Na volta do
feriado, o vizinho Celson já tava com um carro diferente. O segundo
só nesse ano. “Pra que isso?”, pensava Tarcísio, refletindo
sobre aquele hábito de consumo. Pra nada, concluía. Era só uma forma
furada de preencher algum vazio interior que tinha aquele homem, que
se deixava mover por um belo carro e uma insaciável vontade de ter,
possuir.
É,
tem gente que é assim.
Da
mesma forma que aquela guria da esquina e o namorado dela, cheios das
frescuras, gurus e não sei mais o quê, seguido com conversa sobre
ser vegano, sobre
benefícios disso e daquilo, alimentação orgânica. Ou o filho do
Celson, que cada dia andava se engalinhando com uma moça diferente,
descartando uma e indo pra próxima, e se achando grandes coisa.
E
aqueles velhos crentes! Com bíblia, bengalinha, levando santa na
casa dos outros, fazendo questão de botar a vizinhança pra rezar. O
que era isso? Uma forma de satisfazer eles mesmos, mais ninguém.
Eles é que precisavam justificar a própria existência com alguma
ação, agitação, preencher vazios.
Seguido
falava disso enquanto tomava chimarrão na frente de casa com a
patroa, a Teresa, que não concordava nem discordava, só tentava
amenizar os resmungos do esposo. Mas não adiantava, era cada caso um
pior que o outro, gente fazendo plástica, piá com violão sem saber
tocar um acorde, e aquilo foi virando uma indignação; o Tarcísio
começou a se meter na vida das pessoas, primeiro dando conselhos,
depois palpite e depois quase que dando ordem.
Teve
todo tipo de reação, de deboche e gente que parou de dar bom dia
até bateção de boca, uma fiasqueira, e nada resolveu, nada
melhorou. Mas era isso, o hábito estava criado. Tarcísio se
acostumou a tentar dar um jeito na vida torta daquela gente, e o
caminho era a goela.
Numa
tarde de começo de primavera, o Celson lavava o carro, todo
arreganhado, uma gurizada jogava bola na rua; o Tarcísio pegou na
cozinha uma rosca de polvilho pra comer com o chima, daquelas bem
crocantes, tinha recém comprado na padaria da outra rua. Ia voltando
ao pátio, olhando o carro do vizinho, que nem bola dava pra ele;
enquanto descia os degraus da varanda, nos vidros brilhantes do auto,
refletiu Tarcísio; abriu a boca pra fazer algum comentário, mas em
vez disso mordeu a rosca e houve um estalo: o que estava fazendo era
preencher seu próprio vazio com os ecos de suas reclamações.
Sentou-se, quieto, mastigou. Engoliu a rosca e todo o resto. Comentou
com a mulher sobre o que tinha pensado. “Pior”, ela disse.
No
dia seguinte, foi novamente à padaria; a moça serviu um suco a um
carteiro e, ao ver Tarcísio, já ia pegando uma rosca de polvilho,
daquelas bem crocantes, quando ele se manifestou: “Não, hoje
não.”, disse. Olhou bem em volta, quase tudo parecia delicioso.
Pediu pastel, pizza, torta de bolacha e na saída pegou umas paçocas,
que é coisa bem boa.
Chegou
em casa, não reclamou de ninguém, serviu um café pra ele e pra
patroa, que comentou, antes de sorver o último gole: “É...
é melhor encher a barriga da gente que o saco dos outros.”
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