terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O Cavalheiro das Cartas


Havia algo de doce na caixa de correio fincada no gramado da casa sem cerca em frente a padaria. As vezes, Sílvio chegava ali sem perceber para onde estava indo. De repente, mão abrindo a bolsa, notava a caixa vermelha, as velhas letras garrafais anunciando precariamente a utilidade daquela estrutura de metal, e sorria, ansiando bem de leve pelo momento de abri-la e ouvir o rangido que sempre acompanhava este momento. Parou em frente a ela e, supreso com algum sentimento de frustração, notou que nada havia para entregar ali, desta vez.
- Hm...
Há tempos que isto não acontecia. Pensando, agora, percebeu que tinha alguma correspondência para aquela casa todo dia e era isso que lhe dava aquela sensação doce de chegar ali. Ora, para um homem que vagueia tanto por ruas e casinhas indistintas é natural sentir certo regozijo em rever um lugar do qual se lembra de outras manhãs; aquele C, intacto em meio as outras letras quase completamente comidas pela ferrugem, lhe acolhia com um calor inesperado.
Ainda estava parado em frente a caixa, esperando algum motivo para abri-la, e seu pensamento caminhava numa direção que ainda não havia seguido: o quão inusitado era, nos dias de hoje, uma pessoa receber correspondências todos os dias! E, não que ficasse bisbilhotando, mas acabara notando que não eram as tradicionais cobranças e propagandas, porém cartas escritas por pessoas, pessoas que queriam se comunicar com alguém que morava naquela casa branca em frente a padaria. Não com um alguém; sabia muito bem como ela se chamava, afinal, as vezes depositava os envelopes com o destinatário virado para cima e, sem querer aqui, nem ali, acabara adivinhando o nome do ser vivente: Leila, como a moça de quem gostara no colégio e que foi morar no Alagoas, onde concluiu o segundo grau.
De qualquer forma, comunicar-se por carta é um hábito louvável, de singela beleza, acreditava Sílvio, otimista; ele, que pegava tantas cartas nas mãos, nenhuma para si. Ele, Sílvio, carteiro há 4 anos, nunca recebera um obrigado por entregar a correspondência tão bem entregue. Não costumava pensar nisso, nem esperar que lhe agradecessem, mas... ele agradecia a moça da padaria, quando ela lhe alcançava um copo de suco de goiaba ou uma taça de café com leite sem açúcar!
“Sou um agente invisível”, pensou. “Não um profeta, mas um carteiro. Os outros falam através de mim, mas eu não sei o que dizem, e o narigudo do telejornal transmite as notícias mas ele também as escuta e eu, eu não sei de nada, eu conheço a carta pelo lado de fora, se é verdade ou mentira eu não sei, não sei dizer, sei que ela não estaria ali sem mim, alguém tinha que entregar, trazer até onde deve chegar e sou eu que faço isso, sou eu, o Sílvio, aquele que entrega cartas pra viver, não por gosto nem por esporte, nem pelo benefício da caminhada e de uma vida bem arejada, sou o Sílvio que entrega as cartas pra ganhar uns trocos e sobreviver, pra estar vivo amanhã e depois e entregar outras cartas, e depois ter mais pra entregar, porque enquanto eu entrego, alguém escreve, cada um com seu papel, eu entrego mas não leio nem escrevo nem recebo, eu pego ali e levo pra lá, é isso que eu faço, é a entrega da correspondência, pra me entregarem um salário que eu entrego no caixa do mercado, na farmácia, no consultório, na borracharia, no raio que o parta, em qualquer merda de lugar que me ajuda a sobreviver mais um outro dia, um outro dia no qual eu vou entregar uma outra carta, um pacote, qualquer porcaria, na casa de algum incauto que não vai me dar bom dia, que não vai saber que sou o Sílvio, só o carteiro, isso eles sabem, porque eu me visto declaradamente como isso, pra representar o papel que eu aceitei, por ser um agente invisível da comunicação antiquada, no charmoso hábito de mandar uma porra duma carta dum lado pro outro, pro paspalho aqui entregar, o Sílvio, que não tem nada a ver com o que eu quero dizer pra alguém que ele não sabe quem é, porque ele só conhece a caixa de correio e nunca vai bater nem na porta da casa onde ele vai entregar cada uma das cartas que ele tem naquela bolsa feia e pesada que ele tem que carregar pra lá e pra cá, esperando o dia acabar pra se preparar pro próximo, onde ele vai fazer o mesmo que fez no anterior” e nisso abriu, com raiva, a tampa da caixa do correio da casa de madeira em frente a padaria, só para ouvir de novo aquele barulho e detestar as vezes em que gostou de ouvi-lo.
Preso à tampa, um pedaço de folha de caderno trazia uma mensagem escrita em caneta azul;
Dizia “Obrigado”, e ao lado dela estava uma carinha sorridente desenhada.
Puxou o bilhete, tirou-o da caixa, enquanto desfazia a carranca. Guardou-o no bolso de trás da calça, enquanto começava a sorrir. Pegou de volta, rasgou em dois e guardou de volta a parte maior, onde estava escrito o agradecimento. Tirou a caneta do bolso da camisa, escreveu “De nada” na outra parte da folha e colocou-a de volta na caixa de correio. Baixou a tampa, voltou-se, caminhou e seguiu descendo a rua pela calçada, procurando o próximo endereço.
Havia algo de doce naquela caixa de correio.

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