quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Maionese e Catiupe

É como estar gripado. Pelo menos alguns sintomas poderiam ser comparados. Será mesmo uma doença, ou será só invenção? Auto diagnosticar é ainda assim um diagnóstico? Doutor, de alguma enfermidade eu sofro, disso tenho certeza. Talvez seja algo novo, quem sabe.
Sabe como quando a gente come e a comida não tem gosto, parece que é um sacrifício engolir? A gente toma um café e parece água suja. Serve um omelete e enche de catchup, pra ver se pega no tranco. Cuca com maionese. Alguma coisa tem que sentir, se não dá aquele tempero delicioso de um dia fresco ensolarado, que seja a descarga da indústria direto no nosso prato.
Faço, faço academia sim. Três dias por semana, pelo menos, alguns dias a mais só de caminhada. Eu adorava fazer exercícios pra ganhar resistência, sabe. Hoje em dia faço só o básico mas tá de bom tamanho. Perdi vários quilos, sim. Não sei se é a dificuldade de engolir.
Quando eu venho aqui, parece que passa um pouco esse torpor. É, aprendi a palavra só pra poder descrever a sensação. Então, depois eu vou embora me sentindo aliviado, como se tivesse entendido a diferença de estar bem e não estar. Aí eu sinto realmente a satisfação aquela. Que nem comer uma carbonara bem feita, gosta? Não tem como não, né. Por uns dias, às vezes mais ou menos, talvez semanas, é como se a gripe passasse. Um espirro ou outro, de vez em quando. Outro dia uma tosse. Dormência no pé. Os sintomas vão voltando sem que eu sinta. Eu espirro e em vez de desejar “saúde”, tentam assaltar um pouco do tempo que me resta. É assustador, confesso. Até que vem uma manhã refrescante e eu noto que ainda me sinto abafado. Claramente, sabe. Aí eu percebo que voltou. Será que tem a ver com ficar demais em casa? Dá pra continuar depois? Tenho outro compromisso agora.

domingo, 3 de outubro de 2021

Debaixo do sol V

Como um sopro de um vento que vinha do leste. Ou uma palavra que ninguém queria que dissesse.
Um lugar mal falado, fadado ao fracasso. Uma alternativa que não era cabível.
Tão cedo me dei conta, senti um calafrio.
Uma cura amarga de um remédio que nunca tomei. Os pensamentos a mil, todos em alta velocidade e em muitos ruídos diferentes. Um único som de dúvida.
Uma incerteza que não se vê e não se sente.
Uma vida vivida com medo.
Um dia depois do outro. Assim como o coração que toca sangue sem por quês, sem razão aparente. Um mistério permanente.
A sobrevivência de uma sobrevida.
A miséria que precisa existir. Para que você tenha a quem ajudar. A boa ação do mês. Ou do ano.
A paz aparente, tentando esconder aquilo que você realmente sente.
Acorde, trabalhe e depois dorme.
Nasça, cresça, envelheça e depois morre.
Se não assim, de que forma seria?
Todas as perguntas não levam ao fim.

Acordou normalmente. Num calor diferente do aconchegante.
Teve que cobrir os pés com meias e um all star branco.
Regras que seguia apesar da rebeldia. Um silêncio em seus lábios que cobriam um belo sorriso, coisa rara, para quem tivesse a sorte de presenciar.
Como uma música que durava mais que muitos gostariam e menos que poucos apreciariam.
Fez tudo o que fazia com a pouca vontade que não lhe faltava.
Um exemplar funcional de uma espécie em extinção.
Muitas coisas que tentava segurar escapavam-lhe a mão.

Ao sair do seu prédio, em um momento de lucidez melancólica, Júlia olha para o sol.

sábado, 11 de setembro de 2021

Novidades

A primeira garfada faminta no jantar,
primeiro sopro de um outono refrescante
primeiro gole sedento em um gélido chope

Nada como a primeira ficção de se que se lembra,
aqueles atores míticos que jamais serão substituíveis
Cenas marcantes cravando-se em um jovem terreno mental,
antes de tudo que ainda virá e será nada mais que,
posso dizer, alguma repetição mais ou menos alterada

Os primeiros quilômetros de estrada,
depois de mil semanas parados em casa
A primeira queda de braço vencida em um novo trabalho
e o primeiro esquecimento
do que eu tinha que falar hoje, mesmo?

