quinta-feira, 30 de julho de 2015

I.I.


Acordei, foi um susto, acordei sem grito, assustado. Sentia as cócegas de um fio de bigode que não era meu. Olhos remelentos, não via de onde vinha a sensação de angústia. Não era apenas um fio, era um tufo significativo. Esfreguei a cara, pisquei olhando em volta. Não eram murmúrios que ouvia, apenas vozes em algum outro apartamento, esperava que não fosse o nosso. Falavam muita coisa, eu entendia pouca, talvez uma palavra, me salvaria o latim, falavam em algo paterno, tom de preocupação. Compreendo, também fiquei preocupado.
A sensação causada pelas cócegas era angustiante, estava no rosto, atrás da orelha, pelo pescoço, raspei as unhas, tirei tudo que podia, passou, mas não para sempre, nem o término é eterno. Sede. Levantei. Raios, estava no sofá, descobri ao pousar os pés no tapete da sala. Sim, lembrei, esquecera de ir para a cama, rádio ainda ligado, tocando bem baixo a mesma música, alguma coisa sobre a europa, sul. Banheiro. Lavei os olhos, mandei embora tanto quanto pude da preguiça, da confusão. Não vi bigodes, mas sabia que eles estiveram ali, de alguma forma.
Já havia passado por isso. Eles vinham, não se mostravam, apenas deixavam marcas e a angústia de não saber para onde haviam ido. Não seria capaz de segui-los, desentoca-los; subir a serra não bastaria. Sobre a mesa, vi alguma sujeira. Louça na pia, mancha de molho de tomate na toalha, um pedaço de espaguete fugindo pelo ralo. Nada daquilo era viagem minha.
Ouvi as pessoas falando, atrás de paredes. Não me dizia respeito, não me diziam nada, meus ouvidos não prestavam, eu estava prestes a prestar atenção; não conseguia. Percebi que falavam mais alto, mas ainda assim não entendia, o som era abafado, as palavras se ligavam umas às outras de maneiras incoerentes. Não vinham do apartamento de cima, me dei conta de que não morava mais em apartamento, acima do meu teto somente céu e uma mentira; e milhões de estrelas. Vi alguns fios na pia do banheiro. Mais deles no chão, perto do caminho que segue o cano que leva a água embora. A mudança é algo confuso, o sujeito se perde. Curvas. Alguém esteve ali. Um ou mais homens, uma mulher. Algum perfume ficou para trás.
Do lado do sofá havia uma taça, um restolho de vinho no fundo, cheiro de ontem à noite. Eu também estive ali, disso não há duvida. As falas paravam e continuavam. Chego perto da parede, extremamente próxima à casa do vizinho, o som parece vir dali, da casa daqueles vizinhos que nunca voltaram de sua viagem de férias, ou eu que imaginei essa explicação, talvez tenham ido embora e nada mais, muita gente tem esse hábito, mudar-se.
Paro perto da janela, uma cortina me proíbe: não verás. Faz sol lá fora, tanto faz, tanto sol, que calor, onde está o inverno que me prometeram, o tempo pretérito virou presente e nem percebi, passam-se instantes e eles voltam a se manifestar, essas vozes estrangeiras, um sotaque carregado, percebo que não vem da casa ao lado, ando em círculos, canção em repetição, uma frase se encaixa em meu ouvido, mastigo seu significado, desconheço-o, não desisto, sigo até a porta, trancada e sem sinal de chave, serei prisioneiro, claro que não, logo encontro a saída, assim espero, paro e penso, nenhuma pista, fio da meada, fio de bigode, encontrei outro, e mais um, um bigode inteiro me encara do terceiro degrau da escada. Sério. Seria imaginação ou haveria uma chave acima dele, sim, há, abri a porta.
Aquela voz fala em italiano, palavras que parecem inventadas, não as entendo, algo aqui e ali, apenas. Arrivederci, ecoam. Riem. Finalmente as reconheço. Volto para dentro, não há mais coceira. Há poeira em meu violão, há um mistério que jamais desvendei. Nenhum bigode, sem resto de vinho, foi só uma ideia presa, alucinação; casa cheia de italianos. Um copo d'água, outro. Na pia, um pedaço de espaguete se esgueira pelo ralo. Em algum lugar além da porta, debocham de mim num insulto inofensivo; riem, italianos imaginários.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Pia

