sábado, 21 de novembro de 2020

A primeira vez

No início eu me perguntava se eram homens ou macacos. Parecia muito real. Era bonito, era esquisito.
Mas eu sempre fui esquisita nos gostos. Com filme não ia ser diferente. Era um milagre eu já não o ter assistido com o meu pai antes.
Cinema mudo, acho que chamavam. Mas era bonito. Eu preciso tomar cuidado. Se tivesse ido no programa do abu, eu teria dito que choro diante da beleza, sem dúvida.
Depois dá uma confusão. Claro, macacos entediados, é assim agora, teria sido assim no início também.
Aí vem a pancadaria e jogam o osso pra cima... E eu pude entender um dos momentos mais incríveis da história do cinema.
Um salto. Uma viagem. De macacos a astronautas. Da superfície ao espaço. Somente na imaginação mais viva.
E começava a dança cósmica. Danúbio azul. Eu teria apostado que nunca iria funcionar, mas lá estava. Me fazendo ver como eu ainda era ingênua na arte de falar. Mas falar não se resume a só palavras, como eu mesma aprendi naquele momento.
Uma orquestra, uma arte milenar. Tudo em perfeita harmonia. Uma celebração da humanidade.
E assim como em outros poucos momentos da minha vida, era possível olhar pela janela do meu apartamento, em meio a tanto desastre e angústias, tristezas e sofrimento... Olhar o céu infinito até as estrelas e os astros... E acreditar que o futuro é lindo.
Pois alguém, há muito tempo atrás me convenceu, naquele preciso momento, através de suas palavras silenciosas.

Sorri.


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Não éramos anjos

Uma queda talvez. Uma redução no nível intelectual, uma insistência aparentemente permanente. Nada é tão bonito que não possa desandar.
Uma proposta de diálogo. Um convite à paz.
Uma onda depois da outra, do mar de gente inconsciente. Um oceano de lágrimas.
Uma visão escura e um beco sem saída.
Nos livros, a promessa esquecida. Sejam contos de fadas ou contos da vida humana, da nossa vida. Um bando de macacos entediados. Ansiosos. Abandonados por si mesmos há muito tempo.

Eu? Eu sigo. Aos trancos e barrancos. Não trago novidades nem remédios. Nem lucidez.
Trago o desprezo por gente idiota. Trago minha angústia de sobreviver com medo. É o que trago sobre viver. Trago mais sobre a morte, um prego de cada vez. De marcas diferentes.
A decepção da regressão. Andar pra trás.
Parecem poucos, muito poucos. Eu mesma não me vejo como um bom exemplo.
Mas querem espelhar divindades. Nos espelhos portáteis. Inteligentes.
E onde paramos?
Em muros altos, cercas e sistemas de monitoramento?
Na desconfiança. No trabalho.
Nem grandes, nem importantes.
Mas é aquilo né? É sempre o potencial.
Sempre na esperança. No quase.
Na falta. Na miséria.
Na ignorância.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cadê

Na vitrola tocaria aquele clássico:
"Cadê você, que nunca mais apareceu aqui?
E não voltou pra me fazer sorrir"
Cadê criador, criou e se mandou? Cadê, perverso, que tem gente apanhando sem provocar.
Cadê plateia de peleia dos pobres, cadê o bastião da esperança?
"Nunca mais apareceu" é otimismo. Jamais apareceu. Nem poderia, não possui essa capacidade. É o guardião invisível; logo, não é capaz de aparecer.
"Cresça e apareça" – não cresce.
E guarda o quê? Deus me livre e guarde de você
Guardião da mesmice, da neutralidade obtida pela soma de todas as malevolências às infinitas bondades. Protetor do tanto faz, garantidor do fiz o que pude, mantenedor das apenas promessas de paz.
Ai, a pombinha branca do espírito santo, ai de mim!

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Números

Um a mais. Um a menos.

Lembro do meu tempo de escola às vezes. Contar com palitos, historinhas matemáticas. Versos sem valor pra dar sentido a um número qualquer. Histórias da carochinha. Numerozinho. Todo inho é ruim, de fato.

Depois aparecem em bancos, aparelhos, planilhas e em apresentações de empreendedorismo de palco.
É bonito porque tu coloca os dados, mostra as cifras. O Jornal do Almoço adora, assim como a cidade alerta, aí vem o criança esperança pedindo doações. Pessoal ajuda. Vai que dessa vez o didi consegue comprar um iate. Pois, como diria o Clóvis, quando não dá criança amor, criança plena, sobra criança esperança mesmo. Na falta, na miséria e no abandono. Pobreza já é atração turística.

