quinta-feira, 23 de julho de 2020

Como vai você?

De vez em quando me volta na mente o problema dos incomodados que não se retiram. Eu noto com uma certa perplexidade o grande espaço de tempo entre agora e a época em que ingressei eu mesma nesse grupo peculiar. Esse grupo individual de pouca coletividade.
Pois eu teria bastante coisa pra falar também. Dentro desse jeito velho, antiquado, quase um clássico de um falar e o outro escutar, que se perdeu em algum momento na guerra moderna dos corretores automáticos e dos escravos obedientes aos seus senhores referenciados com a qualidade estrangeira smart.
Talvez até queira voltar a descobrir o carinho perdido no trato com os demais.
Mas desde que trabalho com pessoas, só me interessa o sangue mesmo. Não é pra menos.
Falhamos.
Eu entendo, o labirinto é grande demais e o tempo é muito curto. É melhor ir atrás dos pilares disso e daquilo, dos passos para a felicidade e dali para o sucesso, dos molhos de chaves de mau-gosto nos intermináveis buffet's motivacionais. Assim o diálogo se cala com o cair das cortinas do próximo espetáculo, a grande novidade, mas o circo segue o mesmo. Desconfio que até já vi o mesmo palhaço mais de uma vez. Me interessaria mais dar pipoca aos macacos.
E aí eu vejo no olhar dos doentes o grito silencioso de que "sou um ser humano, minha vida tem valor.". É tudo o que escapa quando se vêem sem saída na espera do remédio que nunca chega.
Nunca é suficiente.
No entanto, ainda precisam falar. Precisam se ouvir falando pelo menos uma vez, pode ser que dessa vez seja sincero, diferente do resto da vida. Não é comigo que falam pois não quero ouvir. O meu gesto de bondade é involuntário porque preciso fingir que os escuto. Não deveria mas é parte do meu trabalho.
No fundo se sabe. Só que a insistência no retorno ao espaço de grosseria é bem maior.
Vasto é o incentivo.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A esquina sem eu

A cidade é um problema e já não ando minhas andanças. Quanto a isso, não há remédio. Ficar afastado é só o que se pode fazer. Uma esquina que um dia reencontrei em surpreendente acaso e lembrança, sem  que eu percebesse, deixou de ser logo ali. Mudamos: de minha casa agora chamo a outro lugar; o eu a quem me refiro agora é outro. Aquelas ruas ainda se cruzam ali, no mesmo lugar sob árvores e estrelas. Mas sozinhas, elas não significam nada.

Sinto falta do movimento, parar na esquina e atravessar as ruas somente com o olhar. Toda tragédia que cruza um caminho desperta uma exclamação: "justo agora que...". É isso. Nada acontece num momento que não interromperia coisa alguma. Estamos sempre no meio, sempre num processo de transformação.

A esquina é cínica. Diz oferecer opções, mas nos leva sempre aos mesmos lugares. O carro está em casa, mas eu também. Quanto a isso, expecta-se pelo tempo que resolva, este que é remédio e veneno, gelatina sem sabor. Que a erosão nos abra um caminho, e que ainda tenhamos pernas para andar por ele.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Comm Malfunction

Julho, ou o marido da Júlia, como me diziam até o limite da exaustão na minha infância, na escola.
Mesmo se eu quisesse me casar, não acho que iria ter quem me aguentasse. Sou um excesso até quando estou sozinha comigo mesma, me incomodo. Sai uma porção disso tudo pelo cigarro eu acho, é como se fosse uma pequena válvula, mas antes de tocar pra fora, ele filtra um pouco.
Mesmo assim acho que gostaria de poder dizer algumas coisas, trocar uma ideia ou mesmo compartilhar uma existência que não a minha própria. Gostaria que acontecesse mais. Que ao invés de se quebrar em um muro de incompreensão e gelo, erguido com minha ajuda, eu pudesse me sentar nele e observar um pouco do outro lado também. Talvez balançar os pés lá de cima.
Acho que sou sociável mais do que me imagino, mais do que eu devesse e menos do que o ideal.
É difícil.
Se antes tinham poucas pessoas, hoje é ainda menos. Até porque não há tempo. Não há tempo, não há contexto. Há um porão, de onde se mandam cartas através de pombos. Mas os pombos são mal alimentados, as cartas se perdem na ventania da tempestade e quando chegam já não fazem o menor sentido. Só que às vezes a carta é um pedido desesperado de socorro.
Pois somos animais que vivem agrupados. Somos macacos entediados que sofrem com ansiedade.
Precisamos de uma série de máquinas que tratam desde a comunicação à viagens interplanetárias, tal é a intensidade do tédio.
E aí se não sou feliz quero ser feliz, se não tenho casa, quero casa, se tenho casa quero carro, se não tenho ninguém, quero alguém, se tenho alguém quero casar com esse alguém e reduzi-lo a uma extensão de mim mesma no que diz respeito aos quereres. Quero ter poder. Mas isso não é poder, é corrupção.
E eu sorrio.
Assim como sorri na melhor transa da minha vida. Porque não só não tinha aquele muro, como havíamos derrubado tudo, mas sem cortar as mãos, sem ficar com dor nas costas e sem corrupção.
Sorri porque havia entendido.
Mas ainda não sei o que.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Postergo

