sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Tanto blues

Não é possível falar, é impossível sentir. Não é razoável esperar assimilar qualquer sensação que seja. É nossa vocação de símia imitação a razão desse defeito. Defeituosa como essa frase que passou e o que passou? A palavra defeito se traduz de muitas formas erradas.
Ah, e os bichinhos que vivem no olho da gente nos ensinam a lição desde a primeira vez que os percebemos: qualquer perseguição resultará em fuga. Treinados pela geração anterior, somos macacos astrais que repetem os truques aprendidos. Volta e meia errando, aí é bom que dá uma ilusão de veracidade.
Nenhum supermercado satisfará nossos corações, dos incapazes de compreender nossa própria caixa de miolos. O que se passa ali dentro?
Ocupamos nosso tempo fazendo algo, algum trabalho, alguma atividade. Em geral por vontade alheia, por pura razão de sobrevivência.
Não é necessário aprendermos a entender como funciona essa cabeça peluda, então apenas alguns ilustres terão essa ambição e algum mísero sucesso parcial.
Mas ah! Sorte que alguns de nós deixaram para trás uns encaroçados versos; e de vez em quando nalguns deles se molda um significado que faz tanto sentido para um pobre símio cinzento como eu. Como um biscoito da sorte, um pastel de recheio surpresa. Aquele quentume bom que vem de saber que alguém esteve por aí pensando na mesma coisa; e que pelo menos um de nós soube o que fazer com isso.



quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Ideal

Fica em pé, passa um cafezinho
Bota um rock pauleira na caixinha
Mas tem que ter bons graves
A vida é muito grave, gravíssima
A vida é terminal
Deguste como melhor puder
Acompanhado por um docinho, ideal


sexta-feira, 3 de março de 2023

Give me the wine you keep the bread

Não me parece muito surpresa que o sangue se assemelhe a determinadas bandeiras, símbolos e tudo o mais. O coração como um propulsor dele e um símbolo para as mais criativas bobagens que se possa imaginar. O amor, o romance, a emoção. Caldo mental e ideário para uma grande quantidade de material cultural para o bem ou para o mal.
Para alguns a bandeira nunca deve ser vermelha.
Com bastante frequência percebo como é fácil o estalar da língua, o movimento de uma boca cheia de dentes, esse movimento mecânico, se fazer arauto de frases chavões, eventualmente cheias de preconceito e mesquinhez, sem qualquer reflexão íntima acerca do que nos cerca. Íntima, sincera...
Se mão ferramenta não dá carinho, que dirá a boca ferramenta. Manipulada por vontades aquém.
Contra a vontade, esmagada entre as engrenagens apodrecidas de uma coisa grande. Não sei falar de outra forma, uma coisa grande. Digna de um terror cósmico.

Aí vem a igreja, o padre e uma porção de lixo. Pretenso semblante de liderança. Dizer o que é e o que não. O que se deve ou não. Pegar uma figura incerta, perdida nos anais da história, fazer uma confusão como quem usa uma máquina de fumaça, usá-lo como símbolo de alguma pureza doentia, pendurado em um pau, sangrando e perto da morte. Sangue esse representado com o vinho.
Até o padre bebe o vinho. O sangue de cristo. O cara que sempre me pareceu legal mas o fã clube me ataca desde a catequese. Catequista. Só de me lembrar, já dá um asco. Um bando de velhas azedas, repetindo o som dos grilhões que carregam consigo. Nunca me convenceram. Tentaram me reduzir à meretriz pecadora, indigna da benção de deus, aquele outro canalha, machista, sádico e enlouquecido. Afinal a mulher de nada vale, competindo com deus no milagre da criação. Onde já se viu? Ousadia, rebeldia, criticidade. Nada disso vale, pois faz com que acabe com o conto muito bem estruturado pra arrastar a humanidade a uma existência de miséria.
Ironicamente na época do catecismo eu comecei a menstruar. O tabu social. Até hoje mal falado.
Comecei a sangrar tal qual jesus, porém pelos motivos errados, segundo o ensinamento.
Sentia vir direto do ventre uma intuição infalível. Foi o que me norteou a adolescência até uma relação conflituosa com tudo ao meu redor.
Quando aprendi um pouco sobre de onde vem deus e a igreja, tudo meio que começou a fazer sentido.
A europa. Nome até bonito, elegante. Nome de uma lua que deve ser linda, se um dia fosse possível eu descobrir. Um continente que reflete exatamente todos os problemas da dita religião. Os reflete para o resto do mundo, uma grande mancha de lixo, um esgoto a céu aberto, uma putrefação entranhada em ideais miseráveis, racistas, criminosos, saqueadores, golpistas. Tudo isso com uma maquiagem da melhor qualidade, pra fazer parecer um reduto civilizatório, de boas práticas e exemplos de conduta.
Uma riqueza sim. Riqueza extraída de outros povos, através da violência e da guerra. Através de colonizações destrutivas, opressoras. Se a mentira que deus fez o homem a sua imagem e semelhança fosse verdade, eu poderia dedicar a eles um elogio: seriam, além de tudo isso, honestos. Dentro da visão desse deus aí. De mãos dadas. Provando o fato histórico de ser o berço do fascismo.
Bela contribuição! Que grande benevolência!
Mas sou obrigada a dizer que os povos assassinados por essa conduta, tendem a discordar.
Esse deus está morto.

