mas não como apenas uma esperança. Ao contrário da criança, no amor podem coexistir felicidade e esperança. Pode haver ilusões que não deixam de ser reais. É possível ver-se de longe, sentir-se mais perto. Esperar a aproximação. Há. Como um cometa, nos casos onde é raro. Ou, pelo contrário, como o muro destrutivo no caso de uma curva num circuito de fórmula hum.
Hmmm.
Curvas.
Como não amar aquelas curvas?
Mas uma amizade à distância seria difícil. Porque perde-se o hábito. Como desafina a corda do violão que há muito virou peça de decoração. Não daria certo; mas dá. Como explicar a amizade entre um homem e a lua? Mais difícil do que falar sobre um mago que ama o mar.
Talvez seja uma forma de se projetar que há no homem, talvez. Este ser cria e executa projetos.
Ou esse lance de esperança e esperar. Se não posso agora estar lá, um dia estarei.
No lado escuro da lua vivem os silêncios que preenchem os espaços entre os sons que nos tocam e nos momentos escuros esperamos um novo dia nascer. Cada corpo nasce uma vez, mas a humanidade renasce em cada uma delas.
E um dia alcançaremos a lua.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Na lua

Acordei na mesma madrugada.
Não estava quente nem frio. Olhei pros meus pés e a coberta estava jogada no chão.
Eu nunca me mexo muito dormindo. Simplesmente não tava conseguindo esquecer.
Deixa isso pra lá, Júlia.
Disse a voz que fala com a minha cabeça, em um diálogo completamente esquisito, duas entidades que se comportam como uma.
Não consigo. Foi o que pensei, impotente.
Parece que o universo está me pregando peças a semana inteira. Ou talvez isso seja a paga, afinal eu erro também. Mesmo com meu ego e essa voz esquisita me dizendo o contrário. Não posso me dar ao luxo de ser cega a esse ponto.
Vou tentar lembrar de como era quando eu estava com aquele cara da tatuagem ridícula, que me fez ir embora sem olhar para trás. Como eu era quando não estava desejando nada.
Uma atitude covarde de auto-defesa. Posição fetal na cama também não ajuda muito.
Estava pensando em descer pra fumar um pouco quando ouvi um barulho de tiro mais ou menos longe indicando o quão ruim era essa ideia.
Vontade de estar deitada naquele lugar legal de São Chico, mas não posso me enganar.
Quando estou lá quero estar aqui de volta.

Vou tentar voltar a dormir e tentar sonhar com algum dia que eu descubra a origem dos enganos todos.

Debaixo do Sol II

Eu não preciso de ninguém pra me dizer. Diz-se o que o outro deve fazer, nunca dizem a ele para fazer o que acha certo. Acho que não é sobre certo e errado.
O ônibus lotado de gentes. Já estou acostumada. Já uso menos maquiagem porque o sol tem o costume de me fazer quase derreter. Até o celular esquenta. Tento não encostar nas pessoas pra não grudar. Quando quero ouvir música tenho apenas um dos fones em um dos ouvidos, nunca se sabe quando vai ser o próximo assédio. O quando vai ser o momento de agir. Costume.
Vi aquele carteiro que parece o Geddy Lee passar perto da minha janela. Na minha frente tinha um cara com a camiseta do Messi. Que vontade de pedir um autógrafo, só pra quando ele virar fingir uma cara de surpresa ao ver que na verdade não é o Messi e sim mais uma pessoa normal, como eu, com a camiseta dele. Como se um jogador de futebol fosse diferente. É o que prega a sobremesa do jornal do almoço, antes do cafezinho. Dividir e conquistar. E não é nem nos conquistar como escravos, isso fazemos por nós mesmos, nos conquistam a atenção e a audiência, pra poder vender o tempo a um produto. Que depois compramos.
Entrou um daqueles caras, corrente de ouro, boné de aba reta. Me olhou com aquela cara de "quero te comer". Raiva. Vontade de colocar os dois fones. Me tele-fonar para outro lugar. Mas ainda era a primeira parada na Av. Ipiranga. Ainda era cedo, duas da tarde, o sol estava alto. Senti meu cabelo grudar na nuca e minha calça grudar na bunda. O pessoal nas ruas ainda abanava como se não se importassem.
O telefone vibrou. A tela da mensagem inesperada anunciando o meu estado de ânimo a seguir: Desânimo.
Desci na próxima parada. Compromisso desmarcado.
Não era esse o combinado. Aquela velha pontada de angústia na região do abdome.
Não deixe essas pessoas vazias interferirem nos seus pensamentos.
É só mais um dia que passa devagar, que custa a passar. A que custo?
Mais uma vez que fico tentando entender essa peça coletiva de faz-de-conta. Faz me rir.
Tirei o fone, guardei o celular na bolsa.
Vi uma barra de chocolate lá dentro. Não lembrava de ter comprado.
Normalmente chocolate era um alimento para a alma. Esse ali o Sol já havia dado cabo.
E eu sabia que o gosto ia ser ruim.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Irônico não?

Quanto mais perto da morte, maior a chance de você só encontrar seus amigos em um velório.

Onze

Onze e onze. Já faz um tempo que vou ver as horas e me deparo com a já familiar carreira de 'uns' lado a lado. Um cara me falou uma vez que essa sequencia de números significava alguma coisa. Numerologia. Tanto faz. No fim é possível ver o que quiser onde quiser. É só procurar, e quem procura acha. Síndrome do tomara que seja. Uma das tantas esperanças vazias.
Eu vejo as horas mas não vejo o tempo passar.
Não. Isso não é tão bom quanto parece. Eu até gosto do plantão de domingo. Pelo menos aquele pessoal que me olha no intervalo com cara de "nossa, uma agente da saúde fumando..." está em menor número.
Logo vai ser segunda. Sempre que penso isso, lembro de mim pensando a mesma coisa anos atrás. Diferentes momentos, mesma sensação.
Evito comentar pra não parecer papo de gente velha.
Os dias parecem sempre os mesmos, mas com aquela sensação de diferença que os permeia. Parecida com a leitura de um livro onde se percebe uma ideia ainda não descoberta, mas que está ali, dando voltas ao redor do texto, das letras. Será uma ilusão?
Me pergunto qual é a programação que faz os dias parecerem iguais, e como se libertar disso.
"Free" Me lembrei da voz do Ozzy ecoando um trecho que eu não havia reparado antes, numa música do novo álbum. Realmente não quero ser um robô fantasma ocupando um hospedeiro humano. Começo do fim ou fim do começo? Acho que já nem importa mais.
O importante é não deixar todo esse concreto te endurecer. Te envelhecer. Crispar a tua testa como acontece nas rachaduras do asfalto, por onde se assenta toda essa imundície. Nada que uma boa chuva não lave, mas chuva nenhuma vai lavar a alma de dentro pra fora. Nisso o Travis também estava errado. Nisso e em convidar uma garota para o cinema pornô.

Que horas são? Onze e cinquenta e seis. Respondi olhando no meu smartphone, pra esse rapaz que acho que não estava tão interessado nas horas do mesmo modo que estava interessado na minha bunda ou sabe se lá no que mais.
Mas não tenho tempo pra conversar. Nem vontade.
Só mais quatro minutos. Ou menos quatro, dependendo do ponto de vista. Considerando que aqui é um hospital, acho que menos quatro é mais apropriado.

Igual, é meu último cigarro.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Preturbs

Poderiam me dizer que eu devo carregar uma cruz. Pregariam tábuas umas às outras, uns nós nos pulsos. Um espetáculo odioso: o entretenimento que vem do sofrimento alheio.
Poderiam me açoitar morro acima, ou me fazer rolar lomba abaixo, no meio das pedras e do barro. Alguns aplaudiriam.
Poderiam me purgar de arrependimento, maledicências e vilipêndios.
Teria atravessado um vale de lágrimas.
E por mais que sob todo esforço por eles empregado, mesmo que apenas para parar a bizarrice que mescla o templo e o circo, mesmo que eu dissesse, finalmente, sim, no fundo seria não.
E é isso que incomoda.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Gosto adquirido

Não gosto que me vejam assim. Tenho vontade de procurar um gari e pedir sua máscara invisível, seu manto que bloqueia o espectro de luz visível a olho nu. Nua, é como me sinto. Frágil até. E detesto me sentir assim.
Espero que a solitária lágrima, provavelmente não a última, não tenha sido vista pelo pessoalzinho.
Acho que é por isso que deixei um pouco de lado aquele espírito juvenil de rebeldia que me tomava como possessão na adolescência e que agora é apenas um fantasma que me assombra de vez em quando. Tipo uma paralisia do sono. Acho que talvez o Rogério viu, ou a Aline. A Aline tudo bem, posso inventar qualquer coisa depois.
Como lidar com a sensação de genes se debatendo, genes meus que parecem ter saído do esgoto? Como lidar com a sensação de fazer parte da mesma sujeira que tanto torço o nariz para?
Talvez a resposta estivesse na solitária lágrima, o resumo de um breve momento de lucidez talvez. Sei que insensatez não foi. Aprendi que as lágrimas tendem a ser sinceras, e a sinceridade está no cerne da compreensão de um mundo aparentemente incompreensível.

Náusea. É como se eu tivesse 12 anos, tivesse que me ajoelhar na frente daquele homem de saia representando um ser invisível, também um homem, todo poderoso, sabido das coisas e pessoas do mundo. Dono delas aparentemente. Como quando eu tinha 14 anos e perguntei se deus tinha pinto, o início da rebeldia falida cegamente repreendida por aquelas velhas mal amadas.

Ainda assim, o problema era ter presenciado aquela cena. Ver um familiar, alguém que provavelmente em algum momento ficou responsável pela minha guarda quando eu não tinha condições nem de caminhar, falar coisas tão distantes da aparente conexão que tínhamos. E se eu fosse um deles?
Inevitável pensamento que me ocorreu no momento. Era o início de um sentimento já conhecido por mim mas há muito abandonado: O importar-se.
"Don't be afraid to care"
Disse a música quase que na sequência. Um lapso de compreensão que me direcionou à sensação de empatia por aquelas pessoas que só iriam sofrer. E que estão sofrendo.
A campanha de ódio da cidade em alerta havia funcionado bem. O sabor agridoce da sobremesa depois do jornal do almoço.
Tanto ele quanto eu, tínhamos ódio agora.

Se parece com os longos plantões que faço no hospital às vezes, bebendo café até perder o paladar. Mas o gosto adquirido sempre pedia por mais. O gene podre falando comigo.
Mas a minha preocupação verdadeira, era se eu realmente estava com medo de me importar.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Quais eram mesmo os seus nomes?

Admirável a magia do silêncio, que permeia as protuberâncias sonoras.
A água da enxurrada que escorre do corpo e da roupa, toda de uma vez; pouco a pouco.
Estrondoso ressoar das batidas das mãos nas coxas.
Exato local onde foi feito este texto.
Sobre um par: não há o que falar.
Não há trabalho ruim.

Sobre o que a Julia não disse

Não sou monja de aturar. Não sou pedra amolecida.
Pedra de amolar. Para ser trabalhada com as palavras ásperas forjando ferro bruto, feito pra machucar.
Não entre na briga se não está disposto a usar suas próprias armas.
Inspiro.
Primeira dose.
Trocamos apenas olhares tensos.
E aguardo o momento da vagareza gélida, que descobri ainda cedo, a capacidade de usar. Lâminas frias abrem mais feridas. No corpo material e na alma enlamecida.
Beba com moderação.
Disse a frase de um momento instantâneo em uma tela passageira de cor sólida e malpassante. A ser socorrida pela próxima atração. Não me atraiu. O brilho luminoso na verdade me cegava os olhos.
O burburinho do bar esfumaçado me atrapalhava as ideias. E a presença dele tava me perturbando.
Mas senti o vício me subindo as entranhas, da garganta até o sorriso bacana.
Vício do cigarro, da mentira, da raiva e do julgamento. Os venenos da mente, diria um amigo meu, sem que eu soubesse ao que ele se referia exatamente.
Boca de beijar se transforma com apenas um pensamento.
Não gosto da derrota verbal, e não levaria mais uma pra casa.
Segunda dose.
Cadê minha comanda? Deixei escapar. Raiva.
Olhei pra ele, e pelo seu rosto pude julgar sua crença na minha vitória.
Como se eu tivesse ganho, mas eu perdi.
Deixei pra lá. Engoli em seco.
No fim tive eu que juntar os pedaços do que restou do meu ego inflamado, para guardar com todas as coisas esquecíveis que eu não conseguia esquecer.

Com ferro feri e com ferro fui ferida.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ab Aeterno Sum

Já eram sabidas as palavras. Era uma bela frase. Bela, como só mesmo as palavras poderiam ser. Essa linguagem que não aquieta.
Não basta saber.
Mas o discurso nunca deu conta da realidade, nem o discurso e nem os números. Se buscava aos trancos, às cotoveladas até. Há cabo para se dar. Muitos cabos para muitas coisas. Freios de mão para puxar.
Porque a angústia bate e volta. E é nessa distração que não se percebe a ilusão, do grande mago universal, visto apenas através de um espelho. E que trama!
Há sempre um plano de fuga, mas no fundo se sabe que não se foge de si mesmo. Que há uma falha no plano.
Então se retorna. Onde tudo começou?
O primeiro pensamento. A primeira inquietação da mente.
A mesma que faz parecer que todos os dias são iguais. Que esconde o senhor do ego do testemunho da natureza da terra. Seu maior temor.
E a lama vem cobrindo o rio de águas cristalinas que corre através de nós e além.
Lute, mas de brincadeirinha.
Como uma criança num enorme chão de brincar. Mundos imaginários.
Não há solidez nos inimigos criados por nós mesmos.
A flecha voa e a pétala cai.
O fogo consome para depois se apagar.
O escudo da ignorância se argue ao alto.
Por isso toda vida que começa tem que acabar.

A lâmina da lucidez nos escapa à mão.
Falha de comunicação.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Reflexo do reflexo

Acordei de susto, mas uma vez apenas. Não lembro qual era o sonho, mas não era lúcido. Estiquei meu braço e com as pontas dos dedos consegui alcançar o telefone, fino e enorme em área como eram todos os modelos mais recentes. Cinco e doze. Normalmente gosto de dizer que me conheço, mas dessa vez não prestei atenção ao cansaço dos meus olhos pra saber que ainda não era hora de levantar. E eles se fecharam novamente. Acho que meu braço ficou pro lado.
Acordei novamente.
Com meu toque musical de 'britadeira' como diria o meu tio Adão de São Chico. Pra quase acordar batendo cabeça. Sentei na cama me sentindo com 10 pés de altura. "Esta é minha página inicial, esta é minha nova era..." Teria dito Daron na sua voz de angústia. Ou pelo menos é assim que eu a ouço.
Quando levantei tropecei no meu allstar vermelho, a caminho do meu espelho iluminado pelo dia.
Nesse momento refletindo algo que talvez eu esquecia.
Comecei a me olhar de alto a baixo.
Me senti velha e jovem ao mesmo tempo. A ação passou de análise a contemplação em alguns minutos que não sei quantos. Vi meu pai, vi minha mãe. Vi rugas e também cicatrizes. Vi meu rosto de choro seguido do de orgasmo.
Me vi aumentar e diminuir. Envelhecer pra depois rejuvenescer.
Voltei a atenção aos meus olhos cansados e vi mais um reflexo.

Dei um pulo quando o celular despertou novamente.
Depois disso, apenas vi o que sempre vejo quando estou na frente do espelho.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Dois pra lá

Tu entra num beco, acha que é uma escolha.
Abre uma porta, pensa que foi por querer.
Vota, porque sabe escolher.
Entra numa dieta, era a coisa certa a se fazer.
Bota no crédito, e não no débito.
Passa no amarelo, que dava tempo.
Solta uma palavra espicaçada como um parto que não deu certo e resultou em uma série de mortes; mas era só brincadeira.

Ácido

Não sei por que vem. É como o medo irracional, é como uma palavra de outros tempos que causa uma sensação estranha. Não sei. Me pego pensando, quando estou fumando, um, dois, às vezes três, que normalmente paro e penso quando fumo. É como a barrinha da bateria do meu smartphone, essa palavra estrangeira pra fazer referência à um aparelho que também me escraviza. Penso o que seria necessário fazer para não ser mais testemunha dessa tecnologia que nos humilha.
Não falo só de componentes eletrônicos. Tecnologia é mais abrangente que isso. O que é afinal?
Poderia fazer como muitos por aí e tomar de assalto uma verdade pronta: O que vale é o que eu digo.
Tenho a impressão de que não faço isso. Mas isso é tudo, uma impressão. No fim devo ser só mais uma hipócrita, que acha que fala o que pensa mas não faz o que fala.
Ter e não ter. E quem negará que são sobre isso todas as brigas?
Às vezes me sinto como o Rogério. Não que eu ache que sou depressiva. Mas vem aí mais um de meus dias. É como um peso recorrente, não sei daonde vem, não sei praonde vai. Às vezes vem e não fica. Não se cria. Um arauto do desespero falido.
Prefiro pensar que é somente o contrabalanço dos momentos alegres e meus poucos sorrisos sinceros. Felizmente não tão numeroso quanto.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Falha de comunicação

O montante falado era muito, desde ponderações temporais até emoções confusas, algumas delas íntimas.
Mas é o que pode se esperar quando se conversa consigo. não há um segundo sequer de trégua. Se quer. E quero.
Se tenta perceber onde está a revelação do código da programação que cria a ilusão de que é um dia depois do outro e um igual ao outro. Por isso desacelerar.
Para a cabeça que não pára.
Confusões da linguagem. Ponto de fusão.
E a comunicação é falha. Não dá conta nem nunca deu.
Me pergunto: como conversaria comigo mesmo, caso não tivesse aprendido linguagem nenhuma? Que palavras usaria, se não conhecesse nenhuma?

