Acordei, foi um
susto, acordei sem grito, assustado. Sentia as cócegas de um fio de
bigode que não era meu. Olhos remelentos, não via de onde vinha a
sensação de angústia. Não era apenas um fio, era um tufo
significativo. Esfreguei a cara, pisquei olhando em volta. Não eram
murmúrios que ouvia, apenas vozes em algum outro apartamento,
esperava que não fosse o nosso. Falavam muita coisa, eu entendia
pouca, talvez uma palavra, me salvaria o latim, falavam em algo
paterno, tom de preocupação. Compreendo, também fiquei preocupado.
A sensação
causada pelas cócegas era angustiante, estava no rosto, atrás da
orelha, pelo pescoço, raspei as unhas, tirei tudo que podia, passou,
mas não para sempre, nem o término é eterno. Sede. Levantei.
Raios, estava no sofá, descobri ao pousar os pés no tapete da sala.
Sim, lembrei, esquecera de ir para a cama, rádio ainda ligado,
tocando bem baixo a mesma música, alguma coisa sobre a europa, sul.
Banheiro. Lavei os olhos, mandei embora tanto quanto pude da
preguiça, da confusão. Não vi bigodes, mas sabia que eles
estiveram ali, de alguma forma.
Já havia passado
por isso. Eles vinham, não se mostravam, apenas deixavam marcas e a
angústia de não saber para onde haviam ido. Não seria capaz de
segui-los, desentoca-los; subir a serra não bastaria. Sobre a mesa,
vi alguma sujeira. Louça na pia, mancha de molho de tomate na
toalha, um pedaço de espaguete fugindo pelo ralo. Nada daquilo era
viagem minha.
Ouvi as pessoas
falando, atrás de paredes. Não me dizia respeito, não me diziam
nada, meus ouvidos não prestavam, eu estava prestes a prestar
atenção; não conseguia. Percebi que falavam mais alto, mas ainda
assim não entendia, o som era abafado, as palavras se ligavam umas
às outras de maneiras incoerentes. Não vinham do apartamento de
cima, me dei conta de que não morava mais em apartamento, acima do
meu teto somente céu e uma mentira; e milhões de estrelas. Vi
alguns fios na pia do banheiro. Mais deles no chão, perto do caminho
que segue o cano que leva a água embora. A mudança é algo confuso,
o sujeito se perde. Curvas. Alguém esteve ali. Um ou mais homens,
uma mulher. Algum perfume ficou para trás.
Do lado do sofá
havia uma taça, um restolho de vinho no fundo, cheiro de ontem à
noite. Eu também estive ali,
disso não há duvida. As falas paravam e continuavam. Chego perto da
parede, extremamente próxima à casa do vizinho, o som parece vir
dali, da casa daqueles vizinhos que nunca voltaram de sua viagem de
férias, ou eu que imaginei essa explicação, talvez tenham ido
embora e nada mais, muita gente tem esse hábito, mudar-se.
Paro
perto da janela, uma cortina me proíbe: não verás. Faz sol lá
fora, tanto faz, tanto sol, que calor, onde está o inverno que me
prometeram, o tempo pretérito virou presente e nem percebi,
passam-se instantes e eles voltam a se manifestar, essas vozes
estrangeiras, um sotaque carregado, percebo que não vem da casa ao
lado, ando em círculos, canção em repetição, uma frase se
encaixa em meu ouvido, mastigo seu significado, desconheço-o, não
desisto, sigo até a porta, trancada e sem sinal de chave, serei
prisioneiro, claro que não, logo encontro a saída, assim espero,
paro e penso, nenhuma pista, fio da meada, fio de bigode, encontrei
outro, e mais um, um bigode inteiro me encara do terceiro degrau da
escada. Sério. Seria imaginação ou haveria uma chave acima dele,
sim, há, abri a porta.
Aquela
voz fala em italiano, palavras que parecem inventadas, não as
entendo, algo aqui e ali, apenas. Arrivederci, ecoam.
Riem. Finalmente as reconheço. Volto para dentro, não há mais
coceira. Há poeira em meu violão, há um mistério que jamais
desvendei. Nenhum bigode, sem resto de vinho, foi só uma ideia
presa, alucinação; casa cheia de italianos. Um copo d'água, outro.
Na pia, um pedaço de espaguete se esgueira pelo ralo. Em algum lugar
além da porta, debocham de mim num insulto inofensivo; riem,
italianos imaginários.