Eu gosto de uma boa taça de vinho e um cigarro na outra mão. O que mais posso querer?
Entre uma tragada e outra do cigarro, quase corto o filtro. Os dentes cerrados de angústia, de nervoso e de raiva.
O pão eu não quero, fique com ele. O corpo não me interessa, apenas o sangue. Em reflexo à paisagem urbana, que suga toda a energia de quem a sustenta. Os mais pobres. Os que vem de baixo. E os que nunca vão conseguir seguir dicas de empreendedorismo de palco e histerias sobre fábulas incríveis de meritocracia e esforço próprio. Não. Sua própria carne mostra a mentira escancarada. Seus corpos mostram.
Portanto o pão eu não quero.

O sangue desce e a chuva se torna vermelha.

Me entristece saber-me ciente de misérias profundas e incontáveis, escancaradas por onde ando, em calçadas, em notícias e camas de hospital. Creio que se contasse as estrelas do céu, seriam poucas em comparação.
Que tipo de mulher enlouquecida e vazia me tornei ao longo do tempo?
O jornal do almoço mais uma vez serve o prato principal. Ao molho de palavras chave. Seriam notas frutadas, mas nesse caso são 'notas de posicionamento', pedidos de não-desculpas, culpando as vítimas por sua situação desumana causada pelas ações sanguessugas de gente merda. Se o prato principal é a escravidão mais uma vez, o que será da sobremesa?
Povo amortecido e castigado por uma existência insana infelizmente não é tão difícil de agradar.

Há um limite em algum lugar em algum tipo de horizonte.
As mentiras começam a saturar.
O mar das finanças está podre há tempos.
Deus está morto e fedendo.
A jangada de pedra que navega nesse esgoto já não mais suporta tanto tempo vagando.
Será que ela tem data de vencimento?
A dor do chicote que estala é sempre disfarçada de alguma bobajada sobre mercado, política ou individualismo.
Uma constatação ainda salva, como um grito ensurdecedor a quem quer que seja que não consiga por uma razão ou outra enxergar nada: Olha pra isso e me diz que funciona! Está lançado o desafio!
E então, separemos aqueles que já morreram por completo, por dentro e por fora.
Não dá mais.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Eu lembro

