terça-feira, 13 de maio de 2014

De alma armada

"Deve ser muito bacana cuidar dos outros né?"
"Deve ser gratificante. Um dia queria aprender a fazer algo parecido."
Na verdade, não sabem do que falam. Nem como falam.
Aliás, só falam mesmo. Não querem saber de pensar criticamente, ser cri-cri, chata, incomodativas mais do que investigativas. Como ela era.
"Então por que tu não faz?" 
O velho azedume.

Na primeira vez que a vó dela a viu com o uniforme de enfermeira, foi igual. Um igual mais familiar, aquela simpatia de velhinhas bondosas que querem o bem para as netas.
"Que coisa bonita! De uniforme e tudo para trabalhar bastante."
Por baixo do uniforme, mal sabia a avó, estava aquele tecido com estampa de banda de "róque pauleira", definição dos mais velhos.
Júlia nunca se incomodou com isso. Na verdade fazia tempo que não se incomodava mais com nada. Ia para a faculdade, fazia os trabalhos, assistia as aulas. Ia ao trabalho, cumpria seu horário, suas obrigações. E era isso. Na verdade gostava de ser enfermeira, só não admitia.

Tinha amigos no Bloco A do centro 1 da Unisinos, de calças surradas, all-stares, cheios de ideias na cabeça sobre mudanças sociais. Ela achava tudo muito interessante, gostava de todos eles, sem dúvida, mas não se importava.
No fundo a não-importância era superficial. Mas não se engane: Nem mesmo com uma arma apontada na cabeça ela admitiria que se importava.
Seria por isso suas lágrimas?

Mas isso é o que eu acho. Não sei se naquela cabeça as coisas funcionariam assim.
Eu acho que ela entende muito sobre o que 'precisa ser feito', só talvez perdeu o jeito no caminho.

O seu jeito de desleixo charmoso e bagunça ordeira iria dizer "Por que?".

Muitas noites olhando para aquela cidade grande, na vista do seu apartamento, os porque's ecoavam de volta para ela. Numa retórica destrutiva, silenciosa.
Onde o cigarro não traz nada além de fumaça.
Diabólica.
E a maquiagem serve apenas para tapar as olheiras do dia seguinte.
A sua paz.

Era quando ela lembrava daquele trecho do Rappa:
Paz sem voz, não é paz é medo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário