segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Heróis

Não tenho vergonha de confessar que ainda procuro todos aqueles heróis da minha infância.
Onde foram parar?
A sensação de nostalgia, a boa sensação de que existe algo de bom em algum lugar, e principalmente de que tudo vai dar certo no final. Que final?
No fundo eu não deveria gostar deles, afinal, eles serviram pra esconder muita coisa de mim, o choque de realidade aumenta quando tu percebe como o mundo vai se revelando. Em tons de cinza, geralmente escuros.
Meu pai foi o meu primeiro herói. E é um pulinho pra encontrar ele novamente, basta ir até São Chico. Só que assim como os outros, ele já deixou de ser um herói faz muito tempo. Mais precisamente quando eu tinha onze anos ou antes. Hoje ele é só o meu pai, uma pessoa normal, sem super poderes, mortal e frágil. Como todas as pessoas.
Queria muito voltar a ver o mundo como era antes. Ou isso seria querer voltar a ser estúpida e ignorante?
Há quem diga que os médicos e as enfermeiras são os heróis do mundo. Então por que tanta gente pede ajuda pra deus? O deus super-herói, super homem, cujo super poder é usar as pessoas para operar seus milagres. Ora, isso eu também posso fazer.
Não me sinto heroína, a menos que você esteja se referindo àquela droga. Já posso ter sido a heroína de alguém nesse sentido. É difícil de ver a própria toxicidade.
Dia após dia vamos fingindo que está tudo certo.
Noite após noite o amor vai ficando cinzento e aquele brilho no olhar vai se apagando sem que alguém dê importância. Como aquelas estrelas no céu que somem para todo o sempre sem que alguém note. Sempre sobra alguma outra.
Talvez esse seja o mal da coletividade. Sempre tem outra pessoa quando alguém morre, nos cegando quanto à beleza da especialidade de cada um. Basta ver o noticiário, que divide os grupos entre ricos e pobres. Como os pobres são maioria, geralmente são tratados com menos importância.
Esperar o que, de uma sociedade que diz que o policial é herói quando mata e o médico é herói quando salva.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Entre sorrisos e máscaras

