quinta-feira, 23 de abril de 2020

Em Bora

Quando os dias e os meses se parecem com o borrão da passagem de um automóvel de competição, o tempo é só uma referência imprecisa: uma nuvem em alto mar, indicando o lado de lá;
Quando um grito se torna inevitável, mas ainda assim não sai, a diferença entre pensar e sentir é saber dizer qual dos dois te mantém acordado à noite;
Quando a esperança é indistinguível da simples vontade de mudar de ares;
Quando a fome é uma opção;
Quando tu acorda depois de uma longa viagem e não sabe desde quando está dormindo sentado, de olhos fechados em frente à janela;

Só aí há de saber que chegou, enfim.

Nova língua

Um novo dia se descortina, dentro das paredes de cavernas, dentro das telas apagadas. Entre quatro paredes, também. Faço o meu caminho de sempre, sem por quês, sem mais saber.
No caminho vejo uma placa que diz pra ter cuidado com a escola. Não sei mais o que isso significa.
Ainda mais na era da apologia à ignorância e à burrice.
Respiro ofegante, dentro da máscara. Minha segunda máscara. Às vezes sinto falta de ar. Ar pra respirar. Ar tranquilo.
Mas carrego uma culpa permanente, uma sentença silenciosa. Mais que uma frase. Um artigo todo.
A patrulha está por aí, atenta e alerta. Pronta pra dar a decisão final. Um destacamento da marcha infernal. Um dos muitos pelotões. A operação é especial, sempre foi. Composta pelos muitos heróis consagrados.

Eu resistirei, criminosa que sou, corrupta que sou. Corrupta até o cerne. Eu não só gosto da desobediência, eu a adoro! Sou tudo o que há de ruim e seguirei sendo tudo o que me afasta da boa cidadania. Eu odeio virtude e desprezo os bons costumes.

Se eu soubesse naquele tempo, o quão sortuda eu era. Aliás, eu sabia.
Naquele tempo de criminalidade, de quebra de leis. De muitos pecados.
Eu faria tudo igual novamente, eu sei. Talvez melhor, agora.
Mas agora não há mais tempo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Isso que é vida!

Martelando até os pregos sumirem de vista
uma construção que não tem onde terminar
Aumentando o brilho da tela para se sentir mais vivo
Segurando as cartas, na espera pela hora de pifar
Epifanar

É grande a sorte de notar a falta de algo quando ainda se pode ter de volta
Um dia, eu vou poder brincar lá fora
Foi isso que eles disseram

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Picumã

Abrir uma porta de armário, uma música bacana tocando por perto.
Não existe uma fórmula para despertar lembranças inesperadas. Simplesmente acontece. Um ato cotidiano, num prisma mental que te lembra de algo bom que aconteceu há oito ou doze anos. O mais estranho é nem saber qual foi a memória. Só a sensação, sabe?
Parar pra pensar não ajuda, não esclarece.
É como uma pequena lembrança que se desprende, como um picumã voando da fogueira.
Uma aranha que não lembra das teias que teceu.

