sexta-feira, 25 de março de 2016

Juão

Falar por falar e não ter o que dizer. Falar sobre uma ponta e revelar um vagalhão de profundidades. Que trabalho árduo, todos esses verbos, tão pouco tempo, tantos pretéritos e o futuro: indefinido. Um coração selvagem pulsando, uma batida em ritmo quatro por quatro, um pneu revirando a terra que vive na linha entre os vivos e os que morreram. As águas em março molhando o outono, que coisa boa respirar esse ar leve de um ambiente arejado, sentir nas antilhas um sopro desconhecido. Provocar, aguentar calado. Não se desespere, não entre em pânico.

terça-feira, 15 de março de 2016

Saindo de casa

Alice mal pisou na calçada e já escutou a vizinha gorda gritar com o cachorro por ele ter comido o resto do bolo que estava no lixo. Parando, um pouco assustada com o barulho, ouviu os vizinhos da frente num papo profundo. Pareciam boas pessoas. Seu Rivaldo, afirmava com veemência sobre o quão vagabunda era a Dona Gertrudes, que, aparentemente, cuidava da própria vida ao invés de fofocar sobre os outros. Eduardo ouvia e sorria de volta, repensando sua amizade com a senhora.

Alice sentou no cordão. Mordeu um pedaço da bolacha que trazia na mão, se sentindo cada vez mais minúscula aos assuntos do bairro.

O simpático Senhor Rivaldo terminou o desabafo, acenou para a gorda do cão e entrou em casa, segundos antes do carteiro chegar e entregar a carta que Eduardo esperava. Era o empréstimo que havia pedido novamente. Dessa vez daria certo.

Então, a rua se aquietou. Finalmente. Alguns pássaros cantaram, algumas crianças passaram de bicicleta e correndo. Era quase meio-dia e o sol fazia festa.

Alice limpou as mãos na saia, levantou e tropeçou, dando de cara no paralelepípedo. Ficou vermelha.
Sentindo que aquilo seria a pauta do bom dia de amanhã, quis se enfiar em um buraco de tanta vergonha. 

sexta-feira, 4 de março de 2016

Muito Obrigado

Muito, muito. Muito obrigado. Pura obrigação. Por obrigação, não por vontade própria: levantou o rabo da cama, trocou pela farda o pijama, levou consigo o guarda-pó, dependurado ao lado do guarda-roupa; tomou café, limpou o bigode no guarda-napo, saiu de casa sob chuva, sob um guarda-chuva; trancou bem a porta-de-casa, abriu a porta-do-carro, guardou o guarda-chuva no banco-de-trás para não precisar abrir o porta-malas, guardou o óculos de sol no porta-luva, vai que o tempo muda; Ligou o carro, presente divino, e partiu para o trabalho, mesmo sem querer muito, mas com uma sensação de gratidão, por tudo que tinha conquistado; não sem ajuda, sim, era grato, diria "muito obrigado", mas a quem? Adeus. Não há. Disse: há deus? para a mulher, antes de sair, alguma vez? Melhor não criar intriga. Melhor agradecer pelas graças alcançadas, nenhuma de graça, tudo à custa de muito suor, menos no inverno, mas ainda assim algum. Tocou o carro esquina adentro, rua afora, rumo ao fluxo interminável de veículos gratos, nunca grátis, que levariam centenas e milhares de outros obrigados aonde queriam ir sem desejar. Dirigindo com pressa, debaixo de chuva, despencou de cima para baixo de um viaduto, destruindo fatalmente o carro que era dirigido por ele, mas guiado por ninguém mais.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Gotículas

Que boa essa sensação de não ser importante.
De perceber que as coisas se movem, rolam, se transformam sem a nossa interferência.
É bom repensar o valor que se dá a si mesmo e notar que: quanto menor, mais perto da realidade para o universo.
E pensar: que se foda o universo.
Saber que tu é livre para partir desse mundo e ele continuará praticamente do mesmo jeito.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Desafino

Não sei cantar.
Queria propor um desafio.
Queria saber escrever como escrevera outrora.
Há situações onde o pretérito-mais-que-perfeito é ideal. Perfeito.
Encontrei uma história no banheiro e, só para evitar a mesóclise, me aviso que devo contá-la.
Ela e mais uma.

terça-feira, 1 de março de 2016

Malfeitor

"Saia do meu caminho"; mas e é teu mesmo?
Tem gente com pressa, tem gente que conversa.
Se for devagar, vá pela direita.
Se for divagar, ponha a mão no queixo, sim, a pose é importante.
O que comentar sobre o João, Zé?
Memória fotográfica não existe, só retratos falados, e ainda assim muito embaçados pelas preciosas perspectivas que carregamos em nossas lentes naturais.
Mas dá uma leveza nos ombros, é quase uma brisa no rosto essa sensação de não se preocupar em emendar os discursos, em convencer, em ensaiar um monólogo e provar as teses num tubo de ensaio, saborear a irresponsabilidade de poder perguntar e não responder, de escrever sem introdução nem conclusão.