O movimento é simples. A leitura, complexa.
E não é uma narrativa. É um escape. É fuga.
A água escapa de uma caixa, e não um box, que segue pelo cano, que vai até a torneira.
A leve abertura dos manípulos com a mão direita, e a água, quente ou fria, vai escorrendo. Tanto faz.
Em seguida, entram na orquestra, o sabão e um outro movimento distinto, a fricção do vai e vem, vem e vai, uma mão na outra. como quem faz planos maléficos, ou mesmo como quem não se importa, porque talvez chegue a esse ponto mesmo.
Sabão, detergente, só água ou sabão em pó. Vai depender do tamanho do estrago.
A orquestra da limpeza segue, removendo um a um os resíduos, germes e bactérias, a sujeira.
Sujeira grossa pede movimentos rápidos, semblante rígido. Leve, só esfregue, rapidamente e levemente, como quem tem frio.
Por fim se encerra a peça, como quem está caçoando. Ou, se preferir, como quem despreza. Tem também o método feiticeiro para aqueles que ainda não sabem distinguir a fantasia da realidade.
Um pano está ao lado para o último e derradeiro movimento. As mãos embrulhadas e o cuidado vai depender de uma perspectiva de tempo.

Lavo minhas mãos.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Poder e a Glória

Querem o mundo e o querem agora; podem querer e querem poder; O poder. São tantos lados correndo com o mesmo sentido.
Querem polícia, mas não ser policiados; liberdade suficiente para poder engolfar as correntes opostas; eu queria entender; querem encarcerar os hábitos contrários, mas assim como onde come um comem dois, todos se molham no mar de intolerância que jorram sobre os outros, ora, pode parecer que eu seja a pessoa menos inconveniente do mundo, estando tão acostumado aos meus próprios hábitos, mas habita aí um engano que cometemos a torto e a direito.
Isso, direito, o que é? Direitos humanos, direitos iguais. Direitos para quem eu decido que é direito, assim é fácil. O eu é a maior minoria do mundo e se vendo assim fica fácil desprezar as outras, tão pequenas, tão menores.
Querem ser um empreendedor de sucesso como o Silvio Santos, mas não querem um dia serem camelôs. Querem um omelete de ovos inquebráveis.
Eu queria dizer mais alguma coisa aqui no final do texto, mas deixei pra lá e não sei onde ficou. Queria ser escritor, mas não quis escrever.

Ranço.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Juntas


Tão especial, né, tão orgânico. Totalmente biológico. Essa carne e pele e osso, humano e mundano, cidadão do mundo. Bacana. Pensamento, reflexão, escolha própria, direito a opinião, tudo isso num organismo... vivo. É, uma vida. Uma pessoa.
Que superior que tu acha que é, por quais razões? Essa pele que não é de alumínio, esqueleto que não é de aço, isso te torna tão diferente de mim, ou esses teus olhos míopes que não conseguem diferenciar o milho da ervilha, o cachorro do tamanduá, será que é isso? Talvez o bafo pela manhã, a incapacidade de cumprir os próprios propósitos, a cara torta e as rugas sobre ela, não sei, nem tu. Prefiro precisar de óleo nas juntas do que pintura na cara, cheiro de flor no pescoço, bisturi nas fuças; melhor enferrujar, melhor virar sucata.
Diferente, hm, não, falando disso o que me vem à mente é um robozinho, uma pequena máquina de comer e cagar; uma criatura – espera aí, criatura alguém cria, mas quem criou, ah, tu não sabe, não é, o que tu acha que sabe é apenas uma crença, ou várias delas; enfim, aí está, algo ou alguém, comendo, cagando, vivendo, crescendo e depois morrendo, tirando um tempo para por a andar – criar, talvez - outro exemplar com o mesmo funcionamento, alguns defeitos semelhantes, os mesmos objetivos, ou falta deles, naquilo que aprende a chamar de vida, outra maquininha de estrutura frágil, programada com a mesma missão: viver e morrer, cagar e comer, reproduzir; criar de si uma réplica ingrata e infiel, que pode ficar não sem comida mas sim sem explicação.
Mas o pior é esse bom dia mecânico, dado por obrigação, não tenta me enganar, isso é o pior, eu sei que meu dia não te importa coisa alguma.

Máquina de cocô


-Matéria prima
-Dentes
-Língua
-Faringe
-Esôfago

-Estômago
-Intestino delgado
-Intestino grosso
-Ânus
Cocô!

Você é uma máquina de fazer cocô!