Obstáculos

Vivemos como animais migratórios em climas mutantes. Tipo cada macaco no seu galho e depois no outro e no outro. Ah, se eu pudesse oferecer raios de sol para todos. Como uma luz de lucidez que reduz a desigualdade.
Vamos vender as bugigangas? Morar juntos? O que tanto me impede?
Acho que tem muito muleque. Pouco homem. Pouco humanos. Porco humano.
Cada vez mais tenho a impressão de que a natureza do relacionamento é abusiva. Você precisa saber o quanto está disposta a aceitar e achar alguém que lhe faça rir. Achar alguém pra brincar de esconde-esconde nas cascatas. É. Bem como duas crianças mesmo.
Até hoje não vi ninguém com uma balança equilibrada. Sempre vai pender pra um lado. E daí tem os joguinhos. E daí tem as mentiras. E daí tem as maquiagens. E daí eu grito: odeio falsidade! Desejando um semblante de toxinas e seios de silicone. Não, obrigado.
Mas a mão mecânica não faz carinho, não. Eu também não faço questão.
Eu sei que pra muita gente dá medo.
Tenho medo da marcha infernal, que todo dia se põe a movimentar, que precisa gritar pra ter razão.
A cada dia cresce e consegue novos recrutas. Todos patriotas que odeiam tudo que vem do país, veneram o norte e repudiam o oriente.
O machão que precisa se afirmar como o rei do campinho, se perdendo no caminho, acha necessário reduzir sua parceira à um mero manequim de tira-bota roupas do seu agrado e de preferência que ela o aceite semi-deus de bom grado.
Por que quer uma mulher, já que nada que ela é, lhe agrada? Em cima de quatro rodas, segura a broxada.
Às vezes não tem como saber, só quando começa a ficar tarde. E tarde se vai.
Ao menor sinal, dou risada na cara. Deboche mesmo. Tenho sorte de nunca ter levado uma bofetada.
Tem vezes que acho que queria, só pra ter um motivo, só pra ter revide.
Ia ser engraçado. Aparecer no hospital com olho roxo.
Nossa Júlia! O que aconteceu? Te bateram?
Não, briguei.
Sorrindo, como diria aquela moça curiosa, com meus dentes bonitos.
Uma boca cheia deles.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Camelo

Queria poder dizer que trago boas novas. A ciência salvando os incrédulos.
Só o que trago é um cigarro; sopro de volta, um fio de fumaça para cada instante restante nessa pausa.
Quando chove, há poucas opções, pouco lugar pra fumar. Não vou muito longe.
Mas tem muita gente lá dentro que vai menos longe ainda.
Que desagradável seria saber quando é a última vez que se vai passar por uma porta.
Acho que por isso a esperança é algo tão valorizado em geral, mesmo que não adiante de nada.
Quem entra não se permite pensar que não vai sair. Até sai, mas às vezes não é por conta própria.
É engraçado, porque parece que todo mundo vem parar no hospital por uma fatalidade, um acaso pelo qual não se pode culpar.
Mas a maioria vem por causa das escolhas que fez, e fez porque quis, achando que não ia dar em nada. Nunca dá em nada, é só com os outros. Até porque é muito fácil tomar uma decisão sem saber quais serão as consequências. Não é como decidir qual paciente vai poder respirar e qual vai ter que morrer em agonia.
Isso a gente decide. Depois de todas as cagadas, alguém tem que arcar. Família, escola, governo, saúde pública.
Trago.
Restam alguns segundos.
Fico olhando eles passar, tentando esticá-los.
Passou.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Em Gana

Teve aquele senhor, seu Carlos. Estava disposto a ir longe, muito além dos seus colegas, ou da sociedade no geral, e por tabela, muito além da própria razão também. Era paciente do Rogério. Haja paciência eu diria, eu tinha era raiva. Mas ele não é o único. Já me comovi com histórias de final de vida, de arrependimento por ter vivido em vão. É o que mais acontece.
Mas quando a vida é em vão, tudo o que resta é a ignorância. Como se fosse um porto seguro, desses de navios mesmo, que navegam no mar revolto das finanças internacionais. Uma eterna ilusão. Depois eles vêm aqui no hospital encher o saco, em busca de remédio. Quando preciso dar injeção na bunda eu meio que me divirto. É o troco.
Pega esse remédio e enfia no rabo
Pois é, literalmente, o que faço neles.
Às vezes eu queria que fosse aqueles hospitais de 1910 ou por aí. Pra poder fumar lá dentro. Soprar na cara de alguns.
Porque não foi procurar teu deus? Ou teu banco? Ou os empreendedores de palco?
Porque não foi atrás das certezas infalíveis, dos cinco passos para o sucesso?
Agora quer que os filhos tenham piedade, que não abandonem. Assim como fizera, por causa de dinheiro. Por causa da saúde da economia.
A vida inteira tratou tudo como números, como recurso. Espera ser tratado com humanidade.

