sábado, 18 de novembro de 2017

Origami

Provavelmente mãos de trabalhadores mal pagos foram as que enrolaram aquele cigarro de "descer a ladeira" rumo à má saúde. Eu girava ele nos dedos enquanto ouvia o zumzumzum sobre as supostas virtudes alheias de fim de ano.
"Procuro ser uma pessoa correta, não faço o que não quero que façam pra mim."
"A gente procura não fazer o mal, mas também não levamos desaforo pra casa... Mexeu com um mexeu com todos"
Falou o corporativismo imundo da medicina que ninguém consegue processar na justiça, mesmo a causa sendo justa. Mexeu com um mexeu com todos. De fato. A minha vontade de falar isso era tanta que cheguei a esboçar um sorriso e em seguida peguei meu espelho de maquiar na bolsa, pra ver se não estava escorrendo veneno dos meus lábios. Eu sempre consegui fingir muito bem.
Era necessário pra sobreviver ali, eu não queria ser demitida.
Pelo menos o Rogério não era tão escroto. Eu notava em seu olhar que ele também se sentia mal com aquilo tudo.
E lá estava toda a direção do hospital, funcionários, até um ou outro político, todos muito bem arrumados, inclusive eu, para as tais boas festas de fim de ano. Já se passavam trinta minutos eu estava ficando com os dentes cerrados, precisava ir lá fora fumar aquele cigarro embrulhado pelos trabalhadores que provavelmente no fim da vida iriam parar na frente de pessoas como eu, temendo pela própria vida. A Aline se divertia muito com os contadores de piada nesse momento, tanto melhor pra mim, eu ficaria sozinha lá no terraço.
Iria tentar ver alguns semáforos funcionando sozinhos nas ruas da cidade, um dos meus passatempos noturnos de introspecção.
De volta na minha bolsa procurando o meu isqueiro me deparei com uma ave feita de papel, já um tanto amassada. A tinha ganho naquele mesmo dia de um dos garotos de uma escola de periferia na nossa ação de Natal anual. Uma boa ação por ano, é quase um recorde.
O pássaro era pintado com lápis de cor barato, feito com papel de rascunho da indústria calçadista, com vários números relacionados à produção mensal e algumas tabelas impressas no 'verso'.
A tamanha beleza daquilo só se comparava à ironia de que provavelmente aquele mesmo garoto viria a trabalhar com tais números e tabelas no futuro. Se for o melhor futuro entre os piores.
Naquele momento ouvi um disparo ao longe, em meio ao som de buzinas e motores. Novamente me surpreendia a capacidade daquela cidade de ler os pensamentos. Os ruins pelo menos.
Na metade do meu cigarro a Aline veio ao meu encontro.
Vim fugir de um cara chato que está tentando me desdobrar. Me dá cobertura.
Coloquei o origami no parapeito do terraço enquanto dava minha risada esfumaçada.
Ela não podia nem olhar para o origami direito. Era sempre uma experiência traumática essas visitas às escolas. Alguém tinha de chorar por mim, de qualquer forma.