Existem várias coisas que eu evito; uma delas é terminar todas as coisas que tenho que fazer, por poucas que sejam. Seria um medo de não ter mais nada dependendo da minha atenção?
Eu evito a extração daquilo que me perturba noite após dia, essa beterraba gigante atravancada em minhas artérias. Eu sei como tirar ela dali, sei os meios: palavras. Mas evito. Sei que hei de puxar um ramo, um fio, um galho e desencadear uma puxação que vai parar numa raiz inevitavelmente dolorosa - e na hora haverá uma breve sensação de arrependimento que quase poderia ter sido evitado, como enfiar a unha e fazer o nariz sangrar na caça por aquele tatu lá de cima da chaminé.
O primeiro passo seria começar, depois continuar até não precisar mais parar; mas evito. Em vez disso, cometo pequenas escapadelas de poucos parágrafos, como uma panela de pressão assoviando: apenas o suficiente para não explodir. Ei de reler-me sóbrio essas linhas e dar conta da falta de vergonha na cara, que agora não sinto, sinto muito.
Quem dera eu possa me convencer no futuro, visto que não posso me convencer no agora.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Aproveite o dia

O ciclo solar lunar terrestre humano emergiu das sombras de um ontem pouco lembrável.
Existem câmeras, aviões, existem cofres e aparelhos de ginástica.
Nossa essência é mudar.
Nossa natureza.
As pessoas mudam e as pessoas também não mudam.
Nascidas páginas em branco, várias camadas vão se acumulando, algumas indeléveis.
Aproveite o sol brilhando, tire o mofo do corpo. Guarde a sombra para o verão.
Nem tudo que vai também volta - olhe como é a vida; eu poderia insistir em algum ponto, mas pra que perder tempo me repetindo? Afinal, já entendemos tudo.

Rotina

Como não se sentir preso nesse constante deslizar no dia-após-dia?
Quando já não se é mais tão jovem; convivemos com o futuro que construímos sem saber, arrastamos por aí os pesados alforjes da nossa vivência.
Como não se sentir preso a uma correnteza irresistível e, às vezes, imperceptível?
A própria felicidade é uma prisão.
A singularidade é um cativeiro.
Acertei, mas e se tivesse errado?
Passaria fome?
Sentiria saudade?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

All alone

Vou pro terraço. Tenho um ou dois cigarros ainda. As luzes noturnas da cidade me davam as boas vindas, paisagem que sempre gostei.
Ainda tenho dez minutos eu acho.
Ouço atrás de mim alguém caminhando. Uma mão pousa em meu ombro. Outra mão aparece com um café.
Era quase como um abraço.
Bota um casaco! deve tá dois graus aqui fora...
A Aline tava com umas olheiras, parecia doente.
Depois de me alcançar o café ficou do meu lado me olhando.
Quando ela pegou no meu braço eu percebi que estava só de manga curta. E que todo meu corpo doía.
Eu não sentia mais meus pés, esqueci de colocar uma meia extra.
Eu não sentia o quão exausta eu estava.
Mas, provavelmente eu não era a única, estava todo mundo trabalhando até o limite.
Eu já não mais sabia por que, nem antes, nem agora. Não havia perspectiva, apenas um bando de burros, ignorantes, insistindo em uma birra infinita.
Apenas um pensamento coletivo: Que morram.
De repente senti quase como um corte no rosto. Uma lágrima fria e solitária despencando. A regra seguia a mesma, apenas uma lágrima era permitida. Não mais. Nunca mais.
Acho que eu estava chegando no meu limite também.
Aline se aproximou um pouco mais. Quase sem que eu perceba, ela me envolve com o meu casaco que havia esquecido lá embaixo.
Olhei para ela de relance, estava prestes a chorar.
Estávamos trabalhando tanto. Nós pelos outros, mas ninguém por nós.
Puxei ela pra perto em um abraço apertado.
Violei minha própria regra.