quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Cura


Acordada, em meio à noite, ouvia com atenção as sirenes lá fora. O sol irradiava desde as 7 da manhã, mas sua noite não terminaria tão cedo.

- Culpada! Culpada! - clamava o ruído agudo.
- Onde está o coração? Onde está o coração? - questionavam os enfermeiros, apiedados.

E se a cura estava com ela, porque ele simplesmente não vinha?
Bastava de avaliações médicas! Eram perfeitamente compatíveis! Ela doaria seu coração. Desde que ele viesse, o tomasse para si, e ponto final.

Tampou seus ouvidos e continuou esperando.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Give It All Back

De repente ele queria tudo de volta.
A paz, a alegria, o leve.
Queria ser livre. Pelo menos um pouco, sabe?
Livrar-se da diária promessa do repentino e doloroso fim.
Ser amado sem sentir-se injusto.
Não sentir dores nem sintomas.
Correr, sem ficar tonto, os riscos da falsa imortalidade.
Jamais sentir o coração errar um pulo.
Ser um pouquinho feliz, sabe?

Feliz de verdade.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Andarilho

   É necessário calar, repensar, replanejar. Respire fundo, contenha-se, não seja impiedosa. Espere um pouco mais, dê pérolas aos porcos, faça o que eu preciso. Ceda o ombro, o tempo e toda a sua paciência. Procure ver além, mesmo olhando para uma parede. Não banalize as coisas, acredite, não estou agindo errado, apenas fazendo diferente do que é certo.

   - E o que eu faço com estes espinhos?

   Dizendo estas palavras, Rosa abandonou seu jardim.

O espelho

         "Que belo!" - exclamavam diante dele. Intrigava-se mais e mais a cada vez que isso ocorria.
         Que triste sina tinha, estar diante dos demais e atrair olhares para si, porém, sendo incapazes de vê-lo, pois procuravam-no com o intuito de ver a si próprios, somente.
         E por refletí-los, absorvia tudo o que eram, tornava-se o outro. Estava ali o tempo todo, como um amigo abraçando quem estava no reflexo, mas nunca por tempo suficiente de não mais sentir-se sozinho. Não tinha escolha senão deixar que partissem, levando nas retinas seu brilho juntamente com a imagem refletida. Traiçoeiras retinas de brilho efêmero que por vezes lhe despertaram paixões e que por serem cegas, materiais e falsas levavam tudo de si deixando somente o vazio em troca.
         Por vezes lhe procuravam por ter em si resquícios da imagem do andarilho, que estivera um dia à sua frente. Deixava que se aproximassem na esperança de encontrá-lo, embora soubesse que do andarilho nada tinha, senão a lembrança.
         Do vazio que lhe deixavam ele se preenchia... até que decidiu não mais se importar, afastando-se das luzes para refletir somente a escuridão. E por estar vagando na escuridão adentrou sem perceber aos domínios de Dimensão Paralela, onde se quebrou ao chocar-se com uma fonte, dentro de um jardim.
         Desfeito em mil pedaços, fundiu-se com a água e pela primeira vez teve seus desejos ouvidos: "Queria que em meu brilho enxergassem valor. Queria ter ao menos a metade de uma flor!". E neste dia, imerso na fonte dos desejos, o espelho mudou sua sina. Tornou-se uma jóia, que foi encontrada por Rosa.

Rosa

      Rosa vagava pelo mundo com os olhos vendados. As vendas estavam ali desde que Cotidiano as colocara. Tinha a impressão de que foi logo após ter conhecido aquele belo rapaz chamado Discernimento, mas não tinha certeza, já havia se passado muito tempo.
      Embora não lembrasse da sensação de não tê-las, lhe causavam certa angústia. Estava acordada, era evidente! Os outros quatro sentidos lhe diziam que havia um mundo em movimento, talvez ao seu redor, talvez somente à sua frente. Não sabia dizer, já que por vezes cada parte de si lhe mostrava algo diferente.
      Por viver dentre os espinhos, suas pétalas que um dia foram sedosas e perfumadas estavam feias e machucadas. Rosa não acreditava que encontraria o lugar almejado, de terra fértil, macia e sem espinhos onde pudesse fixar seu caule. Talvez em decorrência das tantas luas oscilantes desde que vira pela última vez sua amiga Esperança, que lhe remetia às maravilhas daquele lugar.
      Tateava os muros mas não encontrava a saída. Até que, em um dia especialmente iluminado, os portões de um jardim secreto se abriram diante dela e nele Rosa encontrou a Maravilhosa Fonte dos Desejos a atender seus anseios: "Que caiam as vendas, e que Rosa veja o mundo!".
      Assim, Rosa enxergou a luz. E o clarão ofuscante pouco a pouco foi se transformando em curiosas figuras cercando aquele portal que a levaria até Dimensão Paralela. Naquele lugar, descobriu maravilhosos tesouros cercando uma jóia rara. E ao tocar a jóia lembrou como era sentir paz. E quiz para si a paz, a jóia e os tesouros.
      Ao esquecer suas angústias, pôde ver que o tempo não existia. Estava deliciosamente perdida entre os extremos princípio e fim e sua felicidade era tão plena que não podia ser abalada pelos velhos paradigmas. Nas mãos de       Rosa a jóia que até então se preenchia de vazio, transbordou com seu perfume. E por estarem preenchidas de paz e de perfume, ambas conheceram a plenitude, pois era tudo o que almejavam.
      Mas não há bem que sempre dure, assim diz o ditado. Ao olhar para a frente, Rosa viu despontar no horizonte a silhueta do andarilho. Ele adentrou o portal a passos largos e com o olhar nublado, como quem volta de longe trazendo em suas mãos mais espinhos. Vinha reivindicar as pétalas de Rosa que um dia macias perfumaram seu mundo, porém machucadas pelos espinhos que carregava já não podiam voltar ao jardim onde eram cultivadas. E de desespero, Rosa chorou. Na presença do andarilho sua jóia, agora tão bela e cheia de perfume, voltaria a se preencher de vazio.
      O portal e os portões se fecharam, Rosa sem a vendas foi arrastada de volta aos domínios de Cotidiano. Olhou para suas mãos e percebeu que além da jóia, carregara consigo também um questionamento: doar-se por amor! Assim sua mãe havia lhe ensinado. Mas será que doar-se por amor significava amar a jóia e a completar naquela plenitude? Ou abrir mão de seu amor próprio para entregá-lo ao andarilho e ao mundo que havia ao seu redor?
      Sim! Um mundo ao seu redor! Agora tinha certeza!
      Levantou-se do chão, sacudiu a poeira. Tendo em mãos sua jóia seguiu adiante sem medo. Não importava a direção do andarilho ou a quantidade de espinhos que trouxesse em suas mãos. Sua missão era inundar com seu perfume onde houvesse vazio. E onde há espinhos, não há vazio.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Chorar de Raiva


sábado, 16 de fevereiro de 2013

A raiva que dói no estômago


Em alguma língua, cliente deve significar inferno. Carniça. Porra. Merda. Certo, é injusto generalizar, mas os bons acabam pagando pelos ruins, já dizia minha mamãe. E lá no restaurante não era diferente. Meu estabelecimento nunca foi fino, na verdade, nem sei se é um restaurante, porque eu sirvo pratos à la carte mas sirvo lanches também, de dia e de noite. Mas sempre foi meu ganha pão, é honesto. Tento juntar uma boa qualidade com preço razoável, e tenho minha clientela. O pessoal do comércio aqui da rua vem comer aqui seguido, e isso seria muito bom não fosse o seu Evaristo.

