sexta-feira, 29 de junho de 2012

Margem II

No final de sua vida, Marta vivia na irremediável solidão de quem conhece sua própria ignorância.
Vira algo que nenhuma outra jamais viu; um dia, sem aviso, sem nenhuma explicação, uma força maior lhe arrancou todas as crenças que tinha e a levou para outra margem, para um lugar onde reaprendera a enxergar todo seu mundo.
Aos poucos, fez as pazes com antigas inimigas, mas resistiu ao ímpeto coletivo de condenar o outro lado. Já estivera lá. Sabia que as outras não eram necessariamente más, apenas crentes num ideal fervoroso. Sabia que os incontestáveis conceitos do que era certo e o que era errado, de ambas as margens, eram igualmente aceitáveis, igualmente falhos.
Por um tempo, tentou expôr tal visão a suas novas companheiras, mas não teve sucesso. Como sempre, diziam que estavam certas, que a prova de que aquilo em que acreditavam era verdadeiro estava bem ali, e que o outro lado é que deveria ceder, aceitar o que era evidente.
Desistiu e se desanimou, quando percebeu que a maioria cuidava mais de suas pétalas do que de suas raízes. Era assim que seriam até o final de seus dias.
Tempos depois de sua mudança, já murcha e cabisbaixa, falava pouco mas refletia muito. Parada à sombra de uma laranjeira, chegou a uma singela conclusão sobre o mistério do seu pequeno universo: Não importando suas ideias e teorias, o rio corria exatamente para onde deve ir; não para a direita ou para esquerda, mas para a frente.

Aquário

Quando li nas entrelinhas, aquilo que estava em uma tela de lustrozo reflexo, pude ver meu rosto perplexo... Como se uma sentença iniciasse tais palavras virtuais de um impasse, como se um caminho de concreto que se transformava em destino incerto, um caminho sem chão... para quem nunca soube andar senão na escuridão.

Como se a escuridão fortalecesse, cada passo ligado aos pensamentos a mil. Como se aquelas linhas, as mesmas mesquinhas, ditassem o que sempre se soube mas você nunca havia pensado, com afinco pelo menos. Tudo, agora percebo, quando adentro o chamado lar sozinho. Comigo meus pensamentos de que acredito fazer sentido, tudo aquilo que pareciam lamentos. Quando imaginei-me tolo e mesquinho por não querer ficar sozinho. Quando ouço os ecos dos passos onde antes haviam mais gentes e agora apenas espaços vazios, para mim pensar sobre as bênçãos e as maldições...

Conhecemos as qualidades e com isso temos um fardo, que ao invés de nos debilitar, nos enaltece... é, talvez aí que me apetece, o remédio que o doutor não pode me receitar e aquilo que tenho, não para ensinar, mas para possibilitar-me compreender que não mais conheço o caminho mas sigo sozinho, e não tenho autonomia para badernar ou fazer folia com o que devo fazer.
Sinto como se pertencesse a tudo, como se estivesse no trecho do filme em que as peças se encaixam... Ao menos me chamam de seco e de frio, sem perceber que sem isso, nada poderia surgir do vazio. Aos que prejudicam, temos, não vingança ou retaliação, mas um jeito novo de se pensar em uma solução.

É quando não se vive em vão.

Como um aquário sem limitação.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pose

E, no fim, aprendi que só a moldura não sabe fingir

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Lá vai o vento Brasil a dentro

Uma vez gravados nas tábuas incólumes do eterno, nossos nomes jamais se perderão; nosso número nunca será esquecido.
Devorados pela ira incerta do tudo que passa, seremos esvaecidas sombras de pó. Mas viverão memórias numa consciência que não sabemos tocar.
Deuses são eles, os que ultrapassarão a contagem dos dias, sem um fajuto humor para oscilar, sem uma face vistosa temendo as rugas, sem ter tempo para matar.
Mortais somos nós, os que dizemos não ter tempo para coisas que não fazemos. Temos tempo, e esse é o problema, pois tempo acaba e acaba a vida.
Tempo acaba e acaba a vida.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Inverno

Só uma rima eu tento
Mas os versos não me atendem
Nem eles tem tempo

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Seguindo

O doutor estava sentado próximo a mim, quando perguntou como eu me sentia...
Se alguma pena valia, esta certamente era a receita sadia, não poderia estar melhor.
Por fim, não tive certeza se entendi o seu questionamento. A apenas uma pessoa ele não estava perguntando, não. Eu não era apenas um. Não estava só, andando.
Impermanente aos conflitos, pequenos delitos com relação aos atritos de cada dia.
Se o nada faz, e talvez a ele voltaremos, para quê ficar disputando quando não sabemos?
Na hora de receitar um remédio, o doutor se calou de espanto, quando não me viu aos prantos, mas me viu a sorrir, dizendo que na verdade eu que gostaria de receitar um remédio a ele... não, não apenas a ele... a mim, a você e a todos. Pois somos poucos e às vezes tão bobos!
"Conhece a ti mesmo"

Então eu realmente entendi que de fato existe uma grande diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho.