Sede

Em alguns casos é uma distinção difícil de fazer - entre chorar e sorrir, na possibilidade de ambos ao mesmo tempo, um por causa do outro.
Não é bem como ter uma dívida, mas como ter tanta sede que durante o primeiro copo já saber que o segundo ainda não será suficiente.
Já pensei que sabia o que rolava por aí; mas aprender é primeiro ter uma certeza pra depois demoli-la.
E como é fácil se enganar com as ideias, pessoas e cheiros.
Nos chamam pra exercer nossos direitos, gritar por nossas vozes, romper alguns cadeados convenientemente necessários em locais estratégicos.
Sinto um sono levemente confuso e abro os olhos apenas parcialmente.
O que, no fim, é bom, evita exposição excessiva à imagens inesperadas.

É pura mentira

O Snoopy para e pensa e eu não consigo pensar. A animação que faria ele bater as patinhas na máquina de escrever trava por algum motivo qualquer. A minha animação em escrever sobre algum assunto qualquer trava minhas teclas e me incomoda.
Falar sobre não saber o que dizer sempre esteve lá como um último, penúltimo recurso; na falta de algo melhor, mais interessante.
De repente, ele volta a escrever.
Mentira, eu que o forcei a isso.
Onde estará o seu grande amigo?

Quem é capaz de invejar a si mesmo, uma estampa sua de um momento passado ou de um futuro promissor que soa perfeito apenas pela sua capacidade de nunca ter ainda existido?
Soa como algo tremendamente humano, se tal coisa há.
Há anos não bebo conhaque, mas já escrevi sobre ele várias vezes neste meio-tempo.
Metade do tempo jogada fora, senão mais.
As celas superlotam; o Rio Cadeia transborda; a prisão de condenação auto-imposta é lugar pra vagabundo.
Este quadrado preto representa a incapacidade humana de refletir.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Escanteio

Juão tocava e eu pensava - o que pode ser mais triste
que um piano em algum canto e um homem sozinho
um lá bemol de Abandonado
E alguém olhando de lado, fingindo não ver
Que a miséria é um tapa-olho melhor que a peneira, e até mais seletivo.

sábado, 15 de outubro de 2016

O apanhador de cenouras

Não parece uma fruta, certamente. Alguns dizem que é hortaliça...
Haviam muitos obcecados atrás destas obras do canteiro. Um enorme canteiro. Uma horta, lá no fundo, no canto. Se fizer como eu lhe digo. Disse o senhor empreendedor. Seriedade ímpar. Estamos aqui para vestir a camiseta, se esconder atrás da gravata e fazer parecer cidadania. Afinal isso tudo é muito sério. Nota-se que a palavra 'seriedade' compunha um tomo sagrado às vezes confundido como 'chaveiro'. Porta chaves. Todas eram 'palavras chaves'. Algumas eram mais do que chaves, eram molhos de chaves. Um molho sem tempero de sabor acre, que dava um toque especial ao Jornal do Almoço. Um sabor único, sem dúvida.
Mas todas essas chaves, destrancavam as portas uma a uma. Passo a passo. Algumas portas davam em escadarias, obra de gênios, segundo alguns. Um degrau depois do outro. De pés descalços? Nem pensar! De sapatos, bem engraxados. Um terno arrumado.
E quando todos aqueles que abriram tantas portas, subiram várias escadas, se depararam com uma sala quadrada. Não poderia ser redonda.
Haviam nela ainda muitas outras portas de um formato curioso e sem maçanetas ou fechaduras. Até porque acabaram-se as chaves.
Acalmem-se. Disse um senhor já nesta sala. O melhor está por vir.
Enquanto conduzia um a um a seu próprio caixão, a última parada.

Haviam prometido a chave mestra.
Mas era apenas o fim da vida e nada mais restava.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Ponta rosa

Eu faria diferente. Já pensei igual, sendo diferente. Entre xícara metade cheia ou metade vazia, prefiro uma xícara de café até o talo. Com um talo, um pito. E já levei muito piço, dos pais e amigos, por fumar assim. Mas é aquilo: Entre um maço de cigarro e uma lata de cerveja, tudo é morte e tudo é vida.
O problema é escolha. E eu escolho vida. Só porque todas as referências sugerem morte. Assim como vou de coturno ou de all-star em uma festa onde normalmente as garotas só vão de salto.
As referências tentam te convencer a atentar contra si próprio. Os rótulos. Os julgamentos. E eu julgo também. Mas começo a saber, sabendo que não basta, que isso tudo é uma grande piada e um tanto quanto perigosa. Ora, alguém já disse isso algum tempo atrás.
Eu sei. Você vai dizer que tudo isso é fala inútil e eu vou concordar. No entanto, mais inútil que isso é beber uma xícara inteira de café e achar que a sensação que se sente é real. Ou olhar o Jornal do Almoço depois da sobremesa e achar que na periferia só existe 'bandidos'. E que um homem que se esconde atrás de sua gravata o faz por cidadania. Os exemplos são muitos.
O que quero dizer, e estou fazendo um esforço tremendo para tanto, já que não me importo, é que você pode encarar o mundo sem ser em uma perspectiva de miséria.
Não entendeu?
Confesso que às vezes eu também não.
Mas a ideia não era bem entender... era?

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Acompanhamento

Era de uma bizarrice coletiva. Tal como falavam os apresentadores. Diferentes palavras, mesma coisa. A sutileza era empregada magistralmente, só se comparava com a ignorância acerca de tal fato. Sobremesa.
No final do Jornal do Almoço é claro. A melhor ocasião. Cria a oportunidade. Disse o ladrão.
Perdão? Acho que não ouvi direito. Houve uma quebra de sigilo. Silêncio.
Sigilo não bancário. Precário, afinal.
Ri ao me ver defronte a descrição de extrema importância, mas de última necessidade.
E como é fácil?
Nunca foi. Disse Lóque ao Jacó. Este último, sem entender. E com razão.
Aperte o botão. Do paletó. Do aparelho. E do elevador. E há dor.
Rio esperançosamente do esforço em vão. Da inevitabilidade. E ao mesmo tempo do sublime.
Sei da alegria pela dor.
Originação dependente.
Perdão?
Perdi.
Fim.

sábado, 24 de setembro de 2016

Estanque

Não era um sangramento, nem era vazamento, nem era desvio de verba, balbúrdia do petrolão.
Mas houve um movimento que foi parado sem intenção, como nas intenções de voto declaradas por entrevistados invisíveis.
Na teoria, não sei o que houve. Perdi a prática?
Expressar por expressar.
Pôr pra fora.
Mas a gente não transborda se o interior nos for vazio.
Ou acumula uma carga pesada, que apesar de infinita em crescimento, jamais explode e sim desmancha feito um picolé no sol.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Meio dia

Correu muito, meio sem parar.
Pulou, tropeçou e algumas vezes se esborrachou.
Tentou, em vão, contar a totalidade de seres em números. Ainda mal sabia quantos eram os mundos todos. Mundos tantos.
Estudou, reprovou e aprovou. Provou. Da mesma vida, do mesmo medo e aflição. Provou um pouco do céu do perdão e também do inferno da maldição. O doce e o salgado, o amargo e o azedo.
A felicidade e a tristeza, um nunca sem o outro. E aí estava o meio.
Seguiu.
Uma pergunta restava.
Será que era a única pessoa que havia chorado de alegria?

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Corante

Eu já sabia dos riscos. Diferente dos outros talvez, já sabia conscientemente.
Então eu não entrei naquele lugar atrás de segurança ou conforto. Pra mim, estava escancarado em toda parte e só não via quem não queria.
Chamei o atendente e pedi por sinceridade. O que significa que estava dando a ele passe livre para descer do palco fajuto que todos os estabelecimentos possuem e me dizer a verdade, ou o que ele achava que fosse, sem que para isso eu pudesse ter razões para reclamar com o gerente ou não mais voltar ali. Uma prerrogativa pra parar de fingir que está tudo certo em uma tentativa de tentar me tranquilizar para que eu não pense muito a respeito. É. Acho que é isso que significa.
Não era por motivos de saúde, nem por motivos de protesto, era apenas uma curiosidade.
Me olhou de alto a baixo com um sorriso amarelo e disse que nunca havia ouvido falar sobre isso. Tá. E meu nome é Júlia, nascida no dia de ontem também. Como se eu fosse uma idiota. Como se ninguém soubesse.
Acho que a cara que fiz foi de um desprezo intenso. O rosto dele ficou corado e o sorriso adquiriu um tom amarelo-avergonhado. Não era por mal, nem sempre consigo controlar meu rosto, também pouco me importa.
Voltei pra mesa e dei sequencia ao meu almoço. Olhei novamente aquele pedaço de salmão exibindo seu laranja vívido. Continuei me perguntando se aquilo era um peixe criado em algum outro país com mão de obra barata e tratado a ração com corante, coisa que o atendente "nunca ouviu falar".
Pus na boca com o garfo, mastiguei e engoli.

Provavelmente era corante. E o gosto era tão bom quanto era inútil tentar descobrir coisa alguma.

sábado, 3 de setembro de 2016

O que é a Vida?



A vida é uma sucessão de erros

A vida é a pessoa que te dá a rasteira

A vida é o caracol escalando o mundo

A vida é você querendo agradar a todos

A vida são os outros sugando a sua vida.






segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Há prática

Continue.
Talvez fosse o que ele iria me dizer caso os acasos se fizessem presentes.
E eu continuo. Aos trancos e barrancos, mas é assim mesmo.
Afinal, quando tu precisa aprender algo, normalmente é porque tu não sabe. Se soubesse, não iria atrás aprender. Há preço.
Só que eu ainda não sei dançar. E não posso me dar ao luxo de acreditar em um deus que não saiba dançar.
Ainda bem que ele é o senhor da dança.
O portador da chave que abre os portões. Mas ele só pode me mostrar o caminho, eu é quem vou ter de atravessar. Como? Eu ainda não sei. Talvez dançando.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Quase

O fiz e fiz porque quis. Quase cortei meu cabelo certa vez; noutra, cortei. Cortaram para mim, na verdade.
A vida é cheia de prestações de serviços. Paga-se a paga, compra-se o produto.
Fui careca, escolha própria, circunstâncias favoráveis. Ventos afiados aparando as arestas, enregelando as orelhas.
E o que resta?
Espiar por alguma fresta, observando a galáxia lá fora se remontar em metamorfoses tão incompreensíveis quanto o piscar de olhos que me leva de um dia a outro.
É, Juão; os ventos que emporcalham ou avacalham a calçada são os mesmos que levavam velho Mordo mundo afora. E como sopram!

sábado, 18 de junho de 2016

Se eu pudesse quebrar em mil pedaços
o que quer que fosse
sem precisar juntar os cacos,
o que restaria intacto
aqui,
agora,
a meu redor?

Intervalo

Julia!
Foi o que ela disse. Não sei quantos minutos tinham se passado, dez ou doze, talvez dezessete. Eu estava no carro, no banco de trás, depois estava no ônibus, olhando pra trás, por fim no metrô, olhando para um hipster-retrô, sem muito amor. Aliás, amor nenhum. Um pouco de desprezo até.
Para resumir, eu estava viajando longe, longe dali onde estávamos sentadas. Tentei não pensar que era mais um dia cinzento, e nesse meio tempo estive torcendo para meu café não esfriar. Intervalo. Estava doida por um cigarro, e muita vontade de soprar fumaça na cara de um pessoalzinho a troco de nada, mas não na cara dela.

Eu gosto da Aline.
Era gente boa, mas curtia muito falar sobre os outros, sobre dinheiro, sobre quanto gastaram e o que fazem em seu perfil na rede social. É. Sempre tem um 'mas'. Não tem uma frase que diz que gente inteligente discute sobre ideias e não sobre pessoas? Não sei como eu gosto dela. Talvez seja justamente por nossa diferença.

Julia!
Ela disse de novo. Eu devia estar com aquele meu olhar vazio pro nada, como quem acorda cedo no inverno e não quer levantar. Olhei pro meu café, estava no finzinho. Depois olhei para aquele rosto me olhando, me analisando, me diagnosticando, quase como os médicos dali. O quê? Perguntei. Tomei o último gole de café gelado. Acho que aquele gosto estava parecido com a minha postura diante de tudo o que ela falava antes. Gelado e amargo.
Parece que tu não tava aqui sentada, te falei um monte de coisa e tu meio que desligou.
Sorri com a metade da boca e me levantei.
Não, eu to tranquila. Respondi no meu melhor estilo, evasiva, pra evitar ter que falar sobre o que eu não quero, sem parecer que não me importo.
Não ouvi uma palavra do que ela havia dito.
Não me interessava.
Eu não tinha nada pra falar.
Era o fim do intervalo, de volta ao trabalho. Virei as costas e saí pelo corredor.

terça-feira, 14 de junho de 2016

E teus princípios?

Pois bem. Ele disse. Quem? não sei. Bem ou mal, faz-me rir.
Ali onde a coisa enrosca, e não é preciso muito pra ver.
Nunca pensou muito, isso é coisa pra dois ou três, mas gostava de uma tabela pronta. A ética. E o que era afinal? Mais uma coisa para se reclamar. É a crise. O preço. Um apreço pela reclamação. Há preço? Ao contrário de deus, há. O adeus que nunca deu. Pois, nunca vão embora os incomodados.
Há quem se retire, em um retiro, de muita tranquilidade. Aliás, retiro o que disse. É difícil se controlar quando é mais fácil falar da boca pra fora, e enunciar verdades para um mundo externo de impermanência que, quando você pensou em dizer, não mais lá está tal mundo para que seja enunciada verdade alguma sobre o que quer que seja.
Seja você, dizia a letra. A letra que na verdade é composta por texto composto por palavras compostas por letras, e essas sim, por fim deveriam receber o nome em questão.
Mas para o desenrosco é necessário mais que falar inutilmente. Mais que princípios.
E os seus princípios?
A pergunta que não cala. No entanto, me calo em riso silencioso cada vez que ouço ou me lembro dessa fala.
No fim, não há o que responder.

domingo, 29 de maio de 2016

Tá rindo do que?

Somente é atribuído à natureza humana as mazelas de qualquer ação. A falta de ética, moral e boas coisas. Já é costume?
Quando um cão faz qualquer coisa, seja por instinto de matilha ou por coisas que fogem à nossa capacidade de entendimento, o fazemos humano por um instante. Apenas por um, porque nos demais ele será apenas mais um cão. E isso serve para todos os animais. Toda a causa animal.
Nós dizemos que ele é mais humano do que nós.
Quando nós somos humanos somos maus por natureza. Quando um cão é "bondoso" ele é mais humano do que nós.
Estou dando demasiada atenção a um detalhe pequeno e significante?

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Hiato

Como as necessidades básicas em um momento de aflição;
Como a angústia na hora de pousar a cabeça no colo certo;

Como intervalos espaciais em uma canção do Pink Floyd;
Como o tempo na espera por um momento que não chega;

Suspensão.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Percebi

Então, estude mais, história, ciências, exatas ou humanas, para após vir falar comigo. Faça como eu digo e acredite em mim, afinal de onde vem essa sua racionalidade que difere da minha e por isso não é inteligente?
Blá.
Grito, defendo e ofendo. Afinal sou uma pessoa de bem e moralmente íntegra. Defendo os valores morais e culturais da minha nação.
Blá blá.
Pode defender esse ou aquele, então? Defendo um, a quem chamo herói, pai da pacificidade e a elegância incisiva que traz a fundação de uma sociedade correta.
Blá blá blá.

E isso era um pequeno burburinho. Um sussurro vazio.
Um zunido do lado de fora. Um zunido de brigas incessantes.
Foi quando me dei conta de que falávamos sobre abraços.
Quando me dei conta que não havia ódio.
Quando me dei conta que não precisei da dor para me despedir de alguém querido, pois lá estava você no alcance do meu abraço.

Falávamos disso enquanto lá fora brigavam os outros.
E aqui dentro sorríamos um para o outro.

Não parece

Eu tenho algo a dizer.
Prefiro não fazer, prefiro enviar uma imagem de um sorriso, mesmo que a mim não enviam.
Se eu falar, eu prefiro falar mesmo se a mim nada é dito.
Prefiro ser companhia, mesmo se ninguém me acompanha.
Prefiro ir visitar, embora o número de visitas que recebo é quase igual ao número de convites feitos por mim, e recusados por outrem. Mesmo que muitas vezes minha visita não foi bem vinda.
Mas o que eu tenho a dizer, é a respeito de algo que eu gostaria. Algo que desejaria.
É o reflexo da minha incapacidade de controle sobre o que quer que seja, e da sua também.
O que desejo?
Desejaria não ter percebido nada disso.