Em meio a tantas novidades que perdem o brilho com o costume,
vivem algumas sensações inacostumáveis

Cem mil horas de carinho não bastam
Cada beijo é um surpreendente anseio
Um incrível fermento existe na saudade,
que cresce enormemente em intervalos tão curtos
Impresso em um olhar eternamente revigorante

O amor é sempre novo

sábado, 28 de agosto de 2021

O MACACO ASTRAL SE SENTE MAL
Com o melindre ao seu redor
Com o macaco no galho vizinho
Com a falta de perspectiva
Com a ausência da humanidade
O MACACO ASTRAL SE SENTE MAL

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Parecer

Ao final da terceira consulta, o doutor já tinha o parecer: dissimulação de infelicidade soterrada.
Soava fúnebre para alguém tão cheio de vida. Alguém que jamais parecesse cabisbaixo, lamuriando a própria má-sorte. Pelo contrário: entre produções, posturas e poses para fotografias, construía a imagem mais inimaginavelmente positiva e de constantes alegrias que eram interrompidas apenas pelo gozo seguinte. “O quê?, não parece a mesma pessoa”, seria a possível legenda de um olhar que o encontrasse pela rua, inesperadamente, indo de um escritório a um consultório.
Diante do laudo médico, a recepção foi de surpresa. Márcio sempre se considerou alguém de bem – com a vida e tudo mais que lhe cruzava o caminho. Alguém do bem, também. Responsável, caridoso. Ninguém tinha um piu para falar sobre ele. Não na sua frente, pelo menos.
Escolado e vivido, marcado pelo tempo, o doutor aceitava tudo com a cabeça e um fino sorriso abaixo dos óculos. Não havia paciente que não se explicasse diante do diagnóstico. “Nunca tive problema algum, jamais suspeitaria”. Mas era exato, era ciência. E fazer aqueles exames sempre tem a chance do imprevisível. É como pescar em águas turvas, disse.
O grande problema, seguiu na explicação, era que o jovem Márcio vivia numa duplicidade inconciliável. O brilho que se pode enxergar sobre sua vida fragmentada não bate com a respiração pesada e o suspiro que lhe escapa no apagar das luzes, nunca antes notado. Isso veio à tona apenas nos caros exames que, repita-se, nunca falham e, por sorte, são cobertos pelo plano de saúde da companhia. Esse desencaixe entre sentidos produziu um desgaste que passou de uma leve perturbação a insatisfação constante. Como uma dentadura mal ajustada, explicou o doutor.
“E tem tratamento?” Só com internação. E tem que ser voluntária. Conversariam melhor dali a duas semanas. Que pensasse no assunto, discutisse com a família. “Claro, doutor. Família em primeiro lugar”.  O médico apenas sorriu em resposta, sem abrir a boca. Continuou sorrindo enquanto redigia e assinava um atestado, pra apresentar na empresa. Lendo o papel recém produzido, o paciente protestou: “Doutor, meu nome não é Márcio, é Claiton”.
Me perdoe, disse o velho psiquiatra, é que você não tem cara de Claiton.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Febre

O corpo é quente, é calor. Mas sinto frio.
Febril.
É calor, mas não esquenta. Minha tremedeira me impede de decorar essas paredes velhas de meu casulo, minha única propriedade. Só o que posso chamar de meu, sem ser uma moçoila soberba de nariz empinado.
Eu ouço os gritos desesperados do lado de fora, mas a mim só restam pombos mensageiros feridos que sempre perdem a mensagem no caminho, me trazendo os restos, as migalhas.
Mas é isso. Se estou triste, choro. Se não estou feliz, finjo aquele sorriso que pode até ser bonito, atrás de uma porção de palavras mal ditas. Quando não mordo a língua.
A vida é um sonho. Passageiro. Hoje a noite sei que vou dormir mal.
Acordar de susto várias vezes, com o coração disparado. Um nó na garganta. Aquele vai-e-vem de sempre, desde que me conheço gente, que nunca consegui explicar. Vários sonhos ruins dentro de um mesmo.
Dizem que estou na linha de frente, então sou soldada.
E este é meu lado.
Não tem mais ninguém aqui além de mim, não teria como ter.
Essa é minha página inicial.
Meu troco. alguns centavos na discussão.
A minha era. Uma macaca entediada entre muitos nesse grande bando.
Não dura muito não. Eu sei que às vezes é só um suspiro.
É pouco, é quase nada. Quando você percebe o auge, já passou.
Tentei gritar, mas não tinha ninguém pra me ouvir.
Não importa.
Nunca importou.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Paz interior

