sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Ainda não

Pitava. Como de costume.
Hábito. Difícil de mudar. Mais difícil ainda, querer mudar. Não queria.
Por isso pitava.
Pitava sob um céu avermelhado, sabor baunilha. Como eu gosto desse horário, pensava eu. Quase sete.
A rua merecia aquelas chuvas para lavar a imundície como sempre. Imundície invisível. Visível apenas para quem olha e vê. Bastante raro no meu caso, mas a frequência aumentava eu acho.
Moça, tem um pito? Um senhor. Um gari. Um agente invisível se pondo visível na minha frente. Tão visível quanto a sua aparente reação tímida e envergonhada quando eu me virei. Devo parecer aquelas que andam com o nariz empinado como se cheirassem carne podre. Ou sei lá. Achei estranho ele ter me chamado, normalmente essas pessoas evitam falar com as outras, por uma boa razão.
Esbocei um meio sorriso, estendendo a pata do camelo azul para fora da carteira, para que compartilhássemos uma fumaça tóxica empolgante. Ninguém pode recusar um pedido de cigarro. Era a regra.
Fogo? Disse , já acendendo.
Ficamos parados, eu olhando pra ele e ele olhando pro vazio.
Pra mim uma conversa interessante sempre começa com o silêncio. Porque as gentes que eram desprezadas pelos cidadãos de bem, desenvolviam outro tipo de sintonia.
Mas é verdade que somos todos parte do lixo que ele juntava todo dia.
Raça humana tão querida.
Enquanto eu tirava aos poucos sua máscara invisível, ele tirava a minha máscara de cidadã da grande cidade, da cidade que não pára, para que enfim pudéssemos conversar. Numa boa. Como deveria ser sempre.

Nunca fumei um camêu azul.

O que eu poderia dizer? Eu, que posso escolher?
Comentei sobre a banda baseada na marca de cigarro. Falamos sobre música um bocado. Era claro que ele era do tempo do vinil, mas que nunca pôde ter. Diferente de mim que tinha e não tinha como escutar. Coisa de guria de apartamento. Foi quando ele riu pela primeira vez na conversa. E eu também.
Era como uma bolha se formando no meio daquele movimento apressado de gentes apressadas, às pressas.
Sem pensar, joguei a bituca no chão, uma ação automática da qual me envergonho. Quando ele fez menção de recolher, me senti o pior verme da face do planeta. Segurei o seu braço e disse não, que eu deveria pedir perdão. Pura idiotice. Eu disse.
Disse também que ele provavelmente estava acostumado com pessoas idiotas como eu.
Ele murmurou alguma coisa e apoiou a vassoura com pazinha no carrinho.
Acendemos mais um cigarro cada um. Dificilmente uma conversa minha dura mais que isso, mas era incrível o quanto se podia aprender com as pessoas invisíveis, ou melhor, era invisível o quanto se podia aprender com pessoas incríveis.
Me envergonhava não ter nada para ensinar.
É. Eu com minha boca cheia de dentes bem escovados, minha roupa lavada e uma posição de certa forma privilegiada. Sempre que pensei ter certeza sobre coisas, estava eu muito enganada.
A vida era dura, segundo o seu relato. E eu acreditava. Imaginava.
Problemas na família, irmão preso. Problemas na rotina, o ódio do dia a dia não deixa ninguém escapar ileso.
Era esse tipo de gente que meu tio tanto desprezava. Me incomodava demais tudo isso, ali naqueles momentos. Tentei dizer o quanto era importante o seu trabalho e que independente da situação no momento, a vida seguia:
Tenho que ir.
Eu não conseguia dizer mais nada. Alguma coisa me impedia.
Coloquei a minha carteira de cigarro, com sete camelos ainda, no bolso do uniforme dele e dei um abraço.
Não era muito, mas era o que eu podia oferecer.

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