segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Tem Gente que Gosta


Na volta do feriado, o vizinho Celson já tava com um carro diferente. O segundo só nesse ano. “Pra que isso?”, pensava Tarcísio, refletindo sobre aquele hábito de consumo. Pra nada, concluía. Era só uma forma furada de preencher algum vazio interior que tinha aquele homem, que se deixava mover por um belo carro e uma insaciável vontade de ter, possuir.
É, tem gente que é assim.
Da mesma forma que aquela guria da esquina e o namorado dela, cheios das frescuras, gurus e não sei mais o quê, seguido com conversa sobre ser vegano, sobre benefícios disso e daquilo, alimentação orgânica. Ou o filho do Celson, que cada dia andava se engalinhando com uma moça diferente, descartando uma e indo pra próxima, e se achando grandes coisa.
E aqueles velhos crentes! Com bíblia, bengalinha, levando santa na casa dos outros, fazendo questão de botar a vizinhança pra rezar. O que era isso? Uma forma de satisfazer eles mesmos, mais ninguém. Eles é que precisavam justificar a própria existência com alguma ação, agitação, preencher vazios.
Seguido falava disso enquanto tomava chimarrão na frente de casa com a patroa, a Teresa, que não concordava nem discordava, só tentava amenizar os resmungos do esposo. Mas não adiantava, era cada caso um pior que o outro, gente fazendo plástica, piá com violão sem saber tocar um acorde, e aquilo foi virando uma indignação; o Tarcísio começou a se meter na vida das pessoas, primeiro dando conselhos, depois palpite e depois quase que dando ordem.
Teve todo tipo de reação, de deboche e gente que parou de dar bom dia até bateção de boca, uma fiasqueira, e nada resolveu, nada melhorou. Mas era isso, o hábito estava criado. Tarcísio se acostumou a tentar dar um jeito na vida torta daquela gente, e o caminho era a goela.
Numa tarde de começo de primavera, o Celson lavava o carro, todo arreganhado, uma gurizada jogava bola na rua; o Tarcísio pegou na cozinha uma rosca de polvilho pra comer com o chima, daquelas bem crocantes, tinha recém comprado na padaria da outra rua. Ia voltando ao pátio, olhando o carro do vizinho, que nem bola dava pra ele; enquanto descia os degraus da varanda, nos vidros brilhantes do auto, refletiu Tarcísio; abriu a boca pra fazer algum comentário, mas em vez disso mordeu a rosca e houve um estalo: o que estava fazendo era preencher seu próprio vazio com os ecos de suas reclamações. Sentou-se, quieto, mastigou. Engoliu a rosca e todo o resto. Comentou com a mulher sobre o que tinha pensado. “Pior”, ela disse.
No dia seguinte, foi novamente à padaria; a moça serviu um suco a um carteiro e, ao ver Tarcísio, já ia pegando uma rosca de polvilho, daquelas bem crocantes, quando ele se manifestou: “Não, hoje não.”, disse. Olhou bem em volta, quase tudo parecia delicioso. Pediu pastel, pizza, torta de bolacha e na saída pegou umas paçocas, que é coisa bem boa.
Chegou em casa, não reclamou de ninguém, serviu um café pra ele e pra patroa, que comentou, antes de sorver o último gole: “É... é melhor encher a barriga da gente que o saco dos outros.”

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