quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Arlindo não olhou para os dois lados

"Preciso muito do banheiro", pensou Arlindo na volta da padaria. Neste dia, trazia consigo umas roscas, uma grande quantia de pão e uma imensa fome.
Ouviu a si mesmo dizendo isto e olhou em volta, a fim de certificar-se de que ninguém mais o tivesse ouvido. Atravessou a ladeira em frente a praça cujo chafariz estava desligado há dias, e fez isso olhando apenas para um lado. Compras na mão, caminhou pela calçada, pátio e varanda até a porta de sua casa. Tirou a chave do bolso da calça jeans preta e velha, abriu a porta, tomando cuidado para derrubar nada, e fechou sua passagem com uma bundada.
Levou as sacolas até a mesa da cozinha e as deixou lá, sem abri-las. Foi até o banheiro, lavou o rosto, as mãos, os olhos; secou as mãos e o rosto; masturbou-se formalmente, deixando a porra cair no vaso e deu descarga. Lavou novamente as mãos, agora com mais dedicação. Ligou o rádio da sala, que seguiu a reprodução de um disco da Joan Baez.
Foi até a cozinha, serviu a si um copo de leite e levou o pacote de roscas fritas de polvilho até o sofá. Comeu uma delas e gostou muito. Tomou um gole do leite e juntou o jornal, abrindo-o na página dos esportes. Não era isso que queria. Também o obituário não lhe reportava qualquer vingança. Seguiu, passando sem rir pelos quadrinhos, até a parte que anunciava as novidades no teatro, cinema, e outros lugares aos quais não iria. Bastante coisa boa, percebeu.
Comeu outra rosquinha, enquanto olhava o relógio de parede. Quase seis horas.
Desligou o rádio, ligou a televisão, devolveu o jornal a algum canto. Assitiu um seriado estúpido de grande sucesso, comendo as outras três roscas enquanto encarava a tela, calado, coçando o saco de vez em quando; saracoteando entre os canais durante os intervalos comeciais.
Continuou calado pelo resto da noite; depois de tomar seu leite e comer dois sanduíches, depois de tomar um banho quente. Continuou calado enquanto assistia o gol marcado pelo Paulo Polícia, enquanto via uma reportagem sobre a fome lá longe, e até mesmo quando o sinal da tevê sumiu por um tempo.
Estava calmo, como costumava estar ultimamente. Calmamente vestiu-se para ir trabalhar, quando chegou a hora certa. Partiria em boa forma e sem atrasos, como de costume.
Tudo corria bem, até que nada aconteceu.

2 comentários:

  1. Bah... Saudades do Paulo Polícia...Grande boleiro!

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    1. Bons tempos em que o futebol era praticado por quem tinha amor à bola!

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