sábado, 24 de dezembro de 2016

Nós somos os mortos

Não fez diferença, simplesmente. Deixei de me debater, esforço em vão, contra essas amarras. O furo era mais embaixo, tipo aquele cara que tinha levado um tiro na barriga no agitado fim do meu plantão de domingo. Morte horrível. Ninguém pôde fazer nada.
Ninguém pode fazer nada. É simples assim.
Eu achava que podia mudar o mundo me enchendo de piercings, pintando o cabelo, vestindo preto. Hoje é puramente estético. Antes também, eu só não percebia.
No fim é sorte. Tenho certeza de que eu seria uma das bruxas que queimariam vivas na Idade Média. E queimaria com gosto. Só pra não ter que dizer amém. Só pra não dar o gostinho praqueles velhos miseráveis.
O problema é que hoje dizer ou não, amém, não faz diferença. Dizer ou não dizer basta, também não faz. Dizer sim ou não. Ou os dizeres da cartilha. Dizem eles.

E é um disparo, um estouro.
Parte o partido e dá parte à polícia. Criam se os times separados por uma grade.
O nome da grade você sabe.
Pense um pouco mais.
É o que vive te dizendo pra encher a cabeça de mentiras.

You bastards!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Há çar?

Dia e hora de assar o peru.
Um longo tempo no forno.
Será que não assa também o cu?
De tanto cagar essas merdas no colo da gente.
Se bem que o que assa é o ato de limpar, o papel higiênico resvalando neste vale de nádegas, quanto mais áspero, pior.
Mas o sumo-sacerdote-de-saia não precisa desempenhar este papel. Há quem lhe lamba o rabo e sorria, engolindo tudo que ele cagou pra sua vida, sua doutrina.
Mesmo que não sejamos dignos de que entreis em nossa morada, tudo bem, nessa época o espírito invade os lares, acalenta os corações, invade as vidas, invade as virgens, desencadeia convulsões nas civilizações que não conseguem botar o peru pra fora de suas vidas.
É preciso assar, pra depois engolir.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Ou

Saímos pelas oito. Em oito minutos, estávamos a oitenta por hora. Pelas nove e vinte, a distância era grande: fosse voltar ou apenas ir.
Oitenta quilômetros em oitava marcha; velocidade certa ao longo das curvas tortas.
Oito reais em pedágio, mais, bem mais; ou menos. Nunca pagaria oitenta pila num almoço.
Vinte e oito anos. Quites.
Enquanto íamos ou voltávamos o rádio tocava: oitenta canções dos anos oitenta, oito vezes aquela mesma faixa - não se vá!
Oitenta fotos ocultas, para oito levadas ao vento.
Na beira do quilômetro oitenta, um hotel super ____.
Com ela, só existe uma maneira de não ser oito.
Que sejamos nossos além dos oitenta.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Dia após

Assim era.
Era tudo mais ou menos igual. Mais do mesmo. Dia após dia.
Me pergunto se o que tornava o amor cinza era o tempo ou a cidade que não pára.
Amor. Nunca teve a ver com isso, era mais um engano.
To falando das vezes que tu te sente bem misteriosamente não. Falo do enfado. Do que é falado cotidianamente, erroneamente e fadado ao fracasso. Falo de mim mesma também, afinal os dedos apontam até onde eles acabam e sobram os alvos.
Porque a surpresa? Alguma vez foi diferente? Alguma voz fez diferente? Fez diferença?
Tive raiva do pedreiro que me assediou. Duas quadras atrás. Dois minutos apenas. Dois minutos de ódio. Há pena?
Há. Ainda que seja uma sociedade em boa parte machista. Mas não sei como era na sua cabeça, seus problemas. As angústias de viver uma vida sempre competindo com todos, problemas criados no cerne. Seria considerado um fraco se não tivesse gritado sobre a minha bunda, pernas e seios? Eu seria considerada fraca se tivesse gostado?
Eu teria muito mais medo se não ficasse tão triste.
Acho que devo parecer arrogante. Mas não tem como saber pra onde o nariz aponta quando estou distraída. Melhor arrogante do que fraca.
Oi, me dá um Dunhill preto.
Downhill, o mesmo trocadilho sem graça me vinha sempre à mente. Pensei na hora de pagar.
Que caro. E que cheiro de guarda chuva que tinha aquele boteco.
Eram quase sete.
Eu não devia estar perambulando, confabulando sobre o lixo humano.
Mas a pergunta sempre era:
Até quando?

