quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Eu lembro

    Eu lembro quando pequena meus pais me ensinando coisas básicas. O básico. O básico para eles. Vindos de uma outra geração, com todos os seus vícios e ignorâncias. Não é uma crítica. Assim como eles, eu também vou passar por isso se um dia tiver filhas ou filhos. Vou tentar ensinar o que é básico para mim, e eles vão ver com seus olhos um pouco mais originais que os meus, assim como olho com meus olhos mais originais que dos meus pais.
    Me ensinaram a não mentir, a evitar a mentira. É como se fosse um apelo, para que eu possa corrigir os erros de seus caminhos tortuosos que foram obrigados a seguir em função das circunstâncias. Como se eu sozinha pudesse endireitar uma tortuosidade iniciada em um tempo que já se perdeu de vista. Ao menos para nós. Como se eles percebessem a podridão inerente a todo um sistema e, se contorcendo, lutando, se debatendo, tal qual um louco em uma camisa de força, tentando gritar em silêncio para mim, para ninguém mais ouvir suas heresias perante essa religião putrefata e decadente, que escraviza, que propaga miséria, contempla e estimula a violência, que deprime e vicia, para que ninguém pudesse os dedurar perante os algozes, capatazes, ou capangas... Para que não os apontem os dedos e lhes digam que são fracassados nessa jornada triste.
    Eu lembro de não mentir. Fui ensinada com sucesso até um certo ponto. Até me deparar com a realidade do mundo, me deparar com visões e clarezas que por muito tempo não tive como compreender ou como lidar com contradições tão gritantes às quais não há outra forma de escapar senão inventando fábulas miraculosas, histórias lisérgicas ou lendas falidas.
    Há quem diga que estou me referindo à outras realidades, do outro lado do mundo, lá onde tem gente errada que são inimigos dos valores morais, da decência ou sei lá mais do quê. O pessoal não civilizado.
Eu rio. Um riso forçadamente exagerado a fim de extravasar a minha raiva e manter um pouco da minha sanidade, quase sem perceber como uma defesa contra mim mesma. Porque se vou seguir minhas vontades, não vai ser legal. Ou bonito.
    Não. Não me refiro a ninguém mais. Ocidente e civilização. Ora, se deus existisse para ver toda a sua obra nessa forma máxima, seu sorriso só se igualaria a quantia de mesquinhez, miséria e cinismo de todos aqueles que ousem seguir seu caminho. Se tudo isso, ou boa parte, é a mando de deus, é a prova definitiva de que eu estava certa desde a minha adolescência. Estava certa desde que decidi seguir por mim mesma aquela determinada intuição, que eu não entendia muito bem de onde vinha mas que parecia ser sincera, ora quem diria!? Um nível de sinceridade que não vem de deus, mas de uma mera pecadora, condenada a ser queimada viva em outros tempos, uma sinceridade que urge o questionamento mais básico: por que existe fome se tem excesso de alimentos?
É diferente do que deveria fazer pela própria sobrevivência, mentir para mim mesma e para os outros, de um lugar desconhecido surgia essa desconfiança legítima. Eu sei que outros também a sentem. Uma pena que na maioria dos casos é em uma cama de hospital com o pé já na cova, vendo na própria imaginação o resumo da sua vida vivida em cima de um engano muito bem trabalhado.
    Precisa ser de deus. Não seria da ciência, da intuição ou meramente de uma observação dos arredores. Essa ladainha toda precisa vir de deus. Precisa ser um conto místico, uma predestinação baseada em absolutamente nada. Do contrário não há nada que sustente as teses. A realidade não sustenta, a ciência tampouco e a intuição nos diz a vida inteira que está errado. Ora, às vezes até sentimos o cheiro!
    Eu lembro de olhar para o horizonte e ver uma espécie de vingança fermentando. O tempo passa e a história é um processo. Quem sabe um dia? Tal qual uma chuva refrescante, onde resolvi me banhar em um dia quente, imagino que a sensação vai ser a mesma quando vier o revés, quando vier a paga. Quando as mentiras diárias não mais forem suportáveis. Quando o mercado desaparecer do imaginário ativo tal qual o fantasma sádico que ele é, provedor de fome e pobreza, que se diz conhecedor dos destinos e soluções.
Quando essa jangada de pedra que navega esse oceano de esgoto das finanças internacionais finalmente afundar. Enfim, quando o trabalhador reconhecer em tudo que existe o fruto de suas próprias ações,  a sua própria riqueza, quando se reconhecer dono daquilo que ainda lhe é tomado, através de furto descarado, por aqueles poucos que se insistem superiores aos demais. Velhos brancos, múmias, safados e bandidos, reis e rainhas de reinos falidos, criminosos e saqueadores.
    Eu lembro de brindar este dia, em meus atos de rebeldia vazia, como quem espera o retorno de um bom amigo, uma boa companhia.