    Eu lembro quando pequena meus pais me ensinando coisas básicas. O básico. O básico para eles. Vindos de uma outra geração, com todos os seus vícios e ignorâncias. Não é uma crítica. Assim como eles, eu também vou passar por isso se um dia tiver filhas ou filhos. Vou tentar ensinar o que é básico para mim, e eles vão ver com seus olhos um pouco mais originais que os meus, assim como olho com meus olhos mais originais que dos meus pais.
    Me ensinaram a não mentir, a evitar a mentira. É como se fosse um apelo, para que eu possa corrigir os erros de seus caminhos tortuosos que foram obrigados a seguir em função das circunstâncias. Como se eu sozinha pudesse endireitar uma tortuosidade iniciada em um tempo que já se perdeu de vista. Ao menos para nós. Como se eles percebessem a podridão inerente a todo um sistema e, se contorcendo, lutando, se debatendo, tal qual um louco em uma camisa de força, tentando gritar em silêncio para mim, para ninguém mais ouvir suas heresias perante essa religião putrefata e decadente, que escraviza, que propaga miséria, contempla e estimula a violência, que deprime e vicia, para que ninguém pudesse os dedurar perante os algozes, capatazes, ou capangas... Para que não os apontem os dedos e lhes digam que são fracassados nessa jornada triste.
    Eu lembro de não mentir. Fui ensinada com sucesso até um certo ponto. Até me deparar com a realidade do mundo, me deparar com visões e clarezas que por muito tempo não tive como compreender ou como lidar com contradições tão gritantes às quais não há outra forma de escapar senão inventando fábulas miraculosas, histórias lisérgicas ou lendas falidas.
    Há quem diga que estou me referindo à outras realidades, do outro lado do mundo, lá onde tem gente errada que são inimigos dos valores morais, da decência ou sei lá mais do quê. O pessoal não civilizado.
Eu rio. Um riso forçadamente exagerado a fim de extravasar a minha raiva e manter um pouco da minha sanidade, quase sem perceber como uma defesa contra mim mesma. Porque se vou seguir minhas vontades, não vai ser legal. Ou bonito.
    Não. Não me refiro a ninguém mais. Ocidente e civilização. Ora, se deus existisse para ver toda a sua obra nessa forma máxima, seu sorriso só se igualaria a quantia de mesquinhez, miséria e cinismo de todos aqueles que ousem seguir seu caminho. Se tudo isso, ou boa parte, é a mando de deus, é a prova definitiva de que eu estava certa desde a minha adolescência. Estava certa desde que decidi seguir por mim mesma aquela determinada intuição, que eu não entendia muito bem de onde vinha mas que parecia ser sincera, ora quem diria!? Um nível de sinceridade que não vem de deus, mas de uma mera pecadora, condenada a ser queimada viva em outros tempos, uma sinceridade que urge o questionamento mais básico: por que existe fome se tem excesso de alimentos?
É diferente do que deveria fazer pela própria sobrevivência, mentir para mim mesma e para os outros, de um lugar desconhecido surgia essa desconfiança legítima. Eu sei que outros também a sentem. Uma pena que na maioria dos casos é em uma cama de hospital com o pé já na cova, vendo na própria imaginação o resumo da sua vida vivida em cima de um engano muito bem trabalhado.
    Precisa ser de deus. Não seria da ciência, da intuição ou meramente de uma observação dos arredores. Essa ladainha toda precisa vir de deus. Precisa ser um conto místico, uma predestinação baseada em absolutamente nada. Do contrário não há nada que sustente as teses. A realidade não sustenta, a ciência tampouco e a intuição nos diz a vida inteira que está errado. Ora, às vezes até sentimos o cheiro!
    Eu lembro de olhar para o horizonte e ver uma espécie de vingança fermentando. O tempo passa e a história é um processo. Quem sabe um dia? Tal qual uma chuva refrescante, onde resolvi me banhar em um dia quente, imagino que a sensação vai ser a mesma quando vier o revés, quando vier a paga. Quando as mentiras diárias não mais forem suportáveis. Quando o mercado desaparecer do imaginário ativo tal qual o fantasma sádico que ele é, provedor de fome e pobreza, que se diz conhecedor dos destinos e soluções.
Quando essa jangada de pedra que navega esse oceano de esgoto das finanças internacionais finalmente afundar. Enfim, quando o trabalhador reconhecer em tudo que existe o fruto de suas próprias ações,  a sua própria riqueza, quando se reconhecer dono daquilo que ainda lhe é tomado, através de furto descarado, por aqueles poucos que se insistem superiores aos demais. Velhos brancos, múmias, safados e bandidos, reis e rainhas de reinos falidos, criminosos e saqueadores.
    Eu lembro de brindar este dia, em meus atos de rebeldia vazia, como quem espera o retorno de um bom amigo, uma boa companhia.