Ainda não

Pitava. Como de costume.
Hábito. Difícil de mudar. Mais difícil ainda, querer mudar. Não queria.
Por isso pitava.
Pitava sob um céu avermelhado, sabor baunilha. Como eu gosto desse horário, pensava eu. Quase sete.
A rua merecia aquelas chuvas para lavar a imundície como sempre. Imundície invisível. Visível apenas para quem olha e vê. Bastante raro no meu caso, mas a frequência aumentava eu acho.
Moça, tem um pito? Um senhor. Um gari. Um agente invisível se pondo visível na minha frente. Tão visível quanto a sua aparente reação tímida e envergonhada quando eu me virei. Devo parecer aquelas que andam com o nariz empinado como se cheirassem carne podre. Ou sei lá. Achei estranho ele ter me chamado, normalmente essas pessoas evitam falar com as outras, por uma boa razão.
Esbocei um meio sorriso, estendendo a pata do camelo azul para fora da carteira, para que compartilhássemos uma fumaça tóxica empolgante. Ninguém pode recusar um pedido de cigarro. Era a regra.
Fogo? Disse , já acendendo.
Ficamos parados, eu olhando pra ele e ele olhando pro vazio.
Pra mim uma conversa interessante sempre começa com o silêncio. Porque as gentes que eram desprezadas pelos cidadãos de bem, desenvolviam outro tipo de sintonia.
Mas é verdade que somos todos parte do lixo que ele juntava todo dia.
Raça humana tão querida.
Enquanto eu tirava aos poucos sua máscara invisível, ele tirava a minha máscara de cidadã da grande cidade, da cidade que não pára, para que enfim pudéssemos conversar. Numa boa. Como deveria ser sempre.

Nunca fumei um camêu azul.

O que eu poderia dizer? Eu, que posso escolher?
Comentei sobre a banda baseada na marca de cigarro. Falamos sobre música um bocado. Era claro que ele era do tempo do vinil, mas que nunca pôde ter. Diferente de mim que tinha e não tinha como escutar. Coisa de guria de apartamento. Foi quando ele riu pela primeira vez na conversa. E eu também.
Era como uma bolha se formando no meio daquele movimento apressado de gentes apressadas, às pressas.
Sem pensar, joguei a bituca no chão, uma ação automática da qual me envergonho. Quando ele fez menção de recolher, me senti o pior verme da face do planeta. Segurei o seu braço e disse não, que eu deveria pedir perdão. Pura idiotice. Eu disse.
Disse também que ele provavelmente estava acostumado com pessoas idiotas como eu.
Ele murmurou alguma coisa e apoiou a vassoura com pazinha no carrinho.
Acendemos mais um cigarro cada um. Dificilmente uma conversa minha dura mais que isso, mas era incrível o quanto se podia aprender com as pessoas invisíveis, ou melhor, era invisível o quanto se podia aprender com pessoas incríveis.
Me envergonhava não ter nada para ensinar.
É. Eu com minha boca cheia de dentes bem escovados, minha roupa lavada e uma posição de certa forma privilegiada. Sempre que pensei ter certeza sobre coisas, estava eu muito enganada.
A vida era dura, segundo o seu relato. E eu acreditava. Imaginava.
Problemas na família, irmão preso. Problemas na rotina, o ódio do dia a dia não deixa ninguém escapar ileso.
Era esse tipo de gente que meu tio tanto desprezava. Me incomodava demais tudo isso, ali naqueles momentos. Tentei dizer o quanto era importante o seu trabalho e que independente da situação no momento, a vida seguia:
Tenho que ir.
Eu não conseguia dizer mais nada. Alguma coisa me impedia.
Coloquei a minha carteira de cigarro, com sete camelos ainda, no bolso do uniforme dele e dei um abraço.
Não era muito, mas era o que eu podia oferecer.