sexta-feira, 27 de março de 2020

Ensaio sobre o retorno à normalidade

Acordo normalmente olhando pra minha prateleira em cima da cama, que imita o dizer de alguém, mas ao invés de dizer normalmente, acordo pensando sozinha. O meu espelho me diz que todo mundo mente, sem exceções, em uma escrita estrangeira feita com batom, não sei o que eu tava pensando aquela vez quando fiz, mas o tempo vai dar cabo dela em breve. Sempre que vou me maquiar, pra esconder as feiúras e as imperfeições, o espelho me lembra disso. Até durar o batom. Me sinto uma espécie de animal de laboratório. Uma rata, correndo. Girando, no mesmo lugar.
Sinto uma raiva triste, um lamento em forma de grito silencioso que parece que sai do all star e vem até as pontas rosas do meu cabelo. Às vezes sai pela boca como um hálito ruim, incomodando quem está ao redor.
Os caras que me acham interessante provavelmente é por algum aspecto físico, talvez as garotas também. Não tenho preconceito quanto a isso. Pelo menos com as mulheres não se sente aquela apreensão, sem saber se a pessoa vai fazer alguma merda contigo ou falar merda, ou assediar. No início era mais medo, depois passou a ser raiva. Primeiro daquele meu parente que tenho a impressão que me assediava na infância. Quem diria? Acontece mais dentro da própria família. Na inocência da criança. Na corrida pra satisfazer o próprio umbigo. Nada é impossível.
Dia após dia. A velha pergunta. Tento evitar sempre que dá. É como fingir fugir da própria sombra.
Uma eterna agonia. Até quando o corpo aguentar.
Mas não era isso que ele queria? Disse para aqueles dois no hospital, um cara e uma guria. Não era o meu melhor dia. Ele tinha tentado se matar e ela, desesperada, atrás de mim para ajudar. Meu crime perfeito. Ninguém ia me processar.
Afinal, sou uma heroína, que salva vidas. Sempre trabalhando em conjunto dos outros heróis, os que tentam matar. O pessoal que geralmente usa um espelho avantajado pra se arrumar. Quando olham só vêem virtudes. A razão que nunca falha. O cidadão de bem.

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