Evaristo é corretor de imóveis, falso moralista, falso cristão. Desses que torram o saco com essas conversas de que "no meu tempo, as coisas não eram assim". Mas, caro amigo, sinto muito em lhe dizer, mas aquele tempo acabou. O tempo é agora. Evaristo Castro de Lima, ele tem o dom de ser irritante. Irrita com piadas inoportunas, comentários desnecessários sobre o tamanho de minha barba, sobre a cor do balcão. Era incrível que ele ainda era meu freguês, tamanhas eram as críticas ao meu estabelecimento, comida, preço. "Esse espaguete está crú, como sempre", diz o Evaristo. "Não está crú meu amigo, está al dente", respondo eu, toda santa vez. O que mais me irritava era o fato de depender do dinheiro de miseráveis como esse, eu não podia dizer o que pensava. Até porque o que eu pensava não envolvia palavras, mas sim os punhos. Um martelo, talvez. Ano após ano, o ranço daquele desaforo se instalou em minha ideia sobre aquele homem, e toda vez que ele entrava lá, era automático, meu estômago começava a doer.

Eu preferia ouvir gritos de pavor da minha própria mãe do que dar bom dia àquele verme miserável e mesquinho. Mas lá estava eu, de sorriso aberto, cumprimentando-o. "O de sempre, seu Evaristo?", eu perguntei. "E dá pra comer outra coisa? Acho que não...". Ah... imaginem uma faca, uma faca aguda, lentamente deslizando entre as camadas vivas daquele traste. "O senhor que manda, seu Evaristo". Então um dia eu tive um estalo. Acho que foi fadiga. Fadiga de tanto engolir merda daquela saca imunda de carne pútrida e asquerosa que ousam chamar de pessoa. Ou pior, de "seu". Depois de mais uma corriqueira reclamação do meu espaguete eu perguntei à ele: "Escuta aqui homem, tu acha que eu sou o que?" Evaristo mudou o semblante carrancudo para carrancudo surpreso. E eu segui: "Se tu acha tão ruim a minha comida, procure outro restaurante, faça você mesmo, ou pare de me encher o saco, tu não é obrigado a comer aqui". Nisso eu já me tremia de ódio, e então o sujeito conseguiu uma superação, uma evolução na sua própria repugnância. "Eu tenho preguiça de andar até o Bar Biroto, por isso me contento com esse grude". Evaristo atirou o dinheiro no balcão e saiu. Eu, entrei e vi o mundo ficar negro, e uma sensação de que meu estômago estava sendo trabalhado com um maçarico.

Passado esse episódio, um outro fato grotesco ocorreu no meu estabelecimento. O filho da Jurema, o Luan, de cinco anos, de vez em quando ia lá no restaurante. Como ele era gordinho, nunca reparamos na sua barriga. Mas vimos que ele andava jururu, sem ânimo. Num belo dia, aquele moleque desandou a vomitar lá atrás na cozinha. Corri pra ajudar e quase que eu pedi ajuda. O menino estava sofrendo de ascaridíase. E não teve buraco por onde não saiu lombriga daquele pobre coitado. Foi então que eu tive a mais brilhante ideia de toda minha vida. Às pressas, recolhi tudo aquilo, com a mão mesmo, e coloquei num pote, no congelador. Depois disso levei o guri para o hospital. Ele ficou bem. Minha esposa Clarice, que trabalhava comigo, parece que não só percebeu, mas adorou meu plano. E complementou: "Me aguarde mais uns dias, minha regra está por vir".

Eu estava ansioso, até que o grande dia chegou. Seu Evaristo veio comer, e de praxe, pediu o espaguete. Então eu falei que havia elaborado uma receita nova, pensando no que ele me dissera, e ofereci à ele. "Coma Evaristo, e como o senhor vai provar, não precisa me pagar. Apenas me diz se gosta." O homem ergueu as sobrancelhas e sorriu. Não prestou atenção à primeira parte, mas ouviu bem que era de graça. Fui ao congelador e peguei os dois potes, o de "espaguete" e o outro, com o "molho especial". Fervi de leve, afinal não tenho experiência no cozimento de ascaris lumbricoides, e temperei o molho com ervas finas. Uma pitada de sal. Nos escoramos no balcão, minha esposa e eu, e ficamos admirando nosso velho cliente se deliciar com o recheio das entranhas do pobre Luan. Ele demorou um pouco, deu umas três ou quatro garfadas. Clarice e eu caímos na gargalhada, e o homem ficou furioso por virar alvo de piada, e uma piada que ele não estava entendendo. Até que ele começou a olhar para o prato, e entender a situação, viu que aquele cheiro não era saudável. Meu estômago não doeu naquela hora. Meu coração bateu relaxado admirando a expressão de pavor e asco que dominou aquele homem, que agora parecia um bebê, de tanto que chorava e esperneava. Nunca limpei um vômito com tamanha felicidade. Agora vou sentar e esperar os processos, mas nisso vão-se anos até que se resolva algo. Mas não importa, o que importa é que eu fiz com que aquele crápula cometesse um ato canibal. Fiz um verme comer vermes.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Nosso Clube

