terça-feira, 22 de março de 2022

Expurgo

 
Belisco essa pequena camada criada sobre a pele, machucando a minha unha: um corselete de couro, feito para que algumas coisas não pudessem entrar, perpassar minhas defesas, invadir meu sistema
Como as guaritas de vigia daquela crônica do Verissimo.
Ó, tragédia anunciada somente em retrospecto
Há mais de dez anos tentei escrever sobre um homem: era uma espécie de guerreiro, talvez um cavaleiro.
Ao final de uma década de experimentação de sofrimentos, de tentar se defender; ele era incapaz, também, de utilizar seu tato.
Meu gibão de peles: dentro dele, meus pensamentos, sentimentos cozinharam feito uma criança esquecida num carro; desmancharam feito repolhos cozidos noite a dentro.
O sapo que não saltou quando a água ferveu
Ou o sapo da manteiga, como era a história?
Quando eu percebi que o remédio que me estabilizava fazia exatamente isso, eu não soube o que fazer.
Me sinto podado, aleijado de uma capacidade gutural de sofrer, que antes me servia tão bem como forma de conseguir viver feliz
Numa ausência de luz e sombra, venho tateando com a mão dormente, tropeçando na mobília velha da minha rotina.
Mesmo este texto é um raro acontecimento. Saber do que me aconteceu não significa ser capaz de evitar que isso me tome novamente conta. Saber não basta.
Este momento em que estou aqui, expurgando, é um raro buraco numa planície devastada. Um furo no gelo por onde um canadense pesca algum peixe. Mais gelado do que numa peixaria
Três vezes essa semana eu pesquei os olhos, digo pisquei.
Fechei com alguma força e esperei sentir algo, chorar seria ótimo.
Mas nada.
É um preço pesado por não arrancar diariamente os cabelos.
Tive que me fadar a viver em anestesia.
Existe um bando de malucos seguindo um outro pior. O pior presidente de todos os tempos.
Meu corselete de couro batido, surrado de tanto ser exposto a essa loucura, esse absurdo.
Não é a loucura de andar numa montanha russa invertida, que nos faz sentir como numa máquina de lavar roupa – tudo com a devida segurança
É uma sandice de comer merda só porque querem ter o bafo mais fedido de todos os tempos.
Fervo por baixo das peles, tentando evitar uma explosão
A pressão aumenta até que o lado de dentro se torne insuportável
Ando cabisbaixo e não muito animado
Vivendo sem respirar direito, esperando dias melhores
Como alguém que sai pra pescar
com uma rolha enfiada no cu