Eu já havia gostado da sensação de ajudar.
Um brilho misterioso que vai pulando, achando vários e diferentes lares em vários rostos, ou máscaras. A sensação até era boa, não nego.
Acontece que a repetição e o costume dão nascimento ao enfado. Ver sangue não era um problema pra mim, nunca foi. Não falo apenas do líquido vermelho que dá sustentação para a vida.
Um plantão depois do outro e tu nem se importa mais. Uma vida a mais ou a menos. Afim de se perguntar: Há fim?
Eu quase me arrependia de ter trocado o plantão de sexta com a Aline. A sexta feira, a feira santa, dos artigos raros e de celebridades falidas, produzidas. Onde se troca uma vida inteira de esperas por um momento ínfimo, impermanente, de alegria líquida e sem sentido. Da mesma forma que era irônico que eu gostasse da Aline, era irônico que eu também precisava desse momento de alegria líquida. No entanto eu sempre pensei que me diferenciava de alguns tantos de pessoas, por perceber que isso era uma roubada. Como dizia um amigo meu distante, não basta saber.
Era de se estranhar uma correria relativamente cedo da noite, pouco depois do início dos trabalhos do pessoal de folga, afogando tristezas nas mesas de bar. Mas aqui em Porto Alegre não era estranho. Falta de segurança pública, problema do qual desde que me conheço por gente as pessoas clamam e reclamam.
Mas naquela noite era um rapaz um pouco mais bem ajeitado, desses que deixam os pais em casa em preocupação enquanto que ele sai com o carro para a noite.
Mais novo que eu, com um buraco no ombro. Certamente um disparo.
Com ele vinha uma guria um tanto esquisita, tanto quanto imaginar em uma cena aqueles dois juntos.
Não que eu goste do sofrimento alheio, mas chegava a ser engraçado, parecia mãe drogada com um bebê de rosto sofrível como se nunca houvesse solução para nada.
Limitei-me a rir brevemente por dentro para em seguida me portar como manda os bons costumes e a direção geral do hospital. O que aconteceu?
Já me preparando para dar o devido atendimento. Aquela cara de lunática, cabelos cacheados bagunçados, me encarando enquanto eu pensava em perguntar de novo, caso ela estivesse viajando.
Baleado. Assalto. Perto do Opinião.
Não é o primeiro, não vai ser o último. Chamei o Paulo e o Quevedo para darmos o encaminhamento na sala de emergência.
Marcos Silva teria sido mais um nome nas manchetes ou nem isso. Provavelmente seria, ele não parecia da periferia para ser tratado apenas como mais um número.
Agora remendado e em observação.
Ou salvação, caso passassem aquelas senhoras que eu tanto odiava pra ficar rezando ou pedindo pra deus cuidar dos feridos. Bastava me pedir ajuda, e nem isso, pois já faço isso de rotina, sem que ninguém precise me pedir, é o meu trabalho. Mas acho que é melhor pedir ajuda pra um super-homem-deus-macho que não existe do que pra uma reles-simples-mortal guria-moça-mulher que está ali do teu lado. E ainda há quem diga que eu preciso respeitar a alheia, ainda que o respeito não seja recíproco. Eis aí uma das razões pelas quais os dias vão ficando cinzentos.
Vi na sala de espera aquela moça que tinha vindo com o rapaz ferido. Ela parecia alguém legal, se não legal, pelo menos autêntica. Ou era uma máscara nova que eu ainda não tinha visto. Interessante, portanto.
Parecia estar tendo um dia daqueles, aparente cabeça cheia e latejante.
Ofereci uma aspirina e recebi um sorriso. Daqueles que te deixam na obrigação de imitar.
E o meu sorriso ainda era uma imitação, era só pra dar sustento aos bons costumes, sustentar a máscara de cirurgias plásticas morais e implantes de felicidade.
Tipo a máscara do cara do comercial.
Eu não poderia mostrar o buraco atrás da máscara para qualquer um.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Sótão

    Entre as coisas velhas, algumas guardadas em caixas há tantos anos, outras empilhadas em estantes; livros, tubos de tinta, blocos de papel, uma tesoura de jardinagem, infinitas forminhas velhas de fazer pão e biscoitos; um infinito oceano de solidão escorrendo no espaço vazio entre elas e ele.
    Na sala onde pendurava suas pinturas, Adolfo entrava em uma ilha, onde as ondas escuras não o alcançavam, e quase nada mais importava.
    A casa, um dia nova, ficou antiga, virou um antro de memórias, e outro dia teve que sair dali, carregado por forças incontestáveis. Mas sua própria velhice o acompanhou até a nova morada. Sentia, de vez em quando, um certo desconforto, piscava profundamente os olhos, desacostumado às luzes de seu novo lar.
    Encontrou um lugar especial para seu quadro próprio preferido, a moça do olhar indiferente, assim o chamaria se não soubesse dela o nome, e os minutos em que se punha a observá-la aumentavam dia-a-dia.
    A mudança foi boa; havia mais espaço, um lugar melhor para criar, compor, pintar, desesperar-se nos momentos onde não soubesse o que faria da vida a seguir. Nada muito difícil de deixar passar, essa sensação. Todas as coisas deveriam passar, de qualquer forma. E ele, como criatura humana que era, possuía uma capacidade limitada de estender-se mentalmente além dos limites aos quais já estava habituado, retraindo-se de arrependimento quando se esforçava demais para isso.
    Viveria feliz o resto dos seus dias, provavelmente. Tinha tudo do que precisava.
    Mas era difícil dormir, ali. Pois as luzes da galeria raramente se apagavam.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Máscara do buraco