Desejaria ter que lidar com tudo isso de uma outra forma, sem perceber e sem por quês.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Você coloca o preço que não sabe quanto.
Paga sem saber. E no fundo nada vem ao caso.
Não há saldo.
Ria, e o mundo irá sorrir junto. Chore, e chorará sozinho.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Juão

Falar por falar e não ter o que dizer. Falar sobre uma ponta e revelar um vagalhão de profundidades. Que trabalho árduo, todos esses verbos, tão pouco tempo, tantos pretéritos e o futuro: indefinido. Um coração selvagem pulsando, uma batida em ritmo quatro por quatro, um pneu revirando a terra que vive na linha entre os vivos e os que morreram. As águas em março molhando o outono, que coisa boa respirar esse ar leve de um ambiente arejado, sentir nas antilhas um sopro desconhecido. Provocar, aguentar calado. Não se desespere, não entre em pânico.

terça-feira, 15 de março de 2016

Saindo de casa

Alice mal pisou na calçada e já escutou a vizinha gorda gritar com o cachorro por ele ter comido o resto do bolo que estava no lixo. Parando, um pouco assustada com o barulho, ouviu os vizinhos da frente num papo profundo. Pareciam boas pessoas. Seu Rivaldo, afirmava com veemência sobre o quão vagabunda era a Dona Gertrudes, que, aparentemente, cuidava da própria vida ao invés de fofocar sobre os outros. Eduardo ouvia e sorria de volta, repensando sua amizade com a senhora.

Alice sentou no cordão. Mordeu um pedaço da bolacha que trazia na mão, se sentindo cada vez mais minúscula aos assuntos do bairro.

O simpático Senhor Rivaldo terminou o desabafo, acenou para a gorda do cão e entrou em casa, segundos antes do carteiro chegar e entregar a carta que Eduardo esperava. Era o empréstimo que havia pedido novamente. Dessa vez daria certo.

Então, a rua se aquietou. Finalmente. Alguns pássaros cantaram, algumas crianças passaram de bicicleta e correndo. Era quase meio-dia e o sol fazia festa.

Alice limpou as mãos na saia, levantou e tropeçou, dando de cara no paralelepípedo. Ficou vermelha.
Sentindo que aquilo seria a pauta do bom dia de amanhã, quis se enfiar em um buraco de tanta vergonha. 

sexta-feira, 4 de março de 2016

Muito Obrigado

Muito, muito. Muito obrigado. Pura obrigação. Por obrigação, não por vontade própria: levantou o rabo da cama, trocou pela farda o pijama, levou consigo o guarda-pó, dependurado ao lado do guarda-roupa; tomou café, limpou o bigode no guarda-napo, saiu de casa sob chuva, sob um guarda-chuva; trancou bem a porta-de-casa, abriu a porta-do-carro, guardou o guarda-chuva no banco-de-trás para não precisar abrir o porta-malas, guardou o óculos de sol no porta-luva, vai que o tempo muda; Ligou o carro, presente divino, e partiu para o trabalho, mesmo sem querer muito, mas com uma sensação de gratidão, por tudo que tinha conquistado; não sem ajuda, sim, era grato, diria "muito obrigado", mas a quem? Adeus. Não há. Disse: há deus? para a mulher, antes de sair, alguma vez? Melhor não criar intriga. Melhor agradecer pelas graças alcançadas, nenhuma de graça, tudo à custa de muito suor, menos no inverno, mas ainda assim algum. Tocou o carro esquina adentro, rua afora, rumo ao fluxo interminável de veículos gratos, nunca grátis, que levariam centenas e milhares de outros obrigados aonde queriam ir sem desejar. Dirigindo com pressa, debaixo de chuva, despencou de cima para baixo de um viaduto, destruindo fatalmente o carro que era dirigido por ele, mas guiado por ninguém mais.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Gotículas

Que boa essa sensação de não ser importante.
De perceber que as coisas se movem, rolam, se transformam sem a nossa interferência.
É bom repensar o valor que se dá a si mesmo e notar que: quanto menor, mais perto da realidade para o universo.
E pensar: que se foda o universo.
Saber que tu é livre para partir desse mundo e ele continuará praticamente do mesmo jeito.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Desafino

Não sei cantar.
Queria propor um desafio.
Queria saber escrever como escrevera outrora.
Há situações onde o pretérito-mais-que-perfeito é ideal. Perfeito.
Encontrei uma história no banheiro e, só para evitar a mesóclise, me aviso que devo contá-la.
Ela e mais uma.

terça-feira, 1 de março de 2016

Malfeitor

"Saia do meu caminho"; mas e é teu mesmo?
Tem gente com pressa, tem gente que conversa.
Se for devagar, vá pela direita.
Se for divagar, ponha a mão no queixo, sim, a pose é importante.
O que comentar sobre o João, Zé?
Memória fotográfica não existe, só retratos falados, e ainda assim muito embaçados pelas preciosas perspectivas que carregamos em nossas lentes naturais.
Mas dá uma leveza nos ombros, é quase uma brisa no rosto essa sensação de não se preocupar em emendar os discursos, em convencer, em ensaiar um monólogo e provar as teses num tubo de ensaio, saborear a irresponsabilidade de poder perguntar e não responder, de escrever sem introdução nem conclusão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Mil quatrocentos e quarenta

    Coruscando em meio a noite, um brilho sedutor levava os homens para fora de seu caminho, qualquer que fosse ele. Ao descobri-lo, abandonavam o que traziam consigo, indispensável ou não - dali para diante, tudo era opção; eram vistos nus, inconscientes da própria condição, seguindo a origem daquela luz meio dourada, meio azul, brincando de esconder-se entre as árvores, além das coxilhas, depois da esquina.
    A distância, pareciam apenas distraídos. Repetiam-se. Seguiam cada dia como se fosse apenas mais um. Andavam sem ver bem o chão, tropeçavam muito, não caíam por pouco. Cada qual a seu tempo, como moscas numa teia de areia, eram pegos e nunca mais vistos. O brilho se apagava antes que eles encontrassem sua origem. E então era tarde. Era hora de dormir.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Sem título

Não sei se era a tarde que malpassava mas por fim embalava e dava mostras de que iria embora antes de mim, mas esse enunciado de que tudo tem seu fim passava a me revelar outra face. Sim, eu partiria daqui, iria para algum lugar melhor e finalmente a sensação de infinita espera por um momento infímo ia se dissipando. Ou foi a curtíssima ilusão de que finalmente diria algo, poria para fora umas sentenças, aliviando a pressão intra-craniana, nunca de maneira suficiente e definitiva, que disso nada conheço.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O MACACO ASTRAL CELEBRA
A possibilidade de mais um dia
Pela posse de um corpo físico
que torna possível percorrer distâncias
No que seria um dia qualquer caso fosse outro
Felizmente em boa companhia
O MACACO ASTRAL CELEBRA

