Havia
algo de doce na caixa de correio fincada no gramado da casa sem cerca
em frente a padaria. As vezes, Sílvio chegava ali sem perceber para
onde estava indo. De repente, mão abrindo a bolsa, notava a caixa
vermelha, as velhas letras garrafais anunciando precariamente a
utilidade daquela estrutura de metal, e sorria, ansiando bem de leve
pelo momento de abri-la e ouvir o rangido que sempre acompanhava este
momento. Parou em frente a ela e, supreso com algum sentimento de
frustração, notou que nada havia para entregar ali, desta vez.
- Hm...
Há
tempos que isto não acontecia. Pensando, agora, percebeu que tinha
alguma correspondência para aquela casa todo dia e era isso que lhe
dava aquela sensação doce de chegar ali. Ora, para um homem que
vagueia tanto por ruas e casinhas indistintas é natural sentir
certo regozijo em rever um lugar do qual se lembra de outras manhãs;
aquele C, intacto em meio as outras letras quase completamente
comidas pela ferrugem, lhe acolhia com um calor inesperado.
Ainda
estava parado em frente a caixa, esperando algum motivo para abri-la,
e seu pensamento caminhava numa direção que ainda não havia
seguido: o quão inusitado era, nos dias de hoje, uma pessoa receber
correspondências todos os dias! E, não que ficasse bisbilhotando,
mas acabara notando que não eram as tradicionais cobranças e
propagandas, porém cartas escritas por pessoas, pessoas que queriam
se comunicar com alguém que morava naquela casa branca em frente a
padaria. Não com um alguém; sabia muito bem como ela
se chamava, afinal, as vezes depositava os envelopes com o destinatário
virado para cima e, sem querer aqui, nem ali, acabara adivinhando o
nome do ser vivente: Leila, como a moça de quem gostara no colégio
e que foi morar no Alagoas, onde concluiu o segundo grau.
De
qualquer forma, comunicar-se por carta é um hábito louvável, de
singela beleza, acreditava Sílvio, otimista; ele, que pegava tantas
cartas nas mãos, nenhuma para si. Ele, Sílvio, carteiro há 4 anos,
nunca recebera um obrigado por entregar a correspondência tão bem
entregue. Não costumava pensar nisso, nem esperar que lhe
agradecessem, mas... ele agradecia a moça da padaria, quando ela lhe
alcançava um copo de suco de goiaba ou uma taça de café com leite
sem açúcar!
“Sou
um agente invisível”, pensou. “Não um profeta, mas um carteiro.
Os outros falam através de mim, mas eu não sei o que dizem, e o
narigudo do telejornal transmite as notícias mas ele também as
escuta e eu, eu não sei de nada, eu conheço a carta pelo lado de
fora, se é verdade ou mentira eu não sei, não sei dizer, sei que
ela não estaria ali sem mim, alguém tinha que entregar, trazer até
onde deve chegar e sou eu que faço isso, sou eu, o Sílvio, aquele
que entrega cartas pra viver, não por gosto nem por esporte, nem
pelo benefício da caminhada e de uma vida bem arejada, sou o Sílvio
que entrega as cartas pra ganhar uns trocos e sobreviver, pra estar
vivo amanhã e depois e entregar outras cartas, e depois ter mais pra
entregar, porque enquanto eu entrego, alguém escreve, cada um com
seu papel, eu entrego mas não leio nem escrevo nem recebo, eu pego
ali e levo pra lá, é isso que eu faço, é a entrega da
correspondência, pra me entregarem um salário que eu entrego no
caixa do mercado, na farmácia, no consultório, na borracharia, no
raio que o parta, em qualquer merda de lugar que me ajuda a
sobreviver mais um outro dia, um outro dia no qual eu vou entregar
uma outra carta, um pacote, qualquer porcaria, na casa de algum
incauto que não vai me dar bom dia, que não vai saber que sou o
Sílvio, só o carteiro, isso eles sabem, porque eu me visto
declaradamente como isso, pra representar o papel que eu aceitei, por
ser um agente invisível da comunicação antiquada, no charmoso
hábito de mandar uma porra duma carta dum lado pro outro, pro
paspalho aqui entregar, o Sílvio, que não tem nada a ver com o que
eu quero dizer pra alguém que ele não sabe quem é, porque ele só
conhece a caixa de correio e nunca vai bater nem na porta da casa
onde ele vai entregar cada uma das cartas que ele tem naquela bolsa
feia e pesada que ele tem que carregar pra lá e pra cá, esperando o
dia acabar pra se preparar pro próximo, onde ele vai fazer o mesmo
que fez no anterior” e nisso abriu, com raiva, a tampa da caixa do
correio da casa de madeira em frente a padaria, só para ouvir de
novo aquele barulho e detestar as vezes em que gostou de ouvi-lo.
Preso
à tampa, um pedaço de folha de caderno trazia uma mensagem escrita
em caneta azul;
Dizia
“Obrigado”, e ao lado dela estava uma carinha sorridente
desenhada.
Puxou
o bilhete, tirou-o da caixa, enquanto desfazia a carranca. Guardou-o
no bolso de trás da calça, enquanto começava a sorrir. Pegou de
volta, rasgou em dois e guardou de volta a parte maior, onde estava
escrito o agradecimento. Tirou a caneta do bolso da camisa, escreveu
“De nada” na outra parte da folha e colocou-a de volta na caixa
de correio. Baixou a tampa, voltou-se, caminhou e seguiu descendo a
rua pela calçada, procurando o próximo endereço.
Havia
algo de doce naquela caixa de correio.