Finalmente entendia o que queria dizer aquela frase.
Se tirar a máscara fica só um buraco.
Pois, só se entende realmente, depois de sentir.
E era assim que me sentia. Avaliando o negrume do meu abrigo entre quatro paredes de pedra fria.
Corre-se desesperadamente atrás da verdade, para depois nunca mais voltar. Tantas são as catracas que se passa.
Mas olho no espelho e não vejo esse buraco. Não consigo tirar a máscara que tapa. A dor é insuportável. É um buraco de projetil na alma. Alto calibre, não que eu entenda alguma coisa sobre armas. Talvez da dor entendesse, de tanto ver pacientes baleados. Os vagabundos, segundo os jornais.
O café já não me ajudava, assim como os cigarros. Seguia bebendo e fumando de qualquer jeito. Não era de esperar que morreria a esperança, se alguma houvesse. Tinha a sensação que o buraco a havia sugado também.
Era como dar voltas no deserto do velho oeste, ao som de uma guitarra melancólica ou de um violino macabro, com urubus a sobrevoar esperando a sentença final delimitando o início de seus jantares.
O disparo era como um suspiro de respiração pesada. Uma falta de ar a cada impacto.
Passava reto entre os órgãos vitais, era apenas para doer, não pra matar.
Tentava imaginar o que seriam os problemas reais. Pra me alegrar um pouco mais, pois o meu certamente era de primeiro mundo.
Falo bem. Ainda assim era um problema. E eu precisava encontrar a solução, porque o tempo passa rápido demais.
Ria e o mundo irá rir com você.
Chore e chorará sozinho.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Dívida

Ah eu devia?
Acendi o cigarro como o padeiro que foi visitar Don Corleone no hospital, tremendo.
Why should I?
Aos gritos na minha cabeça. Devia estar animada? Por ser sexta-feira? Devo, tenho que, e outras expressões que parecem gozação, surreais demais pra mim.
A sexta feira das felicidades vendidas a preço de banana, se fosse a feira segunda, seria bem mais caro.
Com suas muitas estandes, desde deus até o diabo, com seus produtos à mostra. Compra quem quiser, compra baratinho, na promoção, no combo ou no box.
A moeda é uma vida inteira de esperas. Viver esperando a próxima boa nova, a próxima festa, o próximo carro novo, o próximo namorado.
Claro faça isso. Faça isso depois venha me falar como eu sou depressiva com essa sua máscara de sorriso estampado, do cara do comercial falido.
Banqueiro dos quereres, para me dizer o que devo. Não duvido de mais um sistema financeiro, tão sujo quanto a sua suposta novidade, atormentando almas.
Se quer carregar essa pedra, carregue-a longe de mim, por favor. Carregue-a você, se assim acha tão importante. Não venha me dizer o que eu tenho que, ou deva fazer ou qualquer coisa mais. Não venha querer me convencer desse papo furado.
Não me venha com "meu deus!", principalmente. Só se fica horrorizado diante do espelho das verdades. Não me olha com essa cara, escandalizada, não diga que prefere sinceridade. Eu sei que não é verdade.
Comecei a ficar tonta, acho que a minha pressão baixou.
Calma Júlia.
Fez menção de pegar no meu braço.
Calma nada. Pensei.
O empurrei pra longe. Cai fora cara. Falei.
Tu se estressa por pouca coisa. Aquilo iria ecoar bastante.
Refletido no espelho da verdade, de volta a rebater para as cavernas da mentira.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Onde vais?

Onde vais, esconder-se entre quatro paredes.
Esperar a quem do além não poderá retornar. Fica a saudade.
Vais a pé, de carro ou de alma. Se a vida já é um enfado, vais esconder-te. De si mesmo, das multidões.
Vais tentar sufocar o peso, não da fome nem da necessidade, mas da sensação de estar preso.
Correr atrás, de uma paz que dialoga diretamente com a felicidade. Cobra caro, claro está, seus milagres passageiros.
Onde vais? A tratar de imaginar personagens fictícios, se valer de alimentos como o fazem os lobos, sempre sozinhos. Encontrar ao fundo da garrafa, da xícara ou do copo, divagar é o que eu posso.
Alegra-te, o bom dos problemas é que ninguém tem nada com isso. Só você com você mesmo.
Vais imaginar que nada é real, que as palavras verdade e mentira se aplicariam como tal, na ilusão estampada.
Vais, encontra a paz.
Ou só estás a procurar?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Saudável