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O MACACO ASTRAL DIVULGA
Um estudo com credibilidade
Obviamente feito no estrangeiro
por uma equipe qualificada
com um resultado que comprova a sua superioridade
Para que todos possam saber
O MACACO ASTRAL DIVULGA

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Era da razão

Você consegue ouvir o relâmpago?
É a informação que vaza, a tristeza que não acaba e a onda do mar de gente sempre agitada.
Era da razão a busca pelo equilíbrio, o prazer de estar vivo, a adrenalina da aventura.
Mas, na era da razão, apenas um tem razão e os outros não.
Mulheres brigam pela sua cela na grande prisão a que deram o nome "liberdade", e os homens comprometidos com a sua causa assumem a papelada, da transferência inusitada, liberdade condicional. Amor incondicional? Não. Também condicional. Engatinha-se em direção à luz e na menor fagulha perceptível a olho nu, cega-se a si próprio na tentativa desesperada de possuí-la. Era da razão. Quanto mais próximo do sentido, mais cedo é a percepção de que estás sonhando.
Era da razão sobreviver. A tentativa permanece dia após dia, atropelam aos que tentam fugir, em grandes cavalos imaginários que pisoteiam tudo pelo caminho, como a vida representada num carrossel girando muito rápido. Você deve cavalgar muito bem para não cair.
Aprisionam outros seres ao seu próprio gosto e costumes dando a isso o nome de causa animal. Era da razão, afinal, somos animais também. Animais apenas, animais apesar... Animais a pensar.
Mas não importa o que pensa, se for diferente de mim, alguma coisa me disse, me ensinou, instruiu, que deve ser meu oponente e meu inimigo. Oposição. Até a morte. Até que a morte os separe.
Porque na morte quando estiver como um corpo sem vida dentro de um caixão eu irei visitá-lo, derramar minhas lágrimas sobre teu corpo na tentativa de consertar as coisas que não fiz no tempo certo e dizer 'Há deus?', não há.
Era da razão acreditar.

Aves

No fio invisível que separa os momentos, um dia nascia e outro morria e a expectativa era sempre grande: novidades?

Via aquela cena quase sempre chata nos filmes: alguém ensaiando um diálogo, um discurso frente ao espelho; nada que funcione quando chegar a hora. Via desfilarem argumentos e hipóteses sobre a nova chance em um novo dia, agora vai. Ouvia chamados que nasciam e morriam prontos para ser ignorados, ocultos sob a sombra que encobre os problemas dos outros. Ouvia e nada fazia; ignorava.

Na história invisível em que é contada uma vida, num dia nascia e noutro morria e a importância era pouca: haverá outros.

Os dias por vir se enfileiram mas somente é possível ver o primeiro da fila; uma hora dessas a fila acaba, numa surpresa, e daí a conta incontável deixa de ter a importância que eu e tu tentávamos atribuir. Nunca fui muito ruim com matemática, apenas nunca soube bem o que fazer com ela - mas isso é o de menos.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Eu lembro

Eu fiquei sentado pensando. Me desculpa eu não queria fazer isso, disse. Não consigo controlar os sonhos ainda.
Eu lembro de quando ia até seu encontro, nenhuma sensação lá e de volta, era sequer parecida com a transbordante e adorável fase momentânea, e nem entro na questão de ser real ou não. Eu já não sei mais.
Mas eu te via. Eu ficava sempre a procura. Eu procurava nas nuvens, no sonho lúcido, nas matas cortadas pelos caminhos que eu percorria a fim de me perder, ora, até mesmo nos banhados. Andando de ônibus e de carro. Ou até parado, sentado.
Quando me esforçava o suficiente conseguia te ver pelo canto do olho, como uma brisa colorida. Na visão periférica. Mesmo estando acordado.
Até que em algum ponto entre o sonho e o despertar, te senti próxima a mim.
Mas nunca pude segurar tua mão. Nunca pude te segurar nos braços.
Acho que foi quando escolhi inconscientemente parar de te procurar. Talvez porque eu andava distraído demais. As memórias mais uma vez endureciam com a frieza do tempo me deixando sem muitas opções. Sem muitos recursos.
Eu te olhava e perguntava se você estava bem, como que se sentia. Você parecia estranha.
"Estou maravilhosa. Somos maravilhosos!"Uma fala suave e doce. A pureza direto da fonte.
Um dia algumas lembranças começaram a se derreter, resvalei no gelo e me vi com você nos braços, mas tive um certo medo. Finalmente pude te tocar. Percebi que havia algo errado. Obviamente se tratava de um sonho e nada mais, e pela primeira vez pude te ver de perto com todos os detalhes inimagináveis, inacreditáveis, até mesmo para mim.
O pior aconteceu.
O tamanho da tragédia somente se igualou à tamanha injustiça que, naquele exato instante, percebi que havia cometido contra você. Contra você, contra outras pessoas.
Você se foi. Mais veloz que um pedido de desculpas simplório. O máximo que conseguia pensar no momento.
Me vi na companhia de mais uma pessoa apenas, com uma sensação esquisita, um caloroso desconforto, e o suor me escorria na face enquanto corria de volta pelos corredores mentais da memória, na esperança de te encontrar.
Em uma de minhas pressas, noto uma silhueta familiar.
Era apenas a Júlia, com o cigarro entre os dedos, rindo do meu esforço. Eu não a culpo, ela ainda foi legal comigo me oferecendo um cigarro. Não obrigado, eu não fumo.

E eu ainda estou correndo. Estou ficando cansado, confesso.
Como eu disse antes, eu não queria fazer isso.
Eu não queria trocar.

Mas descobri que não sou bom em entender a diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho. A diferença entre entender a escolha  e escolher entendimento.