Bota na planilha do futuro do calçado. Calcula as projeções. As metas. Imprime tudo em papel. Tal é a importância. Ano que vem tem que sair mais que no anterior. Azar da criança esperança, já que tudo que sobrou foi morrer trabalhando numa esteira. Pagando bem, que mal tem?
Ninguém mandou não se esforçar.

Nessas horas acendo um cigarro. Lembro que também quero que meus números vão bem. Em notas. Em salário. Em conta. Trago.
É inevitável a comparação com tudo que é necessário para manter isso assim. E a conta não fecha.
É proposital que ela não feche. A conta fecha no terceiro ou quarto passo para o sucesso, ou será no primeiro? Não sei dizer. Parei de ler conto de fadas depois que cresci.
No meu conto não parece ter final feliz. Eu também não sou uma fada.

Afinal são só números não é mesmo?
Na historinha matemática eles precisam de um conto pra fazer sentido. Por si sós, são só símbolos.
Ver sangue todo dia acho que me deixou meio entorpecida. De modo que dificilmente paro pra pensar neles.
De qualquer forma, eu tenho trabalhado até me acabar. Mal sobra tempo de fumar.
Até já devo ter pego a novidade. Sem sintomas. A máscara não adianta muito. O que teria adiantado seria um pouco mais de lucidez em tempos de decisão e também a ironia máxima: levar os números um pouco mais a sério.
É quando eu lembro que são mais de cem mil mortos.
Como números, são só símbolos.
Mas a historinha...
Ainda me assusta.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Memento

 Enquanto, como uma rata, fico correndo nessa roda gigante, engraxando essa engrenagem enferrujada, o brilho da graxa me mostra um reflexo de outras coisas. Através da fumaça do meu cigarro às vezes eu mesma posso ver, sem precisar de um espelho, ou de graxa pra engrenagem. A maquiagem tenta esconder. A roda tenta distrair. A corrida tenta disfarçar. O inconsciente insiste em programar.
Ainda existem pequenos espaços de tempo, entre um cigarro e outro, entre uma paranoia e outra, que fazem vezes de momentos de lucidez temporária.
Onde eu me lembro do que insisto em esquecer.
As pequenas coisas, as coisas simples. O poder e não a corrupção. Enterrados debaixo de um grande entulho de coisas necessárias sem necessidade. Debaixo de birras infinitas e do melindre.
Lá estão as coisas de importância sem que ninguém se importe.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Pacotinho

Nem sonho nem pesadelo. Uma mistura de ambos. Mistura para bolo. Parabéns. Tudo pronto, tudo em caixinha, tudo muito inho, porcariazinha. Nem sempre tive noção disso, mas hoje penso que pedir respeito é uma das coisas mais degradantes que uma pessoa pode fazer numa conversa. O que tu faz com o respeito dos outros? Enfia onde?
Nada é mais duradouro do que o "hoje em dia", um intervalo de tempo eternamente presente, em que as coisas nunca param de mudar e são, por incapacidade nossa de perceber as diferenças, sempre as mesmas, irreconhecíveis.
Me dê um pouquinho de respeito, um respeitinho. Hoje valoro muito mais o desprezo, a contundência de apontar um dedo na cara, por mais que doa. O desprezo nunca é fingido. Deve ser isso. A calçada, os corredores e as filas do supermercado, a presunçosa linha do tempo de uma rede social - tomados por bons sentimentos fingidos. Tudo pronto, empacotado. Apenas cláusulas do contrato social. Interações ultraprocessadas, relações sociais zeramente nutritivas. Tão malfeitas que engolimos sem pensar, sem nem fingir muito que fingimos acreditar. Se deixar, nem barata come.
Mas não o ranço. Esse só existe se for de verdade. Fruto em uma feira de orgânicos. Procedência garantida. No ranço você pode confiar.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Como vai você?

De vez em quando me volta na mente o problema dos incomodados que não se retiram. Eu noto com uma certa perplexidade o grande espaço de tempo entre agora e a época em que ingressei eu mesma nesse grupo peculiar. Esse grupo individual de pouca coletividade.
Pois eu teria bastante coisa pra falar também. Dentro desse jeito velho, antiquado, quase um clássico de um falar e o outro escutar, que se perdeu em algum momento na guerra moderna dos corretores automáticos e dos escravos obedientes aos seus senhores referenciados com a qualidade estrangeira smart.
Talvez até queira voltar a descobrir o carinho perdido no trato com os demais.
Mas desde que trabalho com pessoas, só me interessa o sangue mesmo. Não é pra menos.
Falhamos.
Eu entendo, o labirinto é grande demais e o tempo é muito curto. É melhor ir atrás dos pilares disso e daquilo, dos passos para a felicidade e dali para o sucesso, dos molhos de chaves de mau-gosto nos intermináveis buffet's motivacionais. Assim o diálogo se cala com o cair das cortinas do próximo espetáculo, a grande novidade, mas o circo segue o mesmo. Desconfio que até já vi o mesmo palhaço mais de uma vez. Me interessaria mais dar pipoca aos macacos.
E aí eu vejo no olhar dos doentes o grito silencioso de que "sou um ser humano, minha vida tem valor.". É tudo o que escapa quando se vêem sem saída na espera do remédio que nunca chega.
Nunca é suficiente.
No entanto, ainda precisam falar. Precisam se ouvir falando pelo menos uma vez, pode ser que dessa vez seja sincero, diferente do resto da vida. Não é comigo que falam pois não quero ouvir. O meu gesto de bondade é involuntário porque preciso fingir que os escuto. Não deveria mas é parte do meu trabalho.
No fundo se sabe. Só que a insistência no retorno ao espaço de grosseria é bem maior.
Vasto é o incentivo.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A esquina sem eu

A cidade é um problema e já não ando minhas andanças. Quanto a isso, não há remédio. Ficar afastado é só o que se pode fazer. Uma esquina que um dia reencontrei em surpreendente acaso e lembrança, sem  que eu percebesse, deixou de ser logo ali. Mudamos: de minha casa agora chamo a outro lugar; o eu a quem me refiro agora é outro. Aquelas ruas ainda se cruzam ali, no mesmo lugar sob árvores e estrelas. Mas sozinhas, elas não significam nada.

Sinto falta do movimento, parar na esquina e atravessar as ruas somente com o olhar. Toda tragédia que cruza um caminho desperta uma exclamação: "justo agora que...". É isso. Nada acontece num momento que não interromperia coisa alguma. Estamos sempre no meio, sempre num processo de transformação.

A esquina é cínica. Diz oferecer opções, mas nos leva sempre aos mesmos lugares. O carro está em casa, mas eu também. Quanto a isso, expecta-se pelo tempo que resolva, este que é remédio e veneno, gelatina sem sabor. Que a erosão nos abra um caminho, e que ainda tenhamos pernas para andar por ele.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Comm Malfunction

Julho, ou o marido da Júlia, como me diziam até o limite da exaustão na minha infância, na escola.
Mesmo se eu quisesse me casar, não acho que iria ter quem me aguentasse. Sou um excesso até quando estou sozinha comigo mesma, me incomodo. Sai uma porção disso tudo pelo cigarro eu acho, é como se fosse uma pequena válvula, mas antes de tocar pra fora, ele filtra um pouco.
Mesmo assim acho que gostaria de poder dizer algumas coisas, trocar uma ideia ou mesmo compartilhar uma existência que não a minha própria. Gostaria que acontecesse mais. Que ao invés de se quebrar em um muro de incompreensão e gelo, erguido com minha ajuda, eu pudesse me sentar nele e observar um pouco do outro lado também. Talvez balançar os pés lá de cima.
Acho que sou sociável mais do que me imagino, mais do que eu devesse e menos do que o ideal.
É difícil.
Se antes tinham poucas pessoas, hoje é ainda menos. Até porque não há tempo. Não há tempo, não há contexto. Há um porão, de onde se mandam cartas através de pombos. Mas os pombos são mal alimentados, as cartas se perdem na ventania da tempestade e quando chegam já não fazem o menor sentido. Só que às vezes a carta é um pedido desesperado de socorro.
Pois somos animais que vivem agrupados. Somos macacos entediados que sofrem com ansiedade.
Precisamos de uma série de máquinas que tratam desde a comunicação à viagens interplanetárias, tal é a intensidade do tédio.
E aí se não sou feliz quero ser feliz, se não tenho casa, quero casa, se tenho casa quero carro, se não tenho ninguém, quero alguém, se tenho alguém quero casar com esse alguém e reduzi-lo a uma extensão de mim mesma no que diz respeito aos quereres. Quero ter poder. Mas isso não é poder, é corrupção.
E eu sorrio.
Assim como sorri na melhor transa da minha vida. Porque não só não tinha aquele muro, como havíamos derrubado tudo, mas sem cortar as mãos, sem ficar com dor nas costas e sem corrupção.
Sorri porque havia entendido.
Mas ainda não sei o que.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Postergo

Existem várias coisas que eu evito; uma delas é terminar todas as coisas que tenho que fazer, por poucas que sejam. Seria um medo de não ter mais nada dependendo da minha atenção?
Eu evito a extração daquilo que me perturba noite após dia, essa beterraba gigante atravancada em minhas artérias. Eu sei como tirar ela dali, sei os meios: palavras. Mas evito. Sei que hei de puxar um ramo, um fio, um galho e desencadear uma puxação que vai parar numa raiz inevitavelmente dolorosa - e na hora haverá uma breve sensação de arrependimento que quase poderia ter sido evitado, como enfiar a unha e fazer o nariz sangrar na caça por aquele tatu lá de cima da chaminé.
O primeiro passo seria começar, depois continuar até não precisar mais parar; mas evito. Em vez disso, cometo pequenas escapadelas de poucos parágrafos, como uma panela de pressão assoviando: apenas o suficiente para não explodir. Ei de reler-me sóbrio essas linhas e dar conta da falta de vergonha na cara, que agora não sinto, sinto muito.
Quem dera eu possa me convencer no futuro, visto que não posso me convencer no agora.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Aproveite o dia

O ciclo solar lunar terrestre humano emergiu das sombras de um ontem pouco lembrável.
Existem câmeras, aviões, existem cofres e aparelhos de ginástica.
Nossa essência é mudar.
Nossa natureza.
As pessoas mudam e as pessoas também não mudam.
Nascidas páginas em branco, várias camadas vão se acumulando, algumas indeléveis.
Aproveite o sol brilhando, tire o mofo do corpo. Guarde a sombra para o verão.
Nem tudo que vai também volta - olhe como é a vida; eu poderia insistir em algum ponto, mas pra que perder tempo me repetindo? Afinal, já entendemos tudo.

Rotina

Como não se sentir preso nesse constante deslizar no dia-após-dia?
Quando já não se é mais tão jovem; convivemos com o futuro que construímos sem saber, arrastamos por aí os pesados alforjes da nossa vivência.
Como não se sentir preso a uma correnteza irresistível e, às vezes, imperceptível?
A própria felicidade é uma prisão.
A singularidade é um cativeiro.
Acertei, mas e se tivesse errado?
Passaria fome?
Sentiria saudade?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

All alone

Vou pro terraço. Tenho um ou dois cigarros ainda. As luzes noturnas da cidade me davam as boas vindas, paisagem que sempre gostei.
Ainda tenho dez minutos eu acho.
Ouço atrás de mim alguém caminhando. Uma mão pousa em meu ombro. Outra mão aparece com um café.
Era quase como um abraço.
Bota um casaco! deve tá dois graus aqui fora...
A Aline tava com umas olheiras, parecia doente.
Depois de me alcançar o café ficou do meu lado me olhando.
Quando ela pegou no meu braço eu percebi que estava só de manga curta. E que todo meu corpo doía.
Eu não sentia mais meus pés, esqueci de colocar uma meia extra.
Eu não sentia o quão exausta eu estava.
Mas, provavelmente eu não era a única, estava todo mundo trabalhando até o limite.
Eu já não mais sabia por que, nem antes, nem agora. Não havia perspectiva, apenas um bando de burros, ignorantes, insistindo em uma birra infinita.
Apenas um pensamento coletivo: Que morram.
De repente senti quase como um corte no rosto. Uma lágrima fria e solitária despencando. A regra seguia a mesma, apenas uma lágrima era permitida. Não mais. Nunca mais.
Acho que eu estava chegando no meu limite também.
Aline se aproximou um pouco mais. Quase sem que eu perceba, ela me envolve com o meu casaco que havia esquecido lá embaixo.
Olhei para ela de relance, estava prestes a chorar.
Estávamos trabalhando tanto. Nós pelos outros, mas ninguém por nós.
Puxei ela pra perto em um abraço apertado.
Violei minha própria regra.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

E então

Em que momento descobriu que nada é verdadeiramente seu?