  "A partir do momento em que você recebe sua carteirinha do clube, você está sempre certo. Essa carteirinha é um pedaço de plástico, cabe no bolso da camisa; contém informações importantes, sua foto e seu nome, data de filiação e alguns ornamentos gráficos aqui e ali. Este artefato comprova que você é um membro do Clube dos Corretos, estando, então, sempre certo, tendo sempre razão e tendo acesso à piscina do clube, que está sempre cheia.
  Para ser um membro deste clube, que tem muitos mais membros do que se percebe, mais até do que se imagina, o que não tende a ser pouco, visto que se imagina muita coisa, e muita coisa pode ser muita gente, enfim, existem alguns requisitos, com variados níveis de exigência e complexidade. Primeiramente, é necessário estar sempre certo. Este é o mais simples, pois estar certo depende de poucas coisas e dentre elas não está, por razões óbvias, saber muita coisa. Sabendo muita coisa tende-se a estar, em algum fatídico momento, errado e estando-se uma vez errado nunca mais se pode estar sempre certo; em contrapartida, ao estar sempre certo nunca mais se está errado, portanto a filiação é perpétua, o que não é, de forma alguma, ruim, pois ao entrar para o clube você fez a coisa certa.
  O segundo requisito é um pouco mais trabalhoso, mas também não é difícil de ser cumprido. É necessário que o postulante tenha, em sua vida, formulado pelo menos três contundentes opiniões irrevogáveis, não importando muito sobre qual assunto. Não é exigida justificativa sobre a formação destas opiniões, nem sobre o ponto de vista que levou a elas, pois isto simplesmente não é necessário, visto que este requisito somente é avaliado após o cumprimento do primeiro, colocados nesta ordem por este motivo. Então o postulante está, nestas opiniões, pelas razões explicadas, obviamente correto, não cabendo qualquer avaliação posterior sobre o que ele pensa sobre os três assuntos citados - está certo, está certo, oras.
  Existia um terceiro requisito que deixou de ser avaliado, portanto não é mais de nosso interesse e não será citado aqui, cabendo apenas comentar que, segundo rumores, ele não estava certo, mas esses rumores não são nossos e estão errados. Sigamos para o quarto, que passou a ser o terceiro, o que está dentro da ordem prática das coisas, ou seja, corretíssimo. O quarto é requisito é: ter dinheiro. Para ser membro do clube logicamente é necessário contribuir financeiramente, pois tudo custa algo, normalmente dinheiro. Portanto há de se arcar com o custo da confecção da carteira, que é extremamente barata, e pagar a taxa de manutenção da piscina e charutos para as reuniões, que são extremamente caros, entre outros gastos menos relevantes e mais baratos.
  O quarto requisito, atualmente o último, exige competência e capacidade, demonstradas e testadas em entrevistas e práticas, para intervir veementemente nos atos e decisões de não-membros do clube, isso mesmo, os que provavelmente não estão sempre certos. Isso porque o Clube dos Corretos não é apenas um lugar para reunir quem tem razão, mas um instrumento de correção social, que age pelo bem dos menos certos. Que nem agradecem. Na verdade reclamam, o que é uma postura certamente esperada, mas que não abate nosso ânimo, pelo contrário.
  Uma dúvida comum entre quem não faz parte do clube, pessoas sobre as quais não há certeza sobre serem certas, é sobre possíveis discordâncias entre os membros. Pois, perguntam, se alguém vai a um grupo de pessoas julgando estar certo, não tendo combinado ou trocado verdades antes, a tendência quase inevitável é encontrar quem discorde e, dessa forma, romper a corrente de certeza do conjunto. Ora, este problema não existe, pois os membros aqui estão, em tudo que expressam ou manifestam, absolutamente corretos. Todos, claro. Não há, então, como discordar."
 
