Havia, no vilarejo
de Songaripa Nova, diziam os moradores, um homem que fazia milagres.
Uns diziam que era pura bobagem, baita charlatão; outros que era o
Messias, Cristo retornando para nos salvar. Viram-no andando na água,
curando cegueiras, transformando vinho em água, entendendo mentes
femininas. Cada coisa que diziam tornava mais difícil me fazer
acreditar na história.
Resolvi
conhecê-lo.
A única maneira
de chegar em Songaripa Nova, durante o verão, era pegar o trem de
Sacramento, onde eu me escondia na época, seguir até Sorrateiro do
Sul, e de lá subir o morro no lombo de um jegue, a um preço
ridículo de alto, ou alugar um jipe. Mas não tinha jipe para
alugar. Foram catorze horas de trem, devia ter levado só onze. Mas a
seca fode tudo. Inclusive, por causa dela não dava para simplesmente
subir o rio em algum barco a motor, o que seria bem mais confortável
que o jegue. Se eu quisesse conforto, não sairia de casa. Aliás,
nem entraria naquela casa, aquele ninho de lagarto que foi o que eu
consegui arranjar enquanto esperava a década passar.
Cheguei em
Songaripa Nova, que tinha ouvido falar ser um lugar fedido e imundo,
e vi que era mentira o que haviam me dito. Desinformação ou efeitos
dos milagres, eu descobriria em breve. Fui acompanhado por um sujeito
suficientemente simpático chamado Salvio. O filho mais velho dele,
cuja diferença de idade para o pai pouco passava de uma
adolescência, veio nos receber e levar a uma sombra onde os jegues
ficariam e nós não. Eu prentendia ver de zero a um milagres e me
mandar dali o quanto antes.
Esperava encontrar
um homem barbudo, cara de profeta vestindo roupas largas, alto,
esguio. Depois de tomar alguma água barrenta, comer uma fruta cujo
nome jamais saberei recordar, fui apresentado a um rapaz chamado
Jórbeson. O porqueira não passava de um metro e sessenta, tinha uma
barriga de vermes ou de chope, não tinha cabelo, estaria nu não
fosse por um shortinho ridículo da Umbro, atolado na bunda, e andava
descalço. Primeira surpresa positiva: era uma simpatia só. Me
recebeu com um sorriso caloroso, um abraço e me pediu que sentasse
com ele, na sombra de um murinho branco que separava a pobreza da
miséria. Sentamos numas cadeiras de palhas, seriam chamadas de
rústicas na cidade, ali era: o que tinha. Eram boas.
A dor nas costas
foi passando, ali o ar era fresco depois de ter parado um pouco
quieto. Haviam dito ao Jórbeson que eu viera procurá-lo e ele se
preparou para me receber – o que, depois, fui informado de que
significava, entre outras coisas, vestir aquele short. Na presença
de desconhecidos ele não andava pelado. Minha visita o deixara
contente, disse-me. Disse a ele que estive curioso e quisera
conhecê-lo o quanto antes, afinal Cristo não volta todo dia. “Ele
nunca nos deixou, vive em nós”. Perguntei se, afinal, ele não era
o próprio. “Não”; “E essa história dos milagres?”; “Eu
nada fiz”; “E o que aconteceu?”; “Não sei dizer, as pessoas
se deixam levar muito pela fé, o que é bom, mas tendem a relacionar
a ela acontecimentos cuja explicação está muito mais perto do que
pensam”. Sua eloquência me foi outra surpresa e me alegrou. Quando
fui tirar os óculos para limpar o suor pela terceira vez, percebi
que já não transpirava mais. Conversamos por mais uma hora ou
menos, ele me contou sobre algumas aflições que ajudara a superar
com um pouco de conversa, me disse o nome daquela fruta que depois eu
esqueci outra vez, disse que torcia para o XV de Songaripa Velha e
que morou lá até os dezesseis. Andara pelo país e veio parar ali,
tão perto. Morava em Songaripa Nova há menos de dois meses mas já
era amado por todos.
Comentei com ele
que duvidei sobre os milagres desde o início, o que ele concordou
ser sensato. Disse que um milagreiro não deixaria a região onde
mora na seca, o rio morto e esquecido. Ele perguntou “Tem um rio
aqui?” e eu expliquei que tem, quando resolve chover o suficiente,
disse onde ficava. Supreendeu-se e me lembrou que morava ali fazia
pouco e que chuva ainda não tinha visto.