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Nota

É hora de correr, é hora de salvar.
Precisamos cuidar da saúde, os números não vão bem. Vejo muita gente preocupada. No corredor, na cama do hospital. Os olhares fixados nas telas. Quanto vai custar?
Mas a verdade é que eu me sinto uma idiota. Correndo pra lá e pra cá. Para que os meus números vão bem, para que aumentem.
E me preocupo, se pegar alguma coisa, se ficar muito mal. Não há astral.
Normalmente a minha preocupação é uma e a deles é outra. Talvez porque optei por ignorar as cifras sedutoras durante o aprendizado. Elas não me interessam e talvez as pessoas também não. Sempre me interessou a adrenalina, o contexto, até mesmo o sangue.
Não me interessa também um bando de velhos safados, agora todos exigindo uma explicação, uma salvação. Muito me alegra poder dizer não, não por um prazer meu, mas pela realidade da situação.
Correu, correu, e agora não consegue nem ao menos olhar para si, pois tem medo do que vê. Tem medo de perder tudo o que arrecadou. Prefere gritar ensandecidamente, defender com unhas e dentes um modo caduco de ver as coisas. Um jeito velho e ultrapassado. Mas e o futuro do calçado?
Só se for na capital nacional do passado. Capital portuária, que lança suas embarcações no mar revolto das finanças. Como mostrava naquele filme engraçado.
Não quero cidadania e não quero ser patriota, obrigada.
Meu riso vai tentar conter o meu desespero.
Minha raiva triste vai tentar me salvar dos dias de angústia sem fim. Numa semana interminável.
Não há como ficar tranquila nesse mar de gente indecente, na sexta feira que caminha para o sábado sangrento. Me dê o vinho, pode ficar com o pão.
E como diria o Ozzy, também grito:
You bastards!

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Em Bora

Quando os dias e os meses se parecem com o borrão da passagem de um automóvel de competição, o tempo é só uma referência imprecisa: uma nuvem em alto mar, indicando o lado de lá;
Quando um grito se torna inevitável, mas ainda assim não sai, a diferença entre pensar e sentir é saber dizer qual dos dois te mantém acordado à noite;
Quando a esperança é indistinguível da simples vontade de mudar de ares;
Quando a fome é uma opção;
Quando tu acorda depois de uma longa viagem e não sabe desde quando está dormindo sentado, de olhos fechados em frente à janela;

Só aí há de saber que chegou, enfim.

Nova língua

Um novo dia se descortina, dentro das paredes de cavernas, dentro das telas apagadas. Entre quatro paredes, também. Faço o meu caminho de sempre, sem por quês, sem mais saber.
No caminho vejo uma placa que diz pra ter cuidado com a escola. Não sei mais o que isso significa.
Ainda mais na era da apologia à ignorância e à burrice.
Respiro ofegante, dentro da máscara. Minha segunda máscara. Às vezes sinto falta de ar. Ar pra respirar. Ar tranquilo.
Mas carrego uma culpa permanente, uma sentença silenciosa. Mais que uma frase. Um artigo todo.
A patrulha está por aí, atenta e alerta. Pronta pra dar a decisão final. Um destacamento da marcha infernal. Um dos muitos pelotões. A operação é especial, sempre foi. Composta pelos muitos heróis consagrados.

Eu resistirei, criminosa que sou, corrupta que sou. Corrupta até o cerne. Eu não só gosto da desobediência, eu a adoro! Sou tudo o que há de ruim e seguirei sendo tudo o que me afasta da boa cidadania. Eu odeio virtude e desprezo os bons costumes.

Se eu soubesse naquele tempo, o quão sortuda eu era. Aliás, eu sabia.
Naquele tempo de criminalidade, de quebra de leis. De muitos pecados.
Eu faria tudo igual novamente, eu sei. Talvez melhor, agora.
Mas agora não há mais tempo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Isso que é vida!

