segunda-feira, 7 de maio de 2012

Muito além do armário das xícaras

Doce suave som da água escorrendo. A melodia mais ouvida na vida de Clotilde.
Poderia cumprir metade das suas tarefas diárias sem abrir os olhos, mas a visão é um dos meios de saborear sua rotina; Nisso, esquece do mundo que existe fora de cada copo, prato ou talher na sua pia. O som da água cessou, agora é a vez do pano.
Sensações frágeis, meramente perceptíveis, vão embora junto com as gotas d'água enxotadas da xícara decorada com corações.
Clotilde abre a porta de madeira do armário, na parte onde guarda as xícaras, e coloca a primeira lá dentro. Quando percebe que esta era a única que havia lavado, recua dois passos para fechar aquela porta, antes de começar a secar os copos.
"Ué!", lhe escapa ao olhar lá pra dentro. A porta que deixou aberta, na verdade, abriga incontáveis copos.
O marido não está em casa, senão lhe perguntaria se mexeu por ali. Improvável, pois a cozinha era, a ele, um local quase que estranho.
Pensa que deve ter se confundido, e abre a porta onde lembrava guardar os copos, apenas para checar.
Panelas! Mas... só pode ser alguma traquinagem! Coisa de... Bom, seus filhos nem moram mais com ela, e esse é o tipo de brincadeira que talvez fizessem há nove, doze anos.
Um leve aperto no peito.
Joga o pano na pia, mirando pra errar a parte molhada, e começa abrir as outras portas, e até as gavetas.
No lugar das panelas, lá estão travessas, bandejas e até tábuas de carne.
"O caos", pensa Clotilde. "Que horror!", murmura ao perceber que as facas e os garfos também foram trocados.
Mas resta alguma esperança - as colheres estão no lugar onde as esperava encontrar. "Ah não!", agora percebe que os cabos são azuis, em vez do esperado amarelo claro.
Sem saber o que fazer, sai da cozinha, resolve ir até a sala, pegar o telone pra ligar pro marido. Na saída, percebe que o armário da cozinha sequer parece aquele que ganhou da tia Maristela no casamento, tantos anos atrás.
"Crédo, tô ficando louca!", e o corredor até a sala tem um tapete horrível, o assoalho resmunga um barulho estranho.
Uma lágrima com gosto de detergente escorre até sua boca, e a sala não é a mesma! Os vasos de flores, os quadros, até a televisão, foram todos trocados. A hipótese do sonho, pesadelo passa por sua cabeça, mas como faria pra sair dele?
Subir pro quarto! Talvez lá consiga voltar pro sono tranquilo. Ao terceiro degrau da escada ela para: "O que?!", sua casa só tem um andar! Barbaridade, melhor ver o que há lá em cima.
A subida apressada é cansativa, sai ofegante por um corredor acarpetado, menos estranho do que o esperado. Parando para se recompor, olha para os pés e vê as pantufas que está usando. Vacas, bem do jeito que ela queria e nunca lembrava de comprar! Ri, ri com vontade, sentindo o alívio de quem assume não ter mais esperança.
Caminha até uma porta fechada, certamente o quarto daquela casa estranha, aquela casa de sonho, de mentira e, ao esticar a mão para a maçaneta, vê que as rugas causadas pela água ainda não se desfizeram.
Entrando no quarto, tudo é tão estranho quanto esