quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Life is strange

Não. Isso eu não pude escolher. É... É pedir muito. É demais.
Me desculpe.

O indicador passou pelos cílios, pelas pálpebras, para então voltar à tecla rígida, plástica e aparentemente desalmada. O outro para um botão semelhante, bem mais à direita, de funcionalidade semelhante. Ambos só funcionavam em conjunto.
Na tela, gráficos e personagens se moviam com uma leveza indigna aos padrões eletrônicos e mecânicos. Eles pareciam de verdade. E eu já havia sentido isso antes, de uma maneira bastante familiar.

É engraçado. Nosso cérebro consegue administrar de maneira impressionante diversas tarefas complexas ao mesmo tempo em que está envolto em inúmeras sensações e emoções, todas, mergulhadas no mecanismo da memória. Uma pequena fração do tempo congelada dentro do cérebro e acessível a qualquer momento. Ou seria da mente? Ou não teria diferença entre um e outro?
Seria difícil dizer que não quero que essa sensação seja verdadeira, que seja real. O que é real?

O tempo parou, o dedo se moveu e a lágrima inevitavelmente rolou abaixo, como a grande pedra da vivência que diariamente empurramos morro acima que também, por vezes, vem abaixo. O gelo da memória derrete aos poucos, transformando pensamentos, enquanto a água cristalina que escorre se revela transbordante.

E eu choro.

I wish you'd be real.
But again, what is real?
I wish you were here.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pobre Chico


Não havia dinheiro. Na verdade, faltava riqueza para comprar o que quer que fosse. Ouro é coisa de lenda, diria algum velho aldeão. E tem outra coisa: para que serviria? Não se come, não aquece o pelo do homem; tapar o buraco no telhado, a fim de se livar de uma goteira? Ia precisar de ouro suficiente para pagar uma casa nova, provavelmente alguém o roubaria, e pronto, lá vem a goteira novamente. Não, ouro não serve, não para nós.

“Arranja uma utilidade melhor para a tua sorte”, foi o conselho que restou ao fim de um dia de tentativas de negociação.

Pobre Chico, criador de galinha, de bicho de pé e de falsa esperança; nascido e criado para ser pobre, morrer miserável. Não tinha filho para sustentar, nem mulher para dividir a vida, nem um cusco que lhe fizesse companhia. Menos mal, passaria fome sozinho, se a situação piorasse.

Nasceu no seu galinheiro uma galinha diferente das outras poucas que ciscavam por lá. Botava ovos, como as outras, mas as gemas destes eram puro ouro. Já tinha uma porção dessas gemas guardadas, desde que descobriu este fato milagroso, por acidente, quase perdendo um dos poucos dentes que ainda tinha. Pulou de alegria, quase deu adeus ao barraco, se mudaria para a cidade, pobreza nunca mais; seria bem visto, bem quisto, bendito.

Os dias iam passando e ninguém aceitava negociar por um de seus ovos de ouro. Ninguém o levaria para a cidade, ninguém tinha um cavalo para vender a ele, um burro que fosse. Sua ascenção foi barrada pela pobreza que o cercava.

Sua expressão nestes dias era um misto de indignação e angústia, mas depois foi se aliviando, foi bastante notável num dia em que saiu para recolher lenha. Nesta mesma noite, uma fumaça cheirosa saiu da chaminé do seu fogão. Estava terminada aquela palhaçada: Chico fez uma galinhada com a maldita galinha dos ovos de ouro. E, diabos, que carne dura.
O MACACO ASTRAL VIAJA
Na esteira imparável do tempo
Não vê a hora de chegar sexta-feira
Céus, como o ano passou rápido
Atravessando os dias sem saber da sorte
O MACACO ASTRAL VIAJA

sábado, 5 de dezembro de 2015

O Padeiro

Não era uma padaria ritmada pela pressa, marcada por pedidos para levar. Não estava incrustada em rua movimentada do centro, espremida entre prédios, nem havia um estacionamento pago por perto. Por ali, o normal era comer no balcão, ou à alguma mesa perto da janela; pela qual se veria um céu sem qualquer arranhão; uma rua tranquila: casas sem cerca, pessoas caminhando sossegadas; passava um carteiro, assoviando; um radialista de bigodes, um cão passeando sozinho.
Lugar familiar, repetiam-se os rostos. O próprio dono atendia no balcão. Morava numa casa grande, velha e bonita, nos fundos. Conhecia pelo nome uma boa parte dos fregueses, os mais frequentes. Os que pouco vinham, esforçava-se para que voltassem mais vezes. Menos um deles.
Aquele, esperava jamais ver novamente.
Pois, na única padaria daquele bairro tão simpático, ali bebeu e comeu uma alma perversa, um biltre matador de mulheres. O padeiro ouviu dizer que ele foi preso, que foi morto, que foi para o inferno e voltou e, embora quisesse acreditar em qualquer uma das duas primeiras hipóteses, nenhuma lhe trazia certeza, nem conforto.
Por meses depois dos crimes, sempre fez questão de levar até em casa as suas funcionárias sobreviventes, escrevendo uma história que ainda deve ser melhor contada.
Bom sujeito, diz-se dele. Uma foto na parede da padoca denuncia que já foi guitarrista de uma banda de roque - mas não poderia ter levado aquilo para o resto da vida: não era para ele. E quem o conhece melhor sabe que, apesar do gosto pelo trabalho, a padaria é apenas o seu ganha-pão. No seu íntimo, o que ele realmente é, o que realmente ele sabe fazer, aquilo a que ele dedica os melhores e os piores de seus momentos, é ser pintor.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Velório

Passou muito rápido. Quase não vi passar.
As pessoas me olhavam como quem pede desculpa, sente muito ou mesmo com medo. Eu mesmo não tinha medo.
E agora, 7 meses depois, eu ainda me pergunto quantas pessoas teriam ido, caso fosse para aproveitar uma janta, almoço ou apenas mais uma reunião qualquer, tão em baixa hoje em dia, para desfrutar o pouco tempo que se tem.
É.
Acho que menos da metade, se tanto.

Dear father
Forgive me
I don't know what I've been doing...