  Isto ouvia o mais novo associado no dia em que juntou-se ao Clube dos Corretos. Saulo, o velhote grisalho responsável por esta integração, falava pausadamente e sem nunca gaguejar. Enquanto explicava sobre a admissão e os posteriores testes, nos quais o novato certamente passou, estendeu a este um vidrinho com balas. Eram de funcho. Adão sentiu que viera ao lugar certo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma vontade diária




















terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Platina


O bom e o ruim de ser um repórter como eu era estar sempre viajando. Eu tinha saudades de casa, mas ao mesmo tempo tinha a oportunidade de conhecer lugares que jamais sonharia, e ainda receber por isso. E quando digo conhecer, é no cerne da coisa, sem programas turísticos, sem guias. Era guiado pelo povo, tinha contato com eles, quase sempre uma grata experiência. É claro que sempre houve muita miséria, ainda mais no norte e nordeste do país, e eu me deparava com todo tipo de pedintes, ciganos, vendedores de artesanato, prostitutas, etc. No começo ficava comovido, principalmente com as crianças, mas depois aprendi a ignorar e criar uma carapaça pra me isolar deles.

Pois foi no interior de Belém, no estado do Pará, que eu encontrei o artesanato indígena mais peculiar de todos. Nas rotineiras viagens que o ofício exigia, não raramente ficávamos hospedados em espeluncas miseráveis, mas éramos bem recebidos. A equipe era formada por mim, o operador de câmera que atendia pela alcunha de Toco, e o nosso motorista, o Gilmar. Gilmar era o mais velho, e não tinha buraco nesse país que ele não conhecesse. Ele mesmo se dizia surpreso por ainda estar vivo, depois de ter se quebrado tantas vezes no trânsito. Por seu conhecimento rodoviário, Gilmar fazia o serviço de motoboy, buscava comida, bebida e qualquer outro passatempo que se usaria durante a estadia. O hotel, bom, chamar aquilo de hotel já é quase um exagero. Uma casa velha de madeira, com muito cupim, várias frestas no assoalho de tabuão, e paredes simples, com mata-junta. Por dentro era pintado de um rosa barato, e as aberturas azuis. Por fora era branco, com o mesmo padrão nas aberturas, e a fachada, "Hotel Tupinambá."

Tudo sairia conforme o normal, não fosse o fato de o Gilmar ter saído uma noite para se acabar nos braços da boemia, e não regressar até o dia claro. Não seria um absurdo, poderia estar num motel ou na casa de alguma mas liberal. Celular desligado. Poderia ter ficado sem bateria, é coisa que acontece. Mas aquelas horas viraram dias, e nosso amigo e colega não dava sinal de vida. Começamos então, o Toco e eu, a tentar refazer seu passos daquela noite. Não era difícil obter informações de um senhor grisalho de um metro e noventa e picas, magro, de pele clara e voz retumbante. Ainda mais no meio de maioria de pele escura e baixa estatura. Começamos a ficar realmente preocupados quando nos alertaram sobre com quem ele havia se envolvido. Provavelmente atrás de diversão sexual, haveria supostamente assediado uma índia jovem, descendente dos Tupinambá. As autoridades foram acionadas, e iniciou-se uma investigação sem muito afinco. Parecia que aquele homens, aqueles oficiais, também tinham medo dos Tupinambás. Cada vez mais angustiados e tristes, começamos a aceitar a ideia da morte do nosso colega.

De volta ao hotel, recebemos a sugestão de deixar o local, o mais rápido possível. Disseram-nos que deveríamos deixar aquilo para a polícia e a família do Gilmar, para nosso bem. E que provavelmente nosso amigo "estaria com eles agora, e lá ficaria". Na minha cabeça Gilmar fora obrigado a casar com a índia, ou foi por vontade própria. Se livrou das amarras da vida urbana cotidiana, e se embrenhou na pureza daquele povo, daquela selva. Entretanto, o semblante dos que lá viviam não dizia isso. Eles tinham um que de pavor, de repugnância. E unanimidade quanto ao silêncio. Não se devia perguntar, porque os Tupinambás não eram muito políticos, digamos.

Decidimos que partiríamos ao amanhecer. Fechariam seis dias desde o sumiço no Gilmar. E àquela noite foi impossível dormir, com tantos temores rondando minha cabeça. Foi então que o serviço de quarto nos ligou: Tupinambás estavam subindo e queriam falar conosco. Morri naquela hora, de pavor e angústia. Toco dormia profundamente, não achei justo acordá-lo. Com mil pensamentos terríveis me turvando as ideias, pensei que poderia precisar me defender. Ao revirar o quarto, para minha agradável surpresa, encontrei no fundo do roupeiro um martelo e um serrote. Alguém bateu à porta. Com minhas ferramentas feitas armas ao alcance da mão, abri vagarosamente a porta do quarto, para espiar a visita e tentar discernir suas reais intenções. Não queria mostrar hostilidade, para não despertar uma reação agressiva de nenhuma das partes. De tão nervoso, tinha os lábios e nariz dormentes.

Para meu alívio, havia uma velha índia e uma criança, que trazia um balaio. A velha calada me observava com desconfiança, enquanto a criança me oferecia peças ornamentais de seu artesanato local. Não eram exatamente belos, mas como a propaganda que me foi feita sobre aquele povo não era das melhores, não ousaria recusar a oferta, pelo preço que fosse. Segundo a criança, eram feitos de ossos de animais mortos que eles encontravam. E que aquela peça que ela me oferecia havia sido feita especialmente para nós, que não éramos dali. Perguntei o valor, e ela disse que era um presente, uma lembrança pra nós. Disse que nosso amigo "estava com eles agora", e que não precisaria me preocupar, ele "estava" lá por causa de sua inteligência e por ter causado admiração entre os Tupinambás. Ao ter em mãos o artesanato, o mais terrível sentimento quase me tirou a consciência e a sanidade. Suei frio e engoli seco, esboçando um sorriso falso, enquanto as índias iam embora. Era impressionante aquele artefato, feito de osso, e pintado com pigmentos naturais.

Mas o mais impressionante de tudo eram as marcas de dentes e os dois pinos de platina inseridos na peça.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O mal que incomoda o padre...

Eu não me importo. Nem um pouco.
Não me importo de celebrar o 'mal'. Quando é uma época em que o 'mal' só o é, em função de uma declaração do suposto 'bem' que afirma que quem é 'mau', faz maldade.

Não me importo em cultuar o 'mal'.

Uma vez que o 'mal' é tudo aquilo que te faz procurar a pergunta certa, antes da resposta pronta...

Uma vez que o 'mal' é aquilo que auxilia as pessoas na busca por iluminação.

Uma vez que o 'mal' despreza tudo o que caracteriza a totalidade, e as coisas absolutas que aprisionam o ser...

E mais uma vez ainda: o 'mal' que usa a mentira para revelar uma possível verdade. Como um artista...
E diferente do padre, que usa verdades para contar mentiras.

Me desculpe padre, mas eu não me importo nem um pouco em perturbar o senhor. Eu não quero saber da sua, única visão possível, através de um livro. Nada contra o livro, pois eles também são do 'mal', você sabe... você já queimou vários. E ainda falhou. Falhou ao enxergar sem ver...
Não tenho nada contra o "seu" livro. Ele, ao contrário do que você mente, é passível de várias interpretações e inclusive diz que quem usar ele para apenas uma visão, de viseira, in-visionária, já começa errando. Então, você está lutando contra o livro, mas em algum momento ele ganhará...
As palavras são os meios para a compreensão, e nas suas palavras, são o meio para a 'maldade'.

Porque meu amigo me disse, que "as palavras precisam fazer sentido na nossa mente..."

Então, padre, sim, eu faço 'maldade'. E eu não me importo em perturbar o senhor...