Inverno

O cinza gelado
Oculta as faces de um dia
Que morre calado

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Razões para se usar metáforas

1. Formular frases bonitas que não precisam fazer sentido.
2. Arranjar explicações pro que disse só depois de ter dito.
3. Poder dizer que o leitor não entendeu o que não foi dito.
4. Proteger seus textos de virarem roteiro do Zorra Total.
5. Ganhar um tapinha nas costas; "Bem pensado".
6. Passar anos escrevendo a mesma bobagem num blog sem ser tachado de repetitivo.
7. Voar pelos céus infindáveis sem se preocupar com o mundano chão.
8. É divertido.
9. Em suma, é uma forma muito eficaz de charlatanismo literário.
10. Metáforas são como fronteiras flutuantes.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Inominável

O mundo já coube num copo de conhaque. Era curioso pensar nisso, conforme os anos iam passando; aquele senhor já fora um homem solitário, antes e depois de ter perdido a esposa.
Hoje, suas criações preenchiam um longo corredor, protegendo-o do vazio daquelas velhas paredes, daquele velho vazio.
Era, de certa forma, divertido notar como suas criaturas se imaginavam criadoras, criativas. Teciam e pintavam, cantarolavam sofrimentos e angústias, fofocavam entre si, sobre si, sobre sol maior e sol menor.
Havia se projetado em todas aquelas pinturas, cada uma delas fora um pouco dele, e agora era como se vivessem além dele mesmo. Talvez realmente o fizessem; a moça solitária, a senhora na cozinha, o velho pintor, tantos outros. Suspiravam emoldurados, envoltos num universo suficientemente incompleto e tranquilo, a ponto de poderem nele existir em paz consigo mesmos.
Peixoto os conhecia a todos, mas será que algum deles já teria concebido a ideia de sua existência?
A verdade é que ele tinha sido o primeiro a chegar, mas quase ninguém sabia disso; apenas o velho Jacob, e talvez mais um ou outro que já tenha passado por aquele corredor.
Depois que abrira a porta, com o estojo de tintas na mão, tudo começara a acontecer.

Um turbilhão de pensamentos sempre lhe atravancava as artes quando começava a trabalhar em sua obra mais recente.
Assim passaram-se as décadas, e ele não conseguia expressar seu auto retrato.
Cada pincelada encontrava uma imagem já alterada, e cada instante se revelava um infinito espaço de mudanças.
E hoje, com o copo de conhaque a seu lado, tentava mais uma vez se aprisionar em uma moldura.
Tentava se ver livre da dor de conhecer a si mesmo na verdade imutável da vida.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Outono

O véu do infinito
Envolvendo o mundo humano
Anoitece um grito

Amor é a resposta

E ela se desfez com o vento, deixando a saudade e inúmeras memórias.

Já não precisa mais dos teus cuidados.
Outros os necessitam.
E é deles que deves cuidar agora.

Ela veio do amor, e em amor se desfez.
E por ser feita de amor, ela continua, ela segue.
E por ser amor, sempre te quererá o bem.

Então vai, fecha os olhos, pinta tuas asas, e voa livre.
Voa pra ser feliz.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Só, a fiar...

Se fez Sofia 
Que com suaves traços
Adolfo cria

Outono

Do céu me encara
Nuvem de tal solidão
Que a vida aqui para

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Um pingo flutuante

pingospoeticos/pincel-de-passagem
Devemos alimentar o peixinho!

Seus brutos! Deixando o bichinho passar fome =(

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Quisera eu soubesse falar...

Em primeira instância
me resumo a Expressar
que não há o que dizer!
Mordo-me em silenciosa inquietude
pelos versos açucarados
que se dissolvem em minha língua
antes que possa entregá-los
a ti
em beijo.

E na ânsia não saciada,
de entoar tantos vocábulos
que guardo apenas no pensar
expresso-me então somente
pela pureza de um singelo olhar.
Realidade é o nome que se dá para o acordo firmado entre pessoas supostamente sãs, para fingir que se tem qualquer discernimento do que diabos está acontecendo à nossa volta.

terça-feira, 12 de junho de 2012

O que ele queria?

Que tela se tecesse em corpo.
Que tinta se pintasse em pele.

E finalmente feliz ele seria?

Lúgubre Interlúdio (Bbm7)

Ela era Sofia e não sabia.
Nem sentia, dia a dia, o velho Adolfo a lhe espiar.
Ali residia, na visão daquele senhor, o problema de amar tal seu amor;
no singular, no sutil ar, nu a cintilar, estava seu Adolfo e seu amar em tom febril.
Ela era Sofia e não podia deixar de ser, pois não escolhera se começar.
Criatura que era, foi sem opção lançada ao cosmo, a óleo, ao céu em tom pastel.
Ela era Sofia e não sabia se olhar; era só, só, e só sabia ser Sofia.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

A mim, essa patagaiada de crescer forte não me engana;
É uma ilusão sobre o pobre aprendizado que se teve a não sentir, na esperança de aprender a não sofrer.
Tolice!
Fecha-se a porta da sensibilidade humana, fecha-se a conexão entre ser e sentir.
Deixa-se de lado o que é belo, em favor do que é prático.
Um dia, eu entrei numa instituição de ensino.
Pra minha tristeza, descobri que não queriam me ensinar, lá dentro.
Queriam me transformar num profissional, em alguém sem tempo e sem sentimento.
Assim como vejo muitas pessoas se proclamando fortes, quando na verdade se esforçam para serem insensíveis.
Como aquele guerreiro da lenda, que quis se tornar resistente a qualquer ferimento da carne, e tanto se esforçou que sua pele virou rocha. E desde então não foi capaz de sentir o carinho da mão de uma moça.
Por favor, não sejam assim.

Ao som de Roger Hodgson - The Logical Song

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Jacob

Eis que em pensamento formulo o tema
Me aprumo na mesa, escolho uma pena
Que mergulho em tinta e me ponho a traçar
Os vagos rabiscos se fazendo em cena
Sem frases, sem rimas, desenho o poema
Imagens na mente que é livre a vagar

Em universos de outros poetas me adentro
Modelando em sopros, tal dunas ao vento
Que traça incesso a paisagem futura
Fronteiras me cruzam em processo lento
Flutuam, se dobram, e me faço atento
Ao que elas revelam envolto em moldura

Me faço em tela ao pintor que assiste
Sua mente é livre, seu coração é triste
Seus olhos refletem a bela obra que cria
Pincel, que em imagem sopra seus medos
Razões e alegrias, pendendo em seus dedos
Enquanto nova chama seu rosto alumia
Mas não sabe ele o segredo que oculto
Pois do lado além, ele é apenas um vulto
Um retrato de Adolfo na parede de Sofia

terça-feira, 5 de junho de 2012

Macaco Astral

Nenhum dos quadros neste longo corredor fora assinado. Em tantos traços variados, misturas impensáveis de cores, a única característica que se repetia era a incalculável fórmula de realidade presente em cada obra. Obras que não eram de gente terrena; Porém, de um artista cósmico, que botara de si para fora o que chamamos de vida, e não cometeu a injustiça de tentar corrigi-la.
Não chamaria tal ato de criação, talvez seja apenas uma sucessão de impulsos, jorros de energia, de poeira estelar.
Com isso, me venho a pensar que as molduras foram escolha nossa. Na ousadia de negar qualquer origem maior, tentamos esquematizar um processo talvez poético, provar por amaisbê que estamos aqui, sem saber porque. Assim foi a destruição da paisagem de cada pintura, tentar examina-la ponto a ponto, da forma mesma que não se faz poesia organizando as letras em ordem alfabética.
Nenhum tubo de ensaio, em momento algum, conteve o composto químico que nos faz suspirar. Não, e não!
Pois cada cientista é, também, um bonequinho pintado tentando se enclausurar no cantinho que ele aprendeu a examinar, assim como eu, assim como o Mestre Marco.
Cada um reinando sobre seu quase nada. Mas esse quase nada já estava aqui antes!
Assim percebi que existe um deus além de nós. Pra que eu seja tão pequeno, em algum lugar há algo maior.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Encanto

Em meio a campos, tais encantos,
entre os bosques e os espantos,
me encontro e me esqueço
de cada beleza sem preço
que já vi em meu caminho
que traço sozinho,
Tal qual urubu.
Ah, vá tomar no seu cu.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Quase Sempre

Pensar em como o dia foi cansativo, tirando os sapatos de salto alto, era algo comum. Planejar e repensar um futuro incerto, também.
Um "boa noite" para o avô, antes de entrar no quarto; a saudade daquele olhar grisalho era sempre grandona.
O ranger da porta incomodava ninguém, mas sempre a abria com cuidado, pois o mundo dos vivos é cheio de dúvidas, aprendera há pouco. Dois passos levinhos pra dentro do banheiro; tirar o batom, o rímel; lavar as mãos, sentir a maciez da toalha acariciando o rosto.
E nessa hora, quando botava a toalha de volta em seu lugar, após desfazer o disfarce que vestia lá fora, a inquietude eterna lhe levava do quarto de volta à sala.
Com os pés voltados para dentro, contemplava o retrato do avô, pendurado na parede, admirada com a expressão que o artista conseguira capturar; desconfiada de que, aquele olhar imortalmente inconsolável, somente quem conhece a própria angústia é capaz de expressar. Os garranchos da assinatura indicavam que aquele devia ser um auto retrato; não podia ser outro nome escrito ali, além de "Adolfo". Disso Sofia tinha certeza.