Martelando até os pregos sumirem de vista
uma construção que não tem onde terminar
Aumentando o brilho da tela para se sentir mais vivo
Segurando as cartas, na espera pela hora de pifar
Epifanar

É grande a sorte de notar a falta de algo quando ainda se pode ter de volta
Um dia, eu vou poder brincar lá fora
Foi isso que eles disseram

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Picumã

Abrir uma porta de armário, uma música bacana tocando por perto.
Não existe uma fórmula para despertar lembranças inesperadas. Simplesmente acontece. Um ato cotidiano, num prisma mental que te lembra de algo bom que aconteceu há oito ou doze anos. O mais estranho é nem saber qual foi a memória. Só a sensação, sabe?
Parar pra pensar não ajuda, não esclarece.
É como uma pequena lembrança que se desprende, como um picumã voando da fogueira.
Uma aranha que não lembra das teias que teceu.

Obstáculos

Vivemos como animais migratórios em climas mutantes. Tipo cada macaco no seu galho e depois no outro e no outro. Ah, se eu pudesse oferecer raios de sol para todos. Como uma luz de lucidez que reduz a desigualdade.
Vamos vender as bugigangas? Morar juntos? O que tanto me impede?
Acho que tem muito muleque. Pouco homem. Pouco humanos. Porco humano.
Cada vez mais tenho a impressão de que a natureza do relacionamento é abusiva. Você precisa saber o quanto está disposta a aceitar e achar alguém que lhe faça rir. Achar alguém pra brincar de esconde-esconde nas cascatas. É. Bem como duas crianças mesmo.
Até hoje não vi ninguém com uma balança equilibrada. Sempre vai pender pra um lado. E daí tem os joguinhos. E daí tem as mentiras. E daí tem as maquiagens. E daí eu grito: odeio falsidade! Desejando um semblante de toxinas e seios de silicone. Não, obrigado.
Mas a mão mecânica não faz carinho, não. Eu também não faço questão.
Eu sei que pra muita gente dá medo.
Tenho medo da marcha infernal, que todo dia se põe a movimentar, que precisa gritar pra ter razão.
A cada dia cresce e consegue novos recrutas. Todos patriotas que odeiam tudo que vem do país, veneram o norte e repudiam o oriente.
O machão que precisa se afirmar como o rei do campinho, se perdendo no caminho, acha necessário reduzir sua parceira à um mero manequim de tira-bota roupas do seu agrado e de preferência que ela o aceite semi-deus de bom grado.
Por que quer uma mulher, já que nada que ela é, lhe agrada? Em cima de quatro rodas, segura a broxada.
Às vezes não tem como saber, só quando começa a ficar tarde. E tarde se vai.
Ao menor sinal, dou risada na cara. Deboche mesmo. Tenho sorte de nunca ter levado uma bofetada.
Tem vezes que acho que queria, só pra ter um motivo, só pra ter revide.
Ia ser engraçado. Aparecer no hospital com olho roxo.
Nossa Júlia! O que aconteceu? Te bateram?
Não, briguei.
Sorrindo, como diria aquela moça curiosa, com meus dentes bonitos.
Uma boca cheia deles.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Camelo

Queria poder dizer que trago boas novas. A ciência salvando os incrédulos.
Só o que trago é um cigarro; sopro de volta, um fio de fumaça para cada instante restante nessa pausa.
Quando chove, há poucas opções, pouco lugar pra fumar. Não vou muito longe.
Mas tem muita gente lá dentro que vai menos longe ainda.
Que desagradável seria saber quando é a última vez que se vai passar por uma porta.
Acho que por isso a esperança é algo tão valorizado em geral, mesmo que não adiante de nada.
Quem entra não se permite pensar que não vai sair. Até sai, mas às vezes não é por conta própria.
É engraçado, porque parece que todo mundo vem parar no hospital por uma fatalidade, um acaso pelo qual não se pode culpar.
Mas a maioria vem por causa das escolhas que fez, e fez porque quis, achando que não ia dar em nada. Nunca dá em nada, é só com os outros. Até porque é muito fácil tomar uma decisão sem saber quais serão as consequências. Não é como decidir qual paciente vai poder respirar e qual vai ter que morrer em agonia.
Isso a gente decide. Depois de todas as cagadas, alguém tem que arcar. Família, escola, governo, saúde pública.
Trago.
Restam alguns segundos.
Fico olhando eles passar, tentando esticá-los.
Passou.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Em Gana

