segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Não éramos anjos

Uma queda talvez. Uma redução no nível intelectual, uma insistência aparentemente permanente. Nada é tão bonito que não possa desandar.
Uma proposta de diálogo. Um convite à paz.
Uma onda depois da outra, do mar de gente inconsciente. Um oceano de lágrimas.
Uma visão escura e um beco sem saída.
Nos livros, a promessa esquecida. Sejam contos de fadas ou contos da vida humana, da nossa vida. Um bando de macacos entediados. Ansiosos. Abandonados por si mesmos há muito tempo.

Eu? Eu sigo. Aos trancos e barrancos. Não trago novidades nem remédios. Nem lucidez.
Trago o desprezo por gente idiota. Trago minha angústia de sobreviver com medo. É o que trago sobre viver. Trago mais sobre a morte, um prego de cada vez. De marcas diferentes.
A decepção da regressão. Andar pra trás.
Parecem poucos, muito poucos. Eu mesma não me vejo como um bom exemplo.
Mas querem espelhar divindades. Nos espelhos portáteis. Inteligentes.
E onde paramos?
Em muros altos, cercas e sistemas de monitoramento?
Na desconfiança. No trabalho.
Nem grandes, nem importantes.
Mas é aquilo né? É sempre o potencial.
Sempre na esperança. No quase.
Na falta. Na miséria.
Na ignorância.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cadê

Na vitrola tocaria aquele clássico:
"Cadê você, que nunca mais apareceu aqui?
E não voltou pra me fazer sorrir"
Cadê criador, criou e se mandou? Cadê, perverso, que tem gente apanhando sem provocar.
Cadê plateia de peleia dos pobres, cadê o bastião da esperança?
"Nunca mais apareceu" é otimismo. Jamais apareceu. Nem poderia, não possui essa capacidade. É o guardião invisível; logo, não é capaz de aparecer.
"Cresça e apareça" – não cresce.
E guarda o quê? Deus me livre e guarde de você
Guardião da mesmice, da neutralidade obtida pela soma de todas as malevolências às infinitas bondades. Protetor do tanto faz, garantidor do fiz o que pude, mantenedor das apenas promessas de paz.
Ai, a pombinha branca do espírito santo, ai de mim!

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Números

Um a mais. Um a menos.

Lembro do meu tempo de escola às vezes. Contar com palitos, historinhas matemáticas. Versos sem valor pra dar sentido a um número qualquer. Histórias da carochinha. Numerozinho. Todo inho é ruim, de fato.

Depois aparecem em bancos, aparelhos, planilhas e em apresentações de empreendedorismo de palco.
É bonito porque tu coloca os dados, mostra as cifras. O Jornal do Almoço adora, assim como a cidade alerta, aí vem o criança esperança pedindo doações. Pessoal ajuda. Vai que dessa vez o didi consegue comprar um iate. Pois, como diria o Clóvis, quando não dá criança amor, criança plena, sobra criança esperança mesmo. Na falta, na miséria e no abandono. Pobreza já é atração turística.

Bota na planilha do futuro do calçado. Calcula as projeções. As metas. Imprime tudo em papel. Tal é a importância. Ano que vem tem que sair mais que no anterior. Azar da criança esperança, já que tudo que sobrou foi morrer trabalhando numa esteira. Pagando bem, que mal tem?
Ninguém mandou não se esforçar.

Nessas horas acendo um cigarro. Lembro que também quero que meus números vão bem. Em notas. Em salário. Em conta. Trago.
É inevitável a comparação com tudo que é necessário para manter isso assim. E a conta não fecha.
É proposital que ela não feche. A conta fecha no terceiro ou quarto passo para o sucesso, ou será no primeiro? Não sei dizer. Parei de ler conto de fadas depois que cresci.
No meu conto não parece ter final feliz. Eu também não sou uma fada.

Afinal são só números não é mesmo?
Na historinha matemática eles precisam de um conto pra fazer sentido. Por si sós, são só símbolos.
Ver sangue todo dia acho que me deixou meio entorpecida. De modo que dificilmente paro pra pensar neles.
De qualquer forma, eu tenho trabalhado até me acabar. Mal sobra tempo de fumar.
Até já devo ter pego a novidade. Sem sintomas. A máscara não adianta muito. O que teria adiantado seria um pouco mais de lucidez em tempos de decisão e também a ironia máxima: levar os números um pouco mais a sério.
É quando eu lembro que são mais de cem mil mortos.
Como números, são só símbolos.
Mas a historinha...
Ainda me assusta.