Desenho a minha própria tranquilidade como uma pequena torta
porção individual
Não há lâmina fina o suficiente para dividi-la sem a destruir

Enquanto a degusto, ainda apenas com o olhar
ela se derrete à minha frente
lentamente se tornando nada mais que uma mancha no prato

De pernas cruzadas e lábios espremidos
fico imaginando o sabor que ela teria
quando finalmente eu a provasse

quinta-feira, 13 de maio de 2021

O MACACO ASTRAL SE REPETE
No turbilhão de informações conflitantes
Olhando para o sol por tempo indeterminado
No brilho de uma ideia que é incapaz de entender
portanto necessita destruir
O MACACO ASTRAL SE REPETE

O MACACO ASTRAL SE OFUSCA
No turbilhão de informações conflitantes
Olhando para o sol por tempo indeterminado
No brilho de uma ideia que é incapaz de entender
portanto necessita destruir
O MACACO ASTRAL SE OFUSCA

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Pertencimento

É perturbador, depois de uma década, ainda sentir os ecos de um antigo urro. Acomodado em um novo ninho, lar de alegres gorjeios e plumosos carinhos, em hiatos silenciosos percebo que certas coisas não mudaram. Escamas branquearam e murcharam, sem perder a aspereza. Mesmo ainda desconhecendo minha forma real, já não tenho dúvidas das imensas diferenças entre eles e eu. Talvez não estivesse nos planos feitos para mim, mas mesmo na marra dei um jeito de voar; tão longe quanto possível.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Dos males, o pior

É uma boca matraca afiadamente dentuça. É um hábito pessimamente canibal. Uma espécie carniceira, nutrida pela própria miséria.
É um desprezo por tudo que não compete às suas fuças. Incapacidade de ver a dor do outro.
É um apetite por agredir, por destruir. Abocanhar e rasgar. Desmoralizar.
É uma espécie que transforma um pacifista numa nuvem de ódio e potencial agressividade.
É um par de patas pesadas pisoteando os tornozelos alheios, procurando contradizer o que não entende. Querendo achar que sabe mais. Sem saber de merda nenhuma. Vão à merda, aliás.
É difícil conciliar: saber não ser-se uma ilha e, ao mesmo tempo, ser parte desse continente de zebus radioativos, dessa menos-que-gente que faz travesseiro da infelicidade dos outros pra achar que dorme por cima da carne seca.
Cabeça seca.
É difícil aceitar que nossos ares são os mesmos. É odioso, é insuportável não ter como canalizar essa repulsa.
A palavra "humano" é tão esvaziada de significado. Na média ou na soma, o ser humano é mau. É ruim. Quer mal a quem deveria ser visto como igual. Que espécie miserável. Entre tudo que há de ruim, nada é pior.

terça-feira, 16 de março de 2021

A economia é uma besteira

Aposto que você já se pegou olhando em algum espelho.
Um espelho que outrora foi TV, depois que a energia elétrica foi cortada.
Uma TV que foi pensada, tal como o tablet, uma grande novidade. Exceto que nos anos 60 já se imaginava algo parecido, só ainda não possuíam a estupidez de fazer dele uma necessidade. Uma fábrica.
Estupidez que deu as honras de gênios para alguns. Alguns esses, podres de rico, macacos envelhecidos por uma paranoia, ideias velhas vendidas como novas. Novidades vendidas através da propaganda. Propaganda que tem em seu cerne, a mentira. Na terra da mentira, o maior mentiroso é quem fala a verdade.
Aposto que você já se pegou fazendo algo. Produção desenfreada. Pra depois refletir, como que nunca é dono de nada. Já se pegou pensando, com a alma rasgada, dignidade levada? Já se pegou pensando em viajar ao exterior, é quase como se fosse outro planeta. Engraçado né? Que estão indo pra outros planetas. Mas não você, apenas alguns podres de ricos. Lembre-se que você não é dono de nada.
Aposto que você também ouviu muitas vezes do progresso disso e daquilo. Sinta-se feliz. Tudo está girando, estamos progredindo. Aí você se recorda que o final sempre foi o mesmo. Nessa ou nas outras vezes. Sua felicidade despencando. Mas você é teimoso, briga, chora, esperneia. Afinal, como que você ousa não estar feliz?
São só cinco passos! Três pilares! Um grande buffet, no início a salada, muitas palavras chaves, banhadas em um molho de gosto insosso e repugnante, um grande molho de chaves. Sucesso é a palavra molho. Eu não preciso nem te dizer sobre a sobremesa né? O que sobrou do jornal do almoço. Assim como o que sobrou do céu. Você também, assim como sua felicidade, come e não gosta, mas se sente obrigado a gostar. Porque os números vão bem. O mar das finanças está pra peixe. Peixe grande, sempre. Peixes gordos e preguiçosos, vivendo como parasitas, sugando tudo e todos, se sentindo vencedores no final. Mas você quer ser esse peixe também, certo? Viver em uma ilusão de vencer. Uma eterna fábrica de inimigos. Pra no final da vida marinha, ser obrigado a nadar em um oceano de tristezas sem fim de sua própria responsabilidade. Acredite, encontrei muitos peixes assim no meu trabalho. É raro, mas às vezes a consciência surge antes do fim da vida. A maioria dos casos é na despedida final que vem o reconhecimento de uma vida vivida em vão.
Não se preocupe, eu tenho uma boa notícia. É a mesma sensação de tirar o allstar depois de um plantão agitado: A economia é uma grande besteira.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Não importa se eu morrer

Volto ao ponto alto do meu prédio.
Fazendo o velho passatempo noturno de observar os semáforos funcionarem sozinhos, na sombra sonora dos prédios, longe da loucura do dia a dia.
Eu e meu cinzeiro, companheiro de longa data, estático como as caveiras que o habitam. Uma delas minha, provavelmente.
Deixei a aparelhagem inteligente no apartamento. Assim dificulta a vigilância. Vigilância de toda a sorte de idiotas, desde donos de empresas até aquele cara que falou uma vez comigo e acha que é meu namorado.
É engraçado porque esse lugar aqui eu gosto bastante e já tá incluído nas tantas contas a pagar, vindo eu aqui ou não, usufruindo ou não. Eu pagaria extra pra poder vir, pagaria entrada. E ninguém mais vem aqui.
Desde criança eu tenho a impressão que ando na contramão. Não exatamente retroceder, mas andar desajeitadamente, andar errado, fazia coisas que não era pra mim fazer.
Fiz porque quis.
Minha mãe dizia que eu parecia um menino. Eu não culpo ela, ela é de outros tempos. Já meu pai foi mais compreensivo.
É sempre essa coisa, é sempre esse incômodo. Nunca estar conscientemente numa boa em absoluto.
E a mulher ainda tem um extra, por ser o que é, calculo eu.
Mas com o tempo eu tive impressão cada vez mais certa de que ninguém tá numa boa em absoluto. E aí veio a dúvida, e aí eu fiquei mais tranquila de certa forma. Deixando o meu ego falar mais alto.
Nunca entendi quem me chamou de compassiva. Claramente não me conhecem. Como poderiam? Nem eu mesma me conheço. Ou conheço, mas esqueço diariamente.
Faço o que faço porque achava que era porque gostava de ver sangue mesmo. Mas o pessoal gosta de um romance, um conto de fadas, então ninguém levou isso muito a sério. Talvez nem eu mesma. Mas as perguntas precisam de respostas não é mesmo?
Acontece que acho que o que faço não tem mais sentido. Acho que sempre foi, mas ultimamente tem sido cada vez mais, trabalhar no contra fluxo. Contrária a uma birra. Uma fagulha que perdeu o controle dentro da mente desses macacos entediados, que se tornou um incêndio. Conforme o tempo passa, ou a sinaleira troca suas cores, ou o expediente encerra, não há quem possa controlar as chamas. Certamente eu não posso. Quando me dei conta da calamidade, eu era muito retardada, muito nariz empinado, muito mais que hoje, muito apegada a uma raiva, pra conseguir efetivamente fazer qualquer coisa. E havia quem me chamasse de inteligente. Eu gostaria de poder dizer para algumas pessoas que me olham como a última cartada, como a segunda vinda de jesus cristo, como o último elo de esperança, que eu poderia fazer algo por elas. Uma grande mentira. E acho que não sou boa em mentir. Hoje são algumas pessoas, antigamente eu não sentia nada por nenhuma. Poderia chamar isso de evolução, mas pra quê?
Você só pode seguir fazendo um trabalho inútil até certo ponto. Mesmo que esse trabalho implique em melhorar vidas que não querem que melhore.
Apago o cigarro na metade. Tem mais, tem sempre mais. Se acaba essa carteira, simplesmente desço e busco outra.
Lembrei daquela vez que fui em uma escola da periferia. O planejamento revelando seus frutos. As crianças reutilizando papel de uma fábrica de calçados. Não tenho raiva delas. Mas é pra se ter. O plano parece esse.
Eu ainda não acredito. Mas e daí?
Humanoides genocidas.
Cabe.
De onde vem uma raiva tão grande?
Semana passada eu estava febril, com dores no corpo. Melhorei.
Peguei a porcaria e sobrevivi.
Mas e daí?
O plano segue o mesmo. Ignorantes safados e falidos. Multidão imbecilizada rangendo os dentes na sua raiva auto justificável, não enxergando mais nada em ninguém, senão os próprios vícios.
Não me fale em deus, por favor. Ele não. Mintam o quanto quiserem, mas não éramos anjos. Nunca fomos.
Nós vimos o que aconteceu com as frases famosas de obediência a deus e sobre deus acima disso ou daquilo. Os gestos infantis de um bando de adolescentes mimados. Falso deus, falso messias, profeta apodrecido. Não fale de deus pra mim que sou mulher, pois só posso te dizer que se sequer essa merda existiu, já tá é morta e sepultada. Se não estiver, eu mesma o mato. De forma parecida com algumas imagens que volta e meia surgem na minha mente de quando mato o presidente. Sonho acordada.
Sorrio.
Morro logo após, obviamente. Onde já se viu matar o herói do brasil.
Não me importo mais em morrer. Eternamente jovem. Louca.
Mas acontece que não importa se eu morrer ou ficar viva.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Essa é a sua canção

Eu espero que você não se importe
em ser testado e usado
exigido
roubado e drenado
dilacerado
 
Eu espero que você não se incomode
com os brados em nome de deus
um deus que deixa suas crias soltas
doentes
estrebuchando
apodrecendo
 
Eu espero que você aceite
que tem que pedir ajuda a quem
supostamente
supervisionou calado todo o sofrimento que você atravessa
É melhor desconfiar
por que qual bondade há em alguém que deixa essa merda toda acontecer em primeiro lugar?
 
Eu espero que você se contente com pouco
ver e cheirar
nunca tocar
Pois o filho de alguém mais importante está arrotando seus excessos
ao som do ronco da sua barriga quase vazia
 
Eu espero que você não espere muito
O seu lugar já está demarcado
é pequeno e indecente
é sujo e mal iluminado
é insuficiente
é superlotado

Eu espero que você entenda
Tudo nos foi tirado


terça-feira, 2 de março de 2021

O MACACO ASTRAL SE TRATA
De um doente involuntário
De um paciente espectador
buscando tratamento revolucionário
De um estranho em seu próprio lar
O MACACO ASTRAL SE TRATA

Faz arminha

Vejo todos os dias os senhores vencidos por suas contas não pagas.
Suas dívidas crescentes de longas reações em cadeia.
Falta cadeia. Iriam dizer os entendidos do alto de suas escadarias feitas de arquivos de aço.
Em cima de secretárias de diz-que-me-diz-que.
Todas as mentiras com a mesma velha estampa.
Dos gênios inventores de escadas. Da papagaiada aclamada pelo público.
Vazam os incômodos do meu saco cheio.
Quatro paredes já não dão pra tanto cinismo.
Mas seguem os responsáveis por todo o sustendo dessa merda toda.
Que paga as contas de tudo o que é feito.
Que tira o lixo e carrega as caixas.
Que bota, tira asfalto.
Que limpa o cocô do cidadão de bem.
Bunda limpinha do dono do último lançamento importado.
Do país estrangeiro, para onde tudo foi levado.
E o índio é o culpado.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

O MACACO ASTRAL SE RECONHECE
Como obra sui generis
realizando suas atividades exclusivas
se sentindo um alienígena
prestando pouca atenção
nos demais macacos ao redor
todos, também macacos entediados
O MACACO ASTRAL SE RECONHECE

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Angus

Saber qual remédio preciso tomar.
Não conseguir abrir a boca e engolir.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Mercado

Percorro sem pressa os retilíneos corredores
na solidão de um supermercado
prateleiras vazias, exceto por um item
o prazo de validade expirado
.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

O trono do querer

O desejo é um vício.
O vício é comportamento.
Comporte-se bem e ganhará recompensas.

