quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Arrogância

Depois que tudo aconteceu eu passei a não gostar muito de carros. Máquinas estúpidas.
Quando ela me deixou, fiquei meio pra baixo. Simplesmente me abandonou na rua, e com razão, talvez meus modos não se fizessem agradáveis. Sempre fui sujo, pouco higiênico e sempre comi com as mãos.
Mas a sociedade acha que nos entende.
As pessoas nos olham, e acham que tudo sabem sobre nós, nossos gostos, quando estamos felizes, quando estamos tristes, com fome, frio, etc.
Sempre fomos coisas. Aí elas tentam nos defender dizendo para os outros como proceder e o que fazer, pressupondo um entendimento sobre nós. Eu nunca gostei disso.
Assim como passei a não gostar de carros, depois que ela me largou. Sempre que passam por mim eu grito muito alto. Fico angustiado, você me entende.
Essa galera aí que fica largando comida pra gente. É meio automático até. Como se soubessem o que estão fazendo. E talvez saibam...
Às vezes eu acho que elas sabem.
Largam no chão, como tem que ser. Exatamente como eu gosto. Essas, que não se gabam pras outras, como se nos conhecessem, acho que essas estão certas.
Elas não tem a arrogância latente de querer nos dar banhos, nos vestir, nos usar para proveito próprio e depois dizer que é porque estão nos cuidando.
Nos dar nome! Ora. Pra sempre me chamarei Dimes.
E a rua agora é o meu lar. Sou livre.
Humano nenhum vai me usar pra dizer que é porque é uma boa pessoa e se preocupa com os animais. Quando na verdade tudo o que ela quer é ter algum outro ser pra suprir uma carência e ser espelho para refletir todos os seus costumes de gente. Eu sei porque tive que me acostumar a andar de carro com a Maria antes dela me largar, mesmo sem gostar.
Engraçado que ontem mataram o Antônio na sua própria casa e não vi ninguém reclamando. Inclusive comeram o pobre coitado, acho que era porque alguém tava ficando mais velho. Depois presentearam sua gordura aos que moravam perto. Muito gordo era o Antônio, mas gostava do estilo dele, sempre num lamaçal...
Enfim. Tu me entende né Sultão? Tu mora aqui faz tempo já...
Já deve ser sabido das coisas.
Vejo pelo teu rabo que ainda tenho muito o que aprender.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Embalagens


Comia um iogurte super-sem-gordura enquanto comentava com a amiga sobre como aquele mingo da outra turma era inseguro. Um piá bobo.
Ouvia a velha enrugada falando por trás do vidro e das camadas científicas removedoras de idade sobre o caos na saúde, as crises e os mercados, com ênfase especial na falta de segurança no estado. Um horror.
Saía do automóvel após desafivelar o cinto, pisava na calçada, olhava para o lado e atravessava na faixa, sendo atropelado de qualquer forma. Faixa e trânsito nada seguros.
Tu precisas de alguém que te dê segurança, senão tu danças, dizia aquele outro, com outras palavras, encabulando seu futuro eu pela gramática tortuosa eternizada pelas próximas décadas.
Quem melhor para cumprir esse papel do que alguém que não existe fora dele, que personagem melhor para disfarce do medo do que uma fantasia de palhaço, velho cósmico universal, MACACO ASTRAL, com sua enorme mão capaz de tomar e tapar todo o céu, mas não de calar tua boca antes que tu bostejasse culpando por tudo a todas as terceiras pessoas como te convém, uma mão gentilmente evitando a fala, a outra levando o indicador aos lábios, sssh, e então apontando um confortável assento, senta lá e deixa o pessoal em paz, não isso ele não faz, ora, o filho segue o exemplo do pai; herda, sob duras taxas, os seus bens, alguma virtude, seus graves defeitos; sim, o homem cria seu deus à sua imagem e semelhança, e esta criatura passa a agir conforme seu idealizador, cometendo as mesmas falhas, mesquinhando tanto ou mais; por que, então, faria a ti um bem que nem tu mesmo te faz, em especial, sugeriria, desentupir os ouvidos, lavar em um jato de água quente a imbecilidade da qual te recheaste.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Nomeie seus demônios


Existe uma tradição, um punhado de regras, um código de conduta, a tábua de leis; existe um comportamento certo e vários errados; existe sofrimento pregado pelos cantos, carne arrancada, pregos na cruz, prata no bolso, bolso do paletó, paletó de madeira, descanso perpétuo, silêncio sepulcral.
Existem dois tipos de pessoas, bandidos ou não; mortos ou vivos, ou mortos-vivos, terceiro sexo, quarto estado da matéria, quinta-feira pela tarde, sexto sentido, igreja do sétimo dia, oitava maravilha, nona sinfonia, dez anos se passaram, sim, contar até dez e ver se a raiva passa, raiva queima e não é azia, não é incêndio pondo abaixo os templos da mentira, erguidos como peste se espalhando na lavoura, jesuítas, catequistas, vendedores.
Para que serve o sofrimento eu não sei, eles que devem saber. Espalham a doença e vendem a cura, e ainda fingem que se importam. Sim, cuidaremos de vocês, na trindade você pode confiar, palavras ditas com um sorriso assassino, a confiável face daqueles que podem.
Quem salva o salvador? Que salva o salvador? Salva a si mesmo, apenas, e finge que poderia ter feito mais, mas não permitimos, sacrificou teu filho, é, por que não a ti mesmo?
Não, eu não preciso de um demônio para me acompanhar, não preciso ouvir, recitada em meu ouvido, a mágica fórmula do cumprimento de um código absurdo que somente serve a quem o cria.
Igreja, governo, sociedade opressora, tanto faz. Nomeie seus demônios como quiser, não vão me convencer.
  
(por Norik Cara-vermelha, de certa forma)