terça-feira, 25 de março de 2014

Dente-de-leite e a guerra fria


Caí num poço por toda uma vida. Caio enquanto tento compreender as paredes tão distantes, que passam sem se mover, sem se deixar nada a mim. Mas oh, repentinamente as encontro, a brisa que quase nunca interveio me joga, lentamente, de um lado ao outro. Caio sem ruído e dou de cara na pedra fria das paredes de um poço que não sei quando acaba. Minha face se esfacela lentamente, meus cabelos vão caindo; aqui jaz um fio branco.
Passaram-se estações, uma após outra; as paredes mudaram sem minha intervenção, sem pedir opinião. Deixei de minha pele uma trilha, partes de mim que virarão poeira antes do resto, enquanto vou me raspando incontrolavelmente neste túnel inexplicável.
Penso em como seria ter a opção de voltar. Nadar até a superfície, descobrir como foi que caí aqui, neste mundo feito de nós desatados.
Chovesse.
Se houvesse água neste poço e eu soubesse nadar, quem sabe
não
água
nem
deus
Quem sabe; eu poderia subir, sim, se este não fosse um buraco vazio que alguém cavou sem motivo, se é que alguém cavou, se é que poderia haver motivo para alguém que cava sem saber, buracos e trincheiras, pátios e patíbulos, uma guilhotina sem fio barbeando a esperança de uma mente que pensa, quem sabe se eu aprender a nadar, se aprender a matar, quem sabe se eu aprender a voar, quem sabe se ele, ele quem, não sei, se ele o que, se ele atirar uma corda e me puxar de volta, pra cima, sim, pra cima, o que tu faria então, não sei, então o que queres de lá, saber como vim parar aqui, mas não parei, continuo caindo sem saber onde, como saberia se não estou em lugar algum enquanto caio, sim, Joe, eu caio e como sei, porque debaixo de meus pés nada há, nem botinas, nem salvação, nem tesouro, nem miséria, só um destino de cair onde não sei se pararei, dando de cara no caminho, devagar, ralando o nariz, perdendo a face, perdendo o sorriso, empurrado por uma brisa que não sei de onde vem, ou será uma mão, mas de quem, de deus, que deus, não tem, não tem mão nem deus nem nada me levando para baixo, se é que vou para baixo, agora me ocorre, nada há sob meus pés, e porque haveria, e não sei se não caio de cabeça, a verdade, existe, não, mas a vejo, ora nem saber eu sei, só acho que não saberia dizer se caio de pernas para o ar ou para o chão
ah, Joe, sinto nos poucos cabelos que me restam, sim, sinto algo tocar de leve minha cabeça, estou sentado de pernas estendidas, escorado num pequeno muro de pedra, o sol não brilha, eu não brilho, venta pouco um vento bom, é tarde mas há tempo, nuvens cinzentas esbravejam: é chegada a hora de levantar. Ergo a cabeça e encaro a jovem que sorri me perguntando onde estive, em que pensava. Eu jamais saberia responder. 
chove

(Sobre nós dois e o mundo, sobre todos nós um pouco de chuva deve cair)

Nenhum comentário:

Postar um comentário