quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Songaripa


Havia, no vilarejo de Songaripa Nova, diziam os moradores, um homem que fazia milagres. Uns diziam que era pura bobagem, baita charlatão; outros que era o Messias, Cristo retornando para nos salvar. Viram-no andando na água, curando cegueiras, transformando vinho em água, entendendo mentes femininas. Cada coisa que diziam tornava mais difícil me fazer acreditar na história.
Resolvi conhecê-lo.
A única maneira de chegar em Songaripa Nova, durante o verão, era pegar o trem de Sacramento, onde eu me escondia na época, seguir até Sorrateiro do Sul, e de lá subir o morro no lombo de um jegue, a um preço ridículo de alto, ou alugar um jipe. Mas não tinha jipe para alugar. Foram catorze horas de trem, devia ter levado só onze. Mas a seca fode tudo. Inclusive, por causa dela não dava para simplesmente subir o rio em algum barco a motor, o que seria bem mais confortável que o jegue. Se eu quisesse conforto, não sairia de casa. Aliás, nem entraria naquela casa, aquele ninho de lagarto que foi o que eu consegui arranjar enquanto esperava a década passar.
Cheguei em Songaripa Nova, que tinha ouvido falar ser um lugar fedido e imundo, e vi que era mentira o que haviam me dito. Desinformação ou efeitos dos milagres, eu descobriria em breve. Fui acompanhado por um sujeito suficientemente simpático chamado Salvio. O filho mais velho dele, cuja diferença de idade para o pai pouco passava de uma adolescência, veio nos receber e levar a uma sombra onde os jegues ficariam e nós não. Eu prentendia ver de zero a um milagres e me mandar dali o quanto antes.
Esperava encontrar um homem barbudo, cara de profeta vestindo roupas largas, alto, esguio. Depois de tomar alguma água barrenta, comer uma fruta cujo nome jamais saberei recordar, fui apresentado a um rapaz chamado Jórbeson. O porqueira não passava de um metro e sessenta, tinha uma barriga de vermes ou de chope, não tinha cabelo, estaria nu não fosse por um shortinho ridículo da Umbro, atolado na bunda, e andava descalço. Primeira surpresa positiva: era uma simpatia só. Me recebeu com um sorriso caloroso, um abraço e me pediu que sentasse com ele, na sombra de um murinho branco que separava a pobreza da miséria. Sentamos numas cadeiras de palhas, seriam chamadas de rústicas na cidade, ali era: o que tinha. Eram boas.
A dor nas costas foi passando, ali o ar era fresco depois de ter parado um pouco quieto. Haviam dito ao Jórbeson que eu viera procurá-lo e ele se preparou para me receber – o que, depois, fui informado de que significava, entre outras coisas, vestir aquele short. Na presença de desconhecidos ele não andava pelado. Minha visita o deixara contente, disse-me. Disse a ele que estive curioso e quisera conhecê-lo o quanto antes, afinal Cristo não volta todo dia. “Ele nunca nos deixou, vive em nós”. Perguntei se, afinal, ele não era o próprio. “Não”; “E essa história dos milagres?”; “Eu nada fiz”; “E o que aconteceu?”; “Não sei dizer, as pessoas se deixam levar muito pela fé, o que é bom, mas tendem a relacionar a ela acontecimentos cuja explicação está muito mais perto do que pensam”. Sua eloquência me foi outra surpresa e me alegrou. Quando fui tirar os óculos para limpar o suor pela terceira vez, percebi que já não transpirava mais. Conversamos por mais uma hora ou menos, ele me contou sobre algumas aflições que ajudara a superar com um pouco de conversa, me disse o nome daquela fruta que depois eu esqueci outra vez, disse que torcia para o XV de Songaripa Velha e que morou lá até os dezesseis. Andara pelo país e veio parar ali, tão perto. Morava em Songaripa Nova há menos de dois meses mas já era amado por todos.
Comentei com ele que duvidei sobre os milagres desde o início, o que ele concordou ser sensato. Disse que um milagreiro não deixaria a região onde mora na seca, o rio morto e esquecido. Ele perguntou “Tem um rio aqui?” e eu expliquei que tem, quando resolve chover o suficiente, disse onde ficava. Supreendeu-se e me lembrou que morava ali fazia pouco e que chuva ainda não tinha visto.