Com o tempo enche o saco, sabe? A gente vê tanta coisa, tanta merda. E fede. E não é o ralo. É um pouco mais abaixo. Isso quando não se tem que aturar olhares nojentos. Mas acho que fico com o nojo do que com a raiva. As situações de raiva incomodam bem mais.
Dá vontade de agredir.
Dá vontade de ir embora também. Ir pro meu apartamento, entrar no chuveiro de roupa, tentar responder a velha pergunta.
Confesso que também tenho medo. Tempos estranhos esses.
Me recuso a ser uma tola.
Mesmo por vezes vivendo um engano.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Acho que li em algum lugar alguém falar sobre a burrice ser uma tragédia.
Pra mim não há tragédia maior do que envelhecer e ficar burro, ou continuar burro. Não sei qual das duas é pior. Perder alguém que era inteligente e ficou burro é uma lástima muito grande.
A minha vida inteira eu estou tentando não ser tola. Muitas vezes eu falho. Eu sei que é difícil, a burrice é um convite perpétuo, do acaso, da rotina ou mesmo do entretenimento.
Sei também que existem muitos estímulos à burrice. Principalmente a coletiva.
Há um certo orgulho em algumas pessoas de auto afirmar a própria ignorância. Eu confesso que não sei de onde vem esse masoquismo. Não que fizesse muita diferença eu saber... Não haveria cura que eu pudesse oferecer, além de uma boa baforada de cigarro na cara, que é o que me dá vontade de fazer quando vejo esse tipo de coisa. Curar minha própria ferida.
Ferida cada vez mais difícil de lidar.
Às vezes causa desespero. Pra onde vamos ir quando as bombas caírem? Diria aquela música.
Aquela raiva triste e desesperada, um resumo da minha adolescência basicamente. E como fui tola!
Provavelmente ainda sou, provavelmente sou burra também e nem percebo. Sempre atrás de pergunta sem resposta. E quando fico chata sou um fardo pra quem está por perto.
A marcha infernal cada vez mais próxima. Cada vez mais altos os gritos.
Gritos para tentar estabelecer alguma razão insana, baseada em evidências fantasiosas, normalmente pseudo-científicas.
No meio disso há um certo ruído de característica onipresente. Todas as vezes que vou pegar um café no intervalo ou fumar um cigarro no terraço eu posso ouvir. Ouço porque me incomoda. Eu sei que incomoda os outros também, pois não querem falar sobre isso. Quando eu era criança eu também podia ouvir. Acho que meus pais antes de mim também ouviam. Talvez se acentuou quando eu nasci.
Na adolescência e em minha bravura rebelde, optei por enfrentá-lo, na teimosia e na tristeza.
Quando fico muito irritada ou muito aliviada e alegre, deixo de ouvi-lo por um tempo.
E agora.
Temos este tempo incerto. Como se alguma vez o tempo fizesse vezes de certeza.
A nossa incerteza de quando isso vai acabar, como se antes tivéssemos certeza do final.
Agora que não há volta, queremos de todo jeito voltar para um modo velho, caduco. Um modelo de certezas ridículas, que ornamentavam nossas prisões individuais. As gaiolas mais ricas, sempre um pouco mais bonitas, ainda assim gaiolas.
Grandes pássaros que se afirmam robustos e fortes, mas que há muito esqueceram de cantar. E ao menor movimento das circunstâncias, insistem em voltar para suas gaiolas frias e vazias. Substituem o canto pelo grito aos bandos. E se põem a brigar.
Parem de ser burros.

E então, meu amigo

Como é visitar a si mesmo em um museu?

Feitiço

Uma relação de consumo
Não daria para dizer parasítica,
nem predatória.
Não há caça, talvez cultivo
Pecuária
Provoco as risadas das quais me alimento;
Empanturro-me com suas gargalhadas;
Sobremesa, só às vezes: lágrimas de tanto rir.