Mais um outdoor e menos um momento de sossego. A velhidade era um lançamento das 7 lições sobre negócios. Nada de novo. Não tem como não envelhecer moralmente, decadentemente. É uma avalanche.
O que você faria sem que ninguém visse? O que você faria se todos lhe vissem?
Às vezes tudo o que você precisa é o nada que ninguém lhe oferece. Um silêncio. Uma companhia. Um lapso de compreensão.
Vou buscar um café com açúcar, tapando a tristeza de descobrir uma dependência tão pequena. Não é querer, é necessidade. Tenho muitas certezas largadas pelo caminho, pelo chão do meu quarto, dentro do meu cinzeiro, na lixeira da cozinha e na última embalagem de tinta de cabelo. Muitas delas foram em campos de batalha. De onde fui tirada de maca, cheia de feridas e escoriações. Em grande parte por besteira grande. Quando a emoção fala mais alto. Fala alto e fala muito.
E é essa soberania que renuncio. Essa monarquia. Desse reino não quero mais ser rainha.
Muito tempo nesse trono, enxergando muito longe. Você se sente poderoso. Entrega a sua autonomia e ganha um novo par de olhos. Vê longe, apenas o que o trono lhe mostra. Do alto da soberba só lhe resta um tapete vermelho feito de várias rotinas insuficientes e um sem-fim de intrigas que apequenam.
A cúpula do palácio segura, entre quatro paredes, a sua certeza absoluta. O sustento de seu reino imaginário.
Fica meio estranho, depois de uma vida inteira de massacre, se você sair um mero passo longe do caminho pisado gera um desconforto. Você fica uma pessoa indesejável.
Não se contenta com nada e, portanto, não quer nada.
Se tudo já se acabou, por que devo querer coisa alguma?
O que sobrou para se querer?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Já, já

Já passou da hora de fechar
Já passou o último ônibus
Pedir um táxi seria sacanagem
por levar mais alguém para o mesmo buraco
A pé é perigoso, sozinha tarde da noite
Logo vem o primeiro coletivo
com o fim da madrugada
Mas já não vale mais a pena
.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Raivinha

Só resta mesmo bater a cabeça. Bater contra a parede. Bater como pêndulo musical. Um trovejo depois do outro. Depois da era da razão.
Porque o que sobrou foi a treva. Atrevo a dizer em alto e bom som.
Um dizer cansado e transbordante. Triste e melancólico.

Não tem muito tapete pra debaixo de onde varrer o ranço que escorre de meus lábios.
Uma vez quando criança, eu tinha a esperança de um futuro não exatamente alegre, mas também não um marasmo de incerteza, uma tragédia atrás da outra. Um sisteminha lixo engolindo tudo e todos um atrás do outro. Pra trás soltando merda e pra frente soltando gorfo. Reduzindo pessoas ao lixo que consomem.
Tudo bem baratinho, taí tudo a venda pro pessoal comprar. A gente viu no que deu a venda de sonhos na última eleição. Um bando de burros teimosos.

Um punhado de mortos. E tá barato né? Podia ser a economia. Ah não, ela também quebrou.
Curiosamente culpa dos outros, os de vermelho, do malzinho e do diabinho. Os capatazes molengas que jogavam migalhas e davam um ou outro colchão pros miseráveis poderem pelo menos dormir com algum calor, alguma dignidade.
Nada que os heróis não resolvam não é mesmo?
Crianças engravatadas com poses mimadas, crianças criminosas. Brincando de heróis nacionais.

O importante é vencer na vida. E aqui eu sigo, salvando vidas não sei pra quê. Se a vitória maior é a da morte sempre.
Disse o jornal do almoço, falando dos heróis que mataram os bandidos.