Teve aquele senhor, seu Carlos. Estava disposto a ir longe, muito além dos seus colegas, ou da sociedade no geral, e por tabela, muito além da própria razão também. Era paciente do Rogério. Haja paciência eu diria, eu tinha era raiva. Mas ele não é o único. Já me comovi com histórias de final de vida, de arrependimento por ter vivido em vão. É o que mais acontece.
Mas quando a vida é em vão, tudo o que resta é a ignorância. Como se fosse um porto seguro, desses de navios mesmo, que navegam no mar revolto das finanças internacionais. Uma eterna ilusão. Depois eles vêm aqui no hospital encher o saco, em busca de remédio. Quando preciso dar injeção na bunda eu meio que me divirto. É o troco.
Pega esse remédio e enfia no rabo
Pois é, literalmente, o que faço neles.
Às vezes eu queria que fosse aqueles hospitais de 1910 ou por aí. Pra poder fumar lá dentro. Soprar na cara de alguns.
Porque não foi procurar teu deus? Ou teu banco? Ou os empreendedores de palco?
Porque não foi atrás das certezas infalíveis, dos cinco passos para o sucesso?
Agora quer que os filhos tenham piedade, que não abandonem. Assim como fizera, por causa de dinheiro. Por causa da saúde da economia.
A vida inteira tratou tudo como números, como recurso. Espera ser tratado com humanidade.

Com o tempo enche o saco, sabe? A gente vê tanta coisa, tanta merda. E fede. E não é o ralo. É um pouco mais abaixo. Isso quando não se tem que aturar olhares nojentos. Mas acho que fico com o nojo do que com a raiva. As situações de raiva incomodam bem mais.
Dá vontade de agredir.
Dá vontade de ir embora também. Ir pro meu apartamento, entrar no chuveiro de roupa, tentar responder a velha pergunta.
Confesso que também tenho medo. Tempos estranhos esses.
Me recuso a ser uma tola.
Mesmo por vezes vivendo um engano.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Acho que li em algum lugar alguém falar sobre a burrice ser uma tragédia.
Pra mim não há tragédia maior do que envelhecer e ficar burro, ou continuar burro. Não sei qual das duas é pior. Perder alguém que era inteligente e ficou burro é uma lástima muito grande.
A minha vida inteira eu estou tentando não ser tola. Muitas vezes eu falho. Eu sei que é difícil, a burrice é um convite perpétuo, do acaso, da rotina ou mesmo do entretenimento.
Sei também que existem muitos estímulos à burrice. Principalmente a coletiva.
Há um certo orgulho em algumas pessoas de auto afirmar a própria ignorância. Eu confesso que não sei de onde vem esse masoquismo. Não que fizesse muita diferença eu saber... Não haveria cura que eu pudesse oferecer, além de uma boa baforada de cigarro na cara, que é o que me dá vontade de fazer quando vejo esse tipo de coisa. Curar minha própria ferida.
Ferida cada vez mais difícil de lidar.
Às vezes causa desespero. Pra onde vamos ir quando as bombas caírem? Diria aquela música.
Aquela raiva triste e desesperada, um resumo da minha adolescência basicamente. E como fui tola!
Provavelmente ainda sou, provavelmente sou burra também e nem percebo. Sempre atrás de pergunta sem resposta. E quando fico chata sou um fardo pra quem está por perto.
A marcha infernal cada vez mais próxima. Cada vez mais altos os gritos.
Gritos para tentar estabelecer alguma razão insana, baseada em evidências fantasiosas, normalmente pseudo-científicas.
No meio disso há um certo ruído de característica onipresente. Todas as vezes que vou pegar um café no intervalo ou fumar um cigarro no terraço eu posso ouvir. Ouço porque me incomoda. Eu sei que incomoda os outros também, pois não querem falar sobre isso. Quando eu era criança eu também podia ouvir. Acho que meus pais antes de mim também ouviam. Talvez se acentuou quando eu nasci.
Na adolescência e em minha bravura rebelde, optei por enfrentá-lo, na teimosia e na tristeza.
Quando fico muito irritada ou muito aliviada e alegre, deixo de ouvi-lo por um tempo.
E agora.
Temos este tempo incerto. Como se alguma vez o tempo fizesse vezes de certeza.
A nossa incerteza de quando isso vai acabar, como se antes tivéssemos certeza do final.
Agora que não há volta, queremos de todo jeito voltar para um modo velho, caduco. Um modelo de certezas ridículas, que ornamentavam nossas prisões individuais. As gaiolas mais ricas, sempre um pouco mais bonitas, ainda assim gaiolas.
Grandes pássaros que se afirmam robustos e fortes, mas que há muito esqueceram de cantar. E ao menor movimento das circunstâncias, insistem em voltar para suas gaiolas frias e vazias. Substituem o canto pelo grito aos bandos. E se põem a brigar.
Parem de ser burros.