Viu no dia
seguinte, alguns pingos pela manhã. O pessoal festejou e eu, que
pretendia passar apenas uma noite por lá, fiquei foi logo duas. Não
passei fome, e me perguntei se alguém ali passava. Comi um pão
muito bom no café da manhã; o almoço foi vegetariano, mas bastante
farto. No meio da última tarde, quando me preparava para ir embora,
sentia-me leve. Hoje, quem me acompanharia e ajudaria com os jegues era
o Claito, o filho do Salvio que nos recebera no outro dia.
Despedi-me de
Jórbeson, que agradeceu a visita e disse que eu deveria voltar em
breve. “Certamente”, respondi pensando que um falso messias não
leria a mentira em minha mente. Descemos até Sorrateiro do Sul sem
percalços, tirando uma pancada de chuva que teria sido incômoda não
fosse bem vinda.
Chegando na
estação, vi que o pequeno prédio onde fui deixado pelo transporte
animal tinha uma discreta placa que não havia notado antes,
cuidadosamente pintada, onde se lia: “Jórbeson Transportes”. Ri
enquanto ia até o banheiro da estação, vi que havia algum tempo
antes do trem, entrei para dar uma mijada e lavar o rosto. Fui tirar
o óculos e vi que não estava usando. Teria me olhado no espelho,
caso houvesse, mas logo deixei a surpresa de lado e tentei lembrar
onde o teria deixado, procurei na mochila, bolsos e nada. Puta que
pariu, aquela armação linda que foi o último presente do meu único
tio. Me dei conta, depois de algum tempo vagando perto da entrada do
banheiro, que estava sem óculos o dia inteiro. Na verdade, não
tinha usado no dia anterior, também. E lembrei do meu primeiro
encontro com o Jórbeson, quando tirei os óculos e, bosta, foi ali,
não coloquei de volta.
Logo pensei em
voltar lá e buscar, mas, antes de chegar de novo ao aluguel de
jegues, lembrei do compromisso que tinha assumido para dali a dois
dias, onde seria padrinho de crisma do filho de um primo. Olhando
para a placa, percebi que conseguia ler suficientemente bem. Testei
ambos os olhos, que praticamente concordaram com o que viram. Fiquei
mais tranquilo e resolvi deixar para subir o morro na semana
seguinte.
Doze dias depois,
numa terça-feira pela manhã, cheguei novamente à sede da Jórbeson
transportes, onde havia um movimento intenso. Pensei em quanto lucro
um profeta pode gerar e não fui capaz de condená-lo. Disse que
queria uma condução para subir até Songaripa Nova e a atendente me
perguntou se eu preferia ir de jegue ou fazer a volta subindo o rio.
Surpreso, escolhi subir o rio, incapaz de perguntar se era séria
esta opção. Partiria após o almoço. Partimos. No caminho,
descobri que o condutor do barco era sogro do Salvio, o qual comentei
que era um sujeito atencioso e que havia me atendido bem. Pouco
importava minha opinão, percebi.
Cheguei novamente
a Songaripa Nova pela tardinha. Fui recebido, naquele mesmo
patiozinho murado, por um Jórbeson alegre e sem camisa, vestido
apenas com uma bermuda preta de elástico, pés no chão. Disse
“Sabia que voltavas”, ao que respondi que foi bom ter a desculpa
de buscar o óculos, assim poderia vir até ali ter mais uns momentos
de prosa. Nisso ele lembrou que havia guardado para mim meus óculos,
pelo que lhe agradeci. Trouxe-me e logo os vesti. Estranhei.
Tirei-os, olhei-os, reconheci-os pela armação. Comentei que não
consegui enxergar direito com eles. “Estranho”, disse ele.
Levemente perturbado, deitei-os em alguma mesinha e logo me entreti
com alguma conversa. Afinal, era bom estar ali. Acabei ficando cinco
dias, e por três deles consegui me lembrar o nome daquela fruta, que
acabei esquecendo de novo. Chegando em Sorrateiro do Sul, me dei
conta de que não foi a única coisa que esqueci. Li a placa da
empresa de transportes, cada vez mais próspera, e percebi que a lia
perfeitamente. Apenas uma coisa me faria voltar lá de novo: a
armação.