Este definitivamente não é um lugar de saúde. O Ministério da Saúde adverte.
Previna! Não advirta...
Ministérios e seus mistérios. Isso me lembrava alguma coisa, algo já visto ou lido em algum livro por aí, não vou lembrar agora. Faz tempo que não leio, a não ser bulas de letra miúda, formulários e livros sobre medicina. Um papo reto deveras desinteressante.
Um prédio branco acinzentado com algumas árvores na frente a fim de fingir que estamos de bem com a natureza.
As pessoas não vem aqui para ficarem mais saudáveis. Elas vem pra se livrar de um problema.
Doença é o problema em questão, normalmente encarado na contra-mão.
Já é também um molde de negócios. O ideal seria que viessem cada vez mais e se livrassem de problemas cada vez menos. Claro, tudo dito com palavras não escritas.
A mesma coisa que deixa o ouvido surdo para os gritos de sofrimento humano.
Às vezes tão escondido, mas normalmente muito evidente.
E como tudo, muito exagerado.
As maquinações e as maquiagens se encarregavam de dar óleo às perversas engrenagens que mantinha tudo funcionando. Um tapinha nas costas. Um cínico aperto de mãos.
Uma vez já tive impressão de minha vida ser de suma importância. Ajudadora das gentes, cuidadora dos enfermos. Protagonista de uma epopeia somente encontrada em livros. Uma heroína. Mas neste caso os livros foram todos queimados pela igreja. O conto acabara antes de se iniciar a jornada.
E era assim que eu me sentia. Quase como aquele personagem de jogos eletrônicos, só que eu não sou viciada em analgésicos. Sou viciada em coisas com o mesmo efeito, mas com nomes diferentes.
Seria tudo a mesma coisa?
Meu deus. Era uma exclamação coerente, não fosse a minha crença em tamanha ausência, inexistência.
Sinto as gentes se movendo em suas multidões, mas não me sinto parte integrante. Uma loner. Às vezes mais pra loser. Palavras estrangeiras que vem bem a calhar.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Debaixo do sol III

Acordei comigo. Sem nenhuma mensagem de nenhum amigo ou ente querido. Acordei sozinha, como já estava acostumada. O sol já havia se despedido além do horizonte quando sentei na cama para olhar através da janela. Se o sol já havia ido embora por que parece que ele ainda está fritando minha cabeça?
O velho sentimento cíclico que vai e vem, vem e vai. Fecho os olhos esfrego com força. Dormi demais. Perdi tempo. Acordei cansada. Desanimada. Só me resta escovar essa boca cheia de dentes retos, lavar esse corpo com dois braços duas pernas, uma cabeça e esse cabelo de incontáveis fragmentos capilares perfeitamente dispostos sobre meu couro cabeludo. Um corpo perfeitamente saudável, com tudo no lugar e funcionando, com uma pequena exceção talvez dos pulmões.
Porém um corpo aprisionado dentro de uma cabeça temporariamente paranoica. Um prédio com vários lares entre paredes e várias prisões diferentes, uma para cada lar. A cabeça inventa o que há de faltar. Como a falta é grande, ela inventa bastante coisa.
O banho de água fria se acabou tal como começou, de repente.
De repente eu faça um café e fique sentada esperando. Esperando o dia acabar.
É quase noite, o sol não deveria mais me incomodar.