E então, meu amigo

Como é visitar a si mesmo em um museu?

Feitiço

Uma relação de consumo
Não daria para dizer parasítica,
nem predatória.
Não há caça, talvez cultivo
Pecuária
Provoco as risadas das quais me alimento;
Empanturro-me com suas gargalhadas;
Sobremesa, só às vezes: lágrimas de tanto rir.

sábado, 28 de março de 2020

O MACACO ASTRAL SE ISOLA
Porque talvez carregue em si o perigo
pensando que tudo há de passar
cuidando dos outros e não apenas dos seus
por ser mais gente do que outras coisas
O MACACO ASTRAL SE ISOLA

EU

Eu acho que não é nada. Minha opinião. Não sabe respeitar minha opinião? Ditador.
Vão trabalhar, vagabundos. Não vai dar nada. Isso é o que eu acho.
Tem que ver isso aí. Esse pessoal fica dizendo essas coisas... dados, quem gosta de dado é jogador de general, e de general eu entendo. Tem dado em casa? Brincadeirinha saudável aí, viu, hahaha.
Mas não dá pra ficar fazendo esse alarme. Eles falam que é horrível, não sei quê, mas eu discordo, na minha opinião isso não é nada, não vai dar nada. Eu tô vendo aqui, olho em volta e não vejo esse problema todo.
Não saio. De jeito nenhum. Eu, sair? Um herói como eu? Nunca, nunquinha.
Meu pau não funciona. Mas esse enxerto de poder... berrar e cuspir, mandar e matar, mandar matar. Sacrificar o rebanho dos outros.
Sair? Jamais. Saiam vocês, vão trabalhar.
SE VOCÊ DEFENDE O MAL
É MAL VOCÊ TAMBÉM
OU NÃO ENTENDEU NADA
OU NÃO PASSA DE ANIMAL

sexta-feira, 27 de março de 2020

Ensaio sobre o retorno à normalidade

Acordo normalmente olhando pra minha prateleira em cima da cama, que imita o dizer de alguém, mas ao invés de dizer normalmente, acordo pensando sozinha. O meu espelho me diz que todo mundo mente, sem exceções, em uma escrita estrangeira feita com batom, não sei o que eu tava pensando aquela vez quando fiz, mas o tempo vai dar cabo dela em breve. Sempre que vou me maquiar, pra esconder as feiúras e as imperfeições, o espelho me lembra disso. Até durar o batom. Me sinto uma espécie de animal de laboratório. Uma rata, correndo. Girando, no mesmo lugar.
Sinto uma raiva triste, um lamento em forma de grito silencioso que parece que sai do all star e vem até as pontas rosas do meu cabelo. Às vezes sai pela boca como um hálito ruim, incomodando quem está ao redor.
Os caras que me acham interessante provavelmente é por algum aspecto físico, talvez as garotas também. Não tenho preconceito quanto a isso. Pelo menos com as mulheres não se sente aquela apreensão, sem saber se a pessoa vai fazer alguma merda contigo ou falar merda, ou assediar. No início era mais medo, depois passou a ser raiva. Primeiro daquele meu parente que tenho a impressão que me assediava na infância. Quem diria? Acontece mais dentro da própria família. Na inocência da criança. Na corrida pra satisfazer o próprio umbigo. Nada é impossível.
Dia após dia. A velha pergunta. Tento evitar sempre que dá. É como fingir fugir da própria sombra.
Uma eterna agonia. Até quando o corpo aguentar.
Mas não era isso que ele queria? Disse para aqueles dois no hospital, um cara e uma guria. Não era o meu melhor dia. Ele tinha tentado se matar e ela, desesperada, atrás de mim para ajudar. Meu crime perfeito. Ninguém ia me processar.
Afinal, sou uma heroína, que salva vidas. Sempre trabalhando em conjunto dos outros heróis, os que tentam matar. O pessoal que geralmente usa um espelho avantajado pra se arrumar. Quando olham só vêem virtudes. A razão que nunca falha. O cidadão de bem.