terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Entre sorrisos e máscaras

Eu já havia gostado da sensação de ajudar.
Um brilho misterioso que vai pulando, achando vários e diferentes lares em vários rostos, ou máscaras. A sensação até era boa, não nego.
Acontece que a repetição e o costume dão nascimento ao enfado. Ver sangue não era um problema pra mim, nunca foi. Não falo apenas do líquido vermelho que dá sustentação para a vida.
Um plantão depois do outro e tu nem se importa mais. Uma vida a mais ou a menos. Afim de se perguntar: Há fim?
Eu quase me arrependia de ter trocado o plantão de sexta com a Aline. A sexta feira, a feira santa, dos artigos raros e de celebridades falidas, produzidas. Onde se troca uma vida inteira de esperas por um momento ínfimo, impermanente, de alegria líquida e sem sentido. Da mesma forma que era irônico que eu gostasse da Aline, era irônico que eu também precisava desse momento de alegria líquida. No entanto eu sempre pensei que me diferenciava de alguns tantos de pessoas, por perceber que isso era uma roubada. Como dizia um amigo meu distante, não basta saber.
Era de se estranhar uma correria relativamente cedo da noite, pouco depois do início dos trabalhos do pessoal de folga, afogando tristezas nas mesas de bar. Mas aqui em Porto Alegre não era estranho. Falta de segurança pública, problema do qual desde que me conheço por gente as pessoas clamam e reclamam.
Mas naquela noite era um rapaz um pouco mais bem ajeitado, desses que deixam os pais em casa em preocupação enquanto que ele sai com o carro para a noite.
Mais novo que eu, com um buraco no ombro. Certamente um disparo.
Com ele vinha uma guria um tanto esquisita, tanto quanto imaginar em uma cena aqueles dois juntos.
Não que eu goste do sofrimento alheio, mas chegava a ser engraçado, parecia mãe drogada com um bebê de rosto sofrível como se nunca houvesse solução para nada.
Limitei-me a rir brevemente por dentro para em seguida me portar como manda os bons costumes e a direção geral do hospital. O que aconteceu?
Já me preparando para dar o devido atendimento. Aquela cara de lunática, cabelos cacheados bagunçados, me encarando enquanto eu pensava em perguntar de novo, caso ela estivesse viajando.
Baleado. Assalto. Perto do Opinião.
Não é o primeiro, não vai ser o último. Chamei o Paulo e o Quevedo para darmos o encaminhamento na sala de emergência.
Marcos Silva teria sido mais um nome nas manchetes ou nem isso. Provavelmente seria, ele não parecia da periferia para ser tratado apenas como mais um número.
Agora remendado e em observação.
Ou salvação, caso passassem aquelas senhoras que eu tanto odiava pra ficar rezando ou pedindo pra deus cuidar dos feridos. Bastava me pedir ajuda, e nem isso, pois já faço isso de rotina, sem que ninguém precise me pedir, é o meu trabalho. Mas acho que é melhor pedir ajuda pra um super-homem-deus-macho que não existe do que pra uma reles-simples-mortal guria-moça-mulher que está ali do teu lado. E ainda há quem diga que eu preciso respeitar a alheia, ainda que o respeito não seja recíproco. Eis aí uma das razões pelas quais os dias vão ficando cinzentos.
Vi na sala de espera aquela moça que tinha vindo com o rapaz ferido. Ela parecia alguém legal, se não legal, pelo menos autêntica. Ou era uma máscara nova que eu ainda não tinha visto. Interessante, portanto.
Parecia estar tendo um dia daqueles, aparente cabeça cheia e latejante.
Ofereci uma aspirina e recebi um sorriso. Daqueles que te deixam na obrigação de imitar.
E o meu sorriso ainda era uma imitação, era só pra dar sustento aos bons costumes, sustentar a máscara de cirurgias plásticas morais e implantes de felicidade.
Tipo a máscara do cara do comercial.
Eu não poderia mostrar o buraco atrás da máscara para qualquer um.

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