Viu no dia seguinte, alguns pingos pela manhã. O pessoal festejou e eu, que pretendia passar apenas uma noite por lá, fiquei foi logo duas. Não passei fome, e me perguntei se alguém ali passava. Comi um pão muito bom no café da manhã; o almoço foi vegetariano, mas bastante farto. No meio da última tarde, quando me preparava para ir embora, sentia-me leve. Hoje, quem me acompanharia e ajudaria com os jegues era o Claito, o filho do Salvio que nos recebera no outro dia.
Despedi-me de Jórbeson, que agradeceu a visita e disse que eu deveria voltar em breve. “Certamente”, respondi pensando que um falso messias não leria a mentira em minha mente. Descemos até Sorrateiro do Sul sem percalços, tirando uma pancada de chuva que teria sido incômoda não fosse bem vinda.
Chegando na estação, vi que o pequeno prédio onde fui deixado pelo transporte animal tinha uma discreta placa que não havia notado antes, cuidadosamente pintada, onde se lia: “Jórbeson Transportes”. Ri enquanto ia até o banheiro da estação, vi que havia algum tempo antes do trem, entrei para dar uma mijada e lavar o rosto. Fui tirar o óculos e vi que não estava usando. Teria me olhado no espelho, caso houvesse, mas logo deixei a surpresa de lado e tentei lembrar onde o teria deixado, procurei na mochila, bolsos e nada. Puta que pariu, aquela armação linda que foi o último presente do meu único tio. Me dei conta, depois de algum tempo vagando perto da entrada do banheiro, que estava sem óculos o dia inteiro. Na verdade, não tinha usado no dia anterior, também. E lembrei do meu primeiro encontro com o Jórbeson, quando tirei os óculos e, bosta, foi ali, não coloquei de volta.
Logo pensei em voltar lá e buscar, mas, antes de chegar de novo ao aluguel de jegues, lembrei do compromisso que tinha assumido para dali a dois dias, onde seria padrinho de crisma do filho de um primo. Olhando para a placa, percebi que conseguia ler suficientemente bem. Testei ambos os olhos, que praticamente concordaram com o que viram. Fiquei mais tranquilo e resolvi deixar para subir o morro na semana seguinte.
Doze dias depois, numa terça-feira pela manhã, cheguei novamente à sede da Jórbeson transportes, onde havia um movimento intenso. Pensei em quanto lucro um profeta pode gerar e não fui capaz de condená-lo. Disse que queria uma condução para subir até Songaripa Nova e a atendente me perguntou se eu preferia ir de jegue ou fazer a volta subindo o rio. Surpreso, escolhi subir o rio, incapaz de perguntar se era séria esta opção. Partiria após o almoço. Partimos. No caminho, descobri que o condutor do barco era sogro do Salvio, o qual comentei que era um sujeito atencioso e que havia me atendido bem. Pouco importava minha opinão, percebi.
Cheguei novamente a Songaripa Nova pela tardinha. Fui recebido, naquele mesmo patiozinho murado, por um Jórbeson alegre e sem camisa, vestido apenas com uma bermuda preta de elástico, pés no chão. Disse “Sabia que voltavas”, ao que respondi que foi bom ter a desculpa de buscar o óculos, assim poderia vir até ali ter mais uns momentos de prosa. Nisso ele lembrou que havia guardado para mim meus óculos, pelo que lhe agradeci. Trouxe-me e logo os vesti. Estranhei. Tirei-os, olhei-os, reconheci-os pela armação. Comentei que não consegui enxergar direito com eles. “Estranho”, disse ele. Levemente perturbado, deitei-os em alguma mesinha e logo me entreti com alguma conversa. Afinal, era bom estar ali. Acabei ficando cinco dias, e por três deles consegui me lembrar o nome daquela fruta, que acabei esquecendo de novo. Chegando em Sorrateiro do Sul, me dei conta de que não foi a única coisa que esqueci. Li a placa da empresa de transportes, cada vez mais próspera, e percebi que a lia perfeitamente. Apenas uma coisa me faria voltar lá de novo: a armação.

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