Sombra sonora

O dia segundo. A segunda feira. Feira de que, afinal?
Meus olhos estavam cansados, mas eu não tinha sono.
Cheguei sozinha no meu apartamento efetuando uma inspeção silenciosa no meu lar entre quatro paredes. Uma parte da selva lá de fora, aqui dentro. Pendurar o jaleco, abandonar o all star branco e as meias brancas, meus pés estavam pedindo por ar. Crachá largado em cima da escrivaninha, aquele meu rosto sempre a encarar reto pra frente naquela foto minha.
Deitar, encarar o teto. Eram quase sete. O dia era meu, minha folga depois do plantão de domingo. Falsa sensação de posse.
O sono não viria, era certo. Já a sonoridade estava escolhida à dedo, segundo a minha necessidade.
Eram os primeiros "plins" misteriosos, um som quase submarino. Verde e submarino. Impossível não me imaginar entre seres outros em vastos planos de existência. Viajar em diferentes direções ao mesmo tempo, e tempos diferentes. Caminhar lentamente ao lado da evolução da humanidade desde tempos imemoriais.
Se ver com estranhos na rua onde olhares separados se encontram, talvez não por acaso.
Diferentes emoções a cada instante. Meus olhos fecham-se, mas eu sigo sem dormir, havia tomado café demais.
A paisagem agora é outra. Era como voar devagar junto de pássaros que nunca vi. A cabeça balançando levemente seguindo a batida do coração, leve.
Mas há um certo desconforto, uma certa dessintonia. É como encarar sua própria alma em um preciso diagnóstico atrás de alguma imperfeição e se deparar em um oceano negro, espesso. É um céu azul quase roxo, escuro. Gritos e lamentos. Os pássaros são agora agressivos, depressivos.
É como estar no meio de uma tempestade em um deserto alienígena, em uma praia na ventania mais forte. Só é possível ouvir o ruído do vento e das ondas se chocando em violência.
Eu sei que há um fim, já lá estive várias vezes. As areias começam a se assentar debaixo de um céu estrelado, surreal. Há uma luz vermelha piscante em uma torre no horizonte.
Sonoridade orgânica, quase um assobio ao longe. Órgãos adentro. Muito distante começa a ecoar até que só ele reste. Talvez para nos lembrar a própria natureza do que se é. As cordas iniciam sua vibração, uma jornada inteira até o infinito. Exatamente quando minha pele começa a estremecer. Me arrepio.
Sinto uma leve ardência no meu nariz, como quando os olhos querem lacrimejar por causa de um xampu ou sabão.
Cada nota, cada vibração me toca. Era um convite à uma reunião transcendente, uma oferta irrecusável.
Surgia por detrás do cenário uma explosão. Um conjunto improvável, um arranjo interestelar. Uma supernova. Orgasmo musical iminente.
Depois era como em uma transa, apenas se repousa com aquele cansaço bom, mente lenta em calmaria. As emoções vão ressoando e se distanciando aos poucos, enquanto ecoam as últimas promessas temporais terminando em um ruído levemente angustiante.

Adormeci ao final da música.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Baresia

Tá viajando Júlia?
De fato estava somente bebendo e observando. Absorvendo.
Absorvendo mais coisa do que gostaria ou deveria.
Viajava longe, pra evitar ter de estar ali com a minha plenitude desagradável.
Uma mesa de bar rodeada de amigos, conversas e fofocas. Bebida. Cigarro, só no lado de fora.
Fazia mais sentido no entanto, ir lá pra fora fumar sozinha, do que sentir a solidão ali no meio daquele monte de gente, daquela multidão. Amigos ou não.
Como era possível?
Mas era recorrente na cidade que não pára. No ronco cotidiano. Só que era mais fácil fingir certezas e felicidades, aparentemente.
Eu não podia simplesmente chegar em casa e sempre mentir pra mim mesma que está tudo bem. Tirar uma foto com flash para que minha maquiagem exibisse um brilho de felicidade que nem sempre ali estava. Que podemos esperar do mundo das aparências?
Agradeci o convite de bom grado. Só que não deveria ter aceitado assim tão rápido.
Pelo menos não precisei mendigar uma conversa, uma saída, bebida ou pitada. Como era costume acontecer nessas vidas agitadas. Implorar para que se aceite um convite, por menor que fosse. E eu não poderia nem reclamar talvez, pode ser só o universo atirando de volta toda a minha frieza.
Ainda preferia estar noutro lugar que não sei onde.
Vou lá fora fumar.
A falta de rodeios pôde até parecer rispidez, mas não era intencional, não dessa vez.
Me entrincheiro entre outra multidão, os outros do lado de fora. Em lugares não reservados, convites de última hora pensados.
No meu canto fico pensando cá com minhas fumaças, se não estava com medo da solidão. Ou era a loucura mensal, não permitindo a mim, mulher, escapar. O lembrete mensal de que eu deveria sofrer, sangrar e não morrer. Olhando assim até parecia mesmo um castigo divino. Uma ira de deus direcionada a quem ousasse querer ter uma vida sem tanto sofrimento. Afinal seríamos originárias do pecado original. Onde já se viu uma pessoa querer transar e ser feliz?
Percebi meus dentes quase mastigando o cigarro, tal era a acidez dos pensamentos.
Melhor raiva que tristeza. Pensei, na aspereza, em legítima defesa.
Estava começando a apreciar o frescor noturno, o segundo cigarro, quando percebi em uma mesa alguns bêbados voltarem sua atenção demasiada na minha direção. Até demorou.
Obriguei-me a apagar o cigarro na metade e escapar para dentro do bar.
Até ficaria caso tivesse bebido mais. Arrumar uma encrenca gratuita.
Mas nunca valia a pena. Não importava o tamanho da humilhação, os caras quase sempre pensavam que eu estava "dando mole".
Seria a coletividade o problema?
Sempre tive a impressão de que mesmo lá dentro, aqueles caras amigos meus, quando em bando, fariam a mesma coisa.
É uma agonia permanente.
Ter de escapar sabendo que um dia você falha, independente.
Alguma coisa acontece então. Eu não sei, também não faço questão. Que quando tu encontra um cara e fica um tempo com ele, se esquece de tudo isso. Uma cegueira como as outras.
Vale pensar sobre a sabedoria popular:
Antes só que mal acompanhada.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Seja você

Seja você quem for.
Pode sentir coisa mesma que eu? Pode ser que não.
Mas espero eu que sim.
Espero que possa sentir com toda sua alma, como nos tornamos deuses. Da mesma forma tornamo-nos demônios.
Espero que possa sentir o ruído incessante que, ao invés de incomodar, é calmante. É uma certeza breve que não se dá em palavras e por isso evita o conflito. Não deixa ninguém aflito.
Quero que possa sentir da mesma forma, como é o alívio da leveza, ainda que seja na duração de um estalo.
Que possa sorrir com a malícia alegre que nada tem de maldade ou de alegria, pois não é possível dar cabo da dualidade quando apenas se é.
Que a respiração seja leve. A intenção, iluminada.
Saiba que não bastando saber, o que basta é ter aquela certeza improvável, não argumentável, comumente inalcançável, exceto talvez por um momento brevíssimo, tal qual o instante que uma agulha atravessa uma pétala.
É importante também, que isto não se trata de convencer.
Não é um debate, salvo um debate consigo próprio.
Seja você quem for. Afinal, são tantas as máscaras cabíveis em um universo inteiro, difícil não se enganar e pensar que as máscaras são o que parecem ser, ao invés de serem apenas o que são: o universo e um só.
Seja você.

O frio do mês de Júlia

Não que seja coisa de uma mulher qualquer da cidade por ali entre os vinte e os trinta, ficar se debatendo em ideias inquietas, não que eu ligue. Assim quem pensa é a sociedade. Na verdade, sendo mulher ou não, não seria cabível a ninguém se perder em reflexões sobre o que quer que seja, que dirá do que não nos escapa à visão diariamente.
Me dá um prazer maior em justamente fazer isso sabendo que há uma contrariedade geral, justificada ou não.
Questiono a que devo minha vida, vivida com potência de ser em pouca parte do tempo, se da vida ou da morte, porque ambas as opções me parecem corretas uma vez que ambas me tocam no sentido prático. Presencio ambas dia a dia, algumas em níveis maiores outras em menores, e ainda assim tentam me convencer de que a morte sempre supera a vida, argumento supostamente fatual e verídico. Incontestável.
Viveria e vivo da morte de muitos, condenados a condições sub-humanas, produzindo larga escala de itens de necessidade altamente questionável, sem dar atenção ao próprio sub-consciente protestante em natureza e naturalmente submetido.
Viveria da vida, se para viver não precisasse de tanta destruição?
Parece que mais se vive da morte do que da vida.
É o pensamento que pareço chegar, quase acreditando naquilo que tanto tentam me convencer. Ainda sem dar o braço a torcer. Os outros que me dão o braço, para levar uma pontada de agulha, ao mesmo tempo que vai por água abaixo a tese de muitos que já passaram por essa situação, de que estão no governo de suas ações e emoções. Confiando seu braço à uma injeção de uma garota que às vezes só quer ficar bonita no uniforme.
Mas não é assim que falo de mim, acho que quase nunca falo o que penso.
O equilíbrio sadio de uma sociedade doente depende da hipocrisia dos que se dizem autores da transição do seu próprio pensamento em palavras, e da falsidade dos que dizem não dizer a verdade fingindo uma preocupação diferente.
E não sou eu quem vai perturbar esse equilíbrio.
Vive-se de espera.
Enquanto conta-se os dias para as férias, mas nunca os dias para o fim da própria vida.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Há do verbo haver

Há fazeres.
Pois há braço e há maço.
O maço é a paga, quando há preço. Há líquota.
Mas não há brigo onde há vanço.
Há vassalador, um sentimento no cerne da questão.
Para o bem ou para o mal. Um do outro, há trás.
As palavras, todas chaves, enferrujadas de tanto abrir portas que não dão em nada.
Há briu portanto a do sucesso.
Há titudes e há gitos.
Há dor, ei!
Ainda assim parece que há dorno. Há dorno de coração.
Se há dorno, há deus também? Afinal o vale de lágrimas é só pra bonito. Para ver e há clamar.
Há final e há finidade.
Há o que temer quando em Golir.
Há bandonada por deus, que não há.
Em Golir há saltos. Não há vanço e não há brigo. Há traso.
Há tenção.
Já deixo prévio há viso.
Há guardo.
Há versão.
Sobre os fatos.
Contra quais não há argumentos.
Houve e há cidente.
Há sistência para os feridos? Há paratos médicos?
Apenas há deus. Ilusão tão há mada.
Caos da saúde pública.
Muito que há braçar. Houvera esperança?
Talvez depois de há çar.
Um há bate, de um há nimal, no final do ano há fim de tentar consertar tanto tempo sem estar nem aí pra nada.
Fingir que há mar num deserto de tristezas há temporais.
Há o moço. Ou janta? Há demais, diferença faz?
Há sombração.
Nos tempos medonhos há diante.
Há sim como há trás.

Post script

Constrói-me inteiro, para depois desmontar. Meu ego.
Resisto o quanto posso, mas na verdade não quero.
Uma coleção de retratos perfeitos, foi o que eu encontrei. De peças que não podem durar.
Preciosas demais. Do passado e do futuro.
O tempo passa muito rápido. Quando os quatro braços se fazem entrelaçar. Quando as duas bocas de falar, de tanto falar se tocam em silenciosa apreciação. Vejo um reflexo verde, vejo o que os seus olhos querem mostrar.
Há preço?
Não se pode comprar o que há de mais precioso. Se há preço, a moeda é outra. Alguma que desconheço. Se encontrei, não foi por acaso.
Ainda assim é a única coisa que preciso.
Um abrigo à prova de tempestades, embora acima delas haja sol.
Uma dama fantasia.
Uma miragem revelada verdadeira.
Alguém que jamais quero aprisionar.
Uma troca de olhares, não por acaso, um olhar elevado.
Me faz esquecer tudo menos o mais importante. Me doo de bom grado e me doo por inteiro. Pouco me importa eu, mas sim me importa você.
Uma exclamação que se quer exaltar.
O sorriso e a lágrima, ambos sinceros. E como é bom chorar de felicidade.
De potência de ser.
E estremecer alegremente ao som de duas palavras adocicadas com olhar esverdeado. Te gosto.
A garota mais linda.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Primeiro de Janeiro

Como conviver com a existência do tempo?
Ocorre de amarrar-se aos momentos bons, esperando segurar-se a uma âncora; mas tendo nas mãos uma pipa.