terça-feira, 21 de agosto de 2012

Bom dia e boa ida

Pisquei três vezes os olhos, com força e vagar. Foi de pouca ajuda. Acho que era fumaça, ou algo parecido, que me estava turvando a visão.
Bati três vezes na madeira da porta incógnita pela qual passei. Foi de pouca ajuda. Depois dela havia um corredor e o anúncio de novas provações deixou-me ansioso.
Quis pôr fé no sinal da cruz, mas ele não estava ali pra me lumiar as ideias. Aliás, de que adiantaria apelar para o mesmo biltre que supostamente me atirou aqui, sem nem um "te cuida"? Era melhor abdicar da prática comum e não acreditar nesta esperança. Confesso que até não achava estranho tantos outros acreditando na existência de um vigilante universal, sentado num trono metafísico. Achava estranho as pessoas terem certeza disso. Algo tão inquestionável não pode ser verdade, penso.
Assim, cruzado o portal em solidão, me encontrava por pouco prestes a descobrir os domínios daquele novo universo;
"Bom dia", me disse um guarda armadurado e inexpressivo do outro lado, e continuou contando o tempo.
"Bom dia, como está?", perguntei.
"Quase lá", me respondeu, e alguma coisa no seu olhar me fez esquecer qualquer rima conhecida. Sua voz drenava a inspiração do meu espírito, deixando-me desanimado para as coisas belas que podia encontrar por ali. Falávamos a mesma língua, mas não das mesmas coisas. Deixei-o lá com sua contagem e segui, na única direção que julgava poder fornecer-me um propósito.
Encontrei restos de pêras, algumas ainda vivas, outras levadas a ruína por algum apetite inevitável; também Cadillac's, velhos, abandonados, uns poucos lustrosos e próprios para uso; e Godofredo, que parecia estar sempre no mesmo caminho que eu. Aproximei-me, por acaso, dele, que continuou a me ignorar, pois enquanto avançava travava um interessante diálogo (talvez devesse dizer monólogo, ou ainda uma palestra!) com um simplório espelho de moça que segurava pelo cabo. Estava prestes a convencer alguém sobre como fora maravilhoso chegar ao lugar onde estava e sobre como cada vez mais fortunas esperavam por ser descobertas nas milhas a serem seguidas. Os contra-argumentos eram silenciosos, porém instigantes. Alarguei alguns passos para afastar-me do bizonho, mas... aquele espelho parecia ter algo a me contar.
Assim, estava eu com os mesmos agouros de antes, não tão maus quanto cansativos; porém eis que, ao que o cansaço se me abatia, percebi estar me aproximando de alguma tenda atraente. E, excluindo-se os pigmeus, agricultores e advogados encontrados aqui e ali, fazendo pouco e criando caso, parecia que uma presença capaz de apaziguar minha solidão ali existia.
Uma fêmea, de porte esguio e ares convidativos, ante a entrada para aquela acomodação. E não me parecia estranha...
Eram cornos em sua testa ou... chegando mais perto, esta impressão foi desfeita. Que presença agradável! Longos cabelos, gestos delicados; ali havia uma explicação para minha jornada! Senti alguma jovialidade se regenerar em minhas vistas.
Andei até a tenda, guiado por um sorriso receptivo seguido de um suave "Olá!", que respondi com um parvo olhar caricato de alegria.
Um véu desfez-se à minha frente e lá dentro minha existência soava mais pacífica. Incenso de maçã verde e uma harpa me acolheram num abraço de prazeres.
Adentrara um paraíso esverdeado, pintado de flores e uma palmeira. Fui seguido a dois passos pela fêmea que me recebera. Sentei-me num sofá sem pés, ficando confortável em instante, e logo excitei-me ao toque daquelas mãos quentes em meu rosto. Também ela descia para acomodar-se naquele leito tão maravilhoso e dar vazão a todas as ânsias que espernearam em mim. Ao que anunciavam-se calores ainda maiores, a fêmea ergue-se e recua como que em repulsa pela última nota lamentada pela harpa antes de silenciar.
"Já ficaste aqui por demais", disse e correu para fora, levando consigo as cortinas, a tenda e o perfume que fora cúmplice da minha hipnose.
Quando voltei a mim, vi Godofredo a cinquenta passos de mim, abrindo uma nova porta, tão sem gosto quanto a anterior; o espelho debaixo do braço, em acordo com os efusivos argumentos, o acompanhava ao responder a um bom dia para alguém do outro lado da parede cinzenta que eu só agora percebia.
"Eu dissera: quase lá!", o desgraçado guarda me recordou, ao se aproximar. E eu sabia que seria assim.
Uma nuvem de fumaça despencava em torno de mim, e minha visão era turva. Pisquei os olhos três vezes, antes de seguir até a porta de madeira, que já estava aberta.
Quase fiz o sinal da cruz antes de passar por ela e dar bom dia ao outro guarda.
"Falta muito?", perguntei.
"Bastante", me respondeu.
Acenei-lhe um adeus com a cabeça e corri em frente.

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