terça-feira, 14 de julho de 2015

Liturgia

"Dizem que"; não ouço, teimoso.
Ansioso, rançoso.
Falar de si: ciclo vicioso.
Gira em torno de um umbigo qualquer, roda o copo de conhaque, anda em círculos, indo de não saber a nem desconfiar.
Que deus que te abençoa? Aliás, como ele não o faria, ou tu inventaria para teu proveito alguém que te despreza? Não duvido, que tem gente que gosta, gosta de espalhar sofrimento.
Não que alguma melancolia permeando as tardes que não passam deixe de ter seu lado bom: proveito, algum prazer, inspiração. Mas ora, catequista, um ranço escorre no canto da boca motivado por essa palavra, esse ato desrespeitoso de doutrinar, ptuí!, espalhar a culpa entre os inocentes, ah para isso não há perdão, muito menos desse perdão vendido que tu ensina mas não aprende, isso não; romaria, cruzar em eterna angústia o vale de lágrimas, não, para quê? Ensinar a se ajoelhar, baixar a cabeça, não sou digno de que entreis em minha morada, mas quem te convidou?
Queimadores de bruxas; mas e que feitiço é pior do que adquirir o poder sobre milhões de mentes antes mesmo de estas virem à luz, essa luz que dizem ser deles, de um velho fodão que manda e desmanda, que anda e caga, que os deixa desabrigados, se aquecendo pelas orações que morrem no silêncio que sempre vem das bocas que morrem caladas, sozinhas, esperando a salvação prometida em mentira pelos mesmos que criaram a necessidade dela, pois, ora, eu não tive culpa, nem vou ter por vocês, velhos de saia, velhas de véu, contem outra que essa não pegou.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

É preciso partir, é preciso chegar

Tropecei porque corria.
Não parei para pensar: havia muito o que fazer.
Passei correndo, pés mal tocando o chão, empurrado ou puxado, havia pressa, algum lugar para chegar, pouco tempo a perder.
Freio.
Conhece DKV?
Ter pressa é, hm, é ruim, e não é bom.
É possível ser inteligente e ser burro ao mesmo tempo, conheço alguém assim, alguém além de mim.
Mas isso não importa.
Alguém me apressa, há tempos estou atrasado.
Batem na porta, ninguém se importa.
Quem não tem pressa não me interessa.
A mim sim.
Quando era pequeno, meus joelhos viviam despedaçados. Havia tempo para sarar, tempo para crescer.
Minhas costas doem, é preciso chegar, produzir, resultar, é preciso partir.
Por que a pressa, afinal, não sei, não me deram tempo de pensar na resposta, era preciso perguntar, cobrar, calamitar.
A previsão do telejornal era de tempos difíceis.
Não sei, há tempos que não me entristeço, o que não é ruim; mas parece que falta alguma orientação, de que lado fica o lado de baixo?
É difícil se orientar, pés no ar, sendo empurrado por um vento mecânico, giram as hélices, dão voltas os ponteiros, é preciso chegar, é preciso bater, vôo pela janela, no vôo não tem assento, mas no trem tem, ele precisa partir, mas não passa por aqui, ele e tudo isso, nada passa de ilusão.

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terça-feira, 7 de julho de 2015

Votos

Eu prometo te amar, te respeitar e ser honesta contigo sempre

Eu prometo me relacionar pelo simples prazer de compartilhar momentos contigo, trocar carinho, amar e ser amada, sem interesses ocultos
Eu prometo nunca te idealizar, me esforçar para te enxergar como tu é e jamais me relacionar com uma ideia de ti
Eu prometo não perder tempo com o futuro ou com o que a nossa relação pode vir a se tornar, eu prometo focar no presente e no que nós construimos no agora

Eu prometo te aceitar como tu é e aceitar o que tu está disposto a me dar, sem exigências e manipulação
Isso não quer dizer que eu não ficarei incomodada nunca, mas eu entenderei os teus defeitos como parte de quem tu é e aceitarei eles, mesmo que um dia eles façam com que um relacionamento não valha mais a pena

Eu prometo que não tentarei te possuir ou me fundir contigo, eu prometo respeitar a tua individualidade e teu espaço
Aceitar as nossas diferenças, que nunca dividiremos tudo um com o outro e que jamais compreenderemos o outro por completo

Eu prometo aceitar o teu espaço, as coisas que tu precisa fazer sem mim e os momentos que minha companhia não é bem-vinda sem me sentir ferida ou rejeitada
Eu prometo aceitar que tu vai ter atração e identificação com outras pessoas e me esforçar para não ter ciumes delas
Eu prometo não te exigir exclusividade, mesmo que te imaginar com outra pessoa venha a doer
Porque, apesar do medo de perder espaço, essa possibilidade (que irá existir de qualquer maneira) é melhor do que a ideia de te prender, te obrigar a te privar e te fazer negar algo tão natural

Eu prometo fazer o possível para manter uma relação fácil e leve, sem ser superficial e me cegar para os problemas que virão a aparecer
Eu prometo ser tua amiga, te aceitar como ser humano igual e parceiro de caminhada
Eu prometo aceitar o fato que pessoas mudam e se afastam silenciosamente, eu prometo compreender que pequenos erros do dia a dia aos poucos desgastam o sentimento e um relacionamento sem que ninguém perceba

Eu prometo ser honesta, te amar e te respeitar para sempre, porque mesmo quando nosso relacionamento mudar de natureza e talvez tu nem venha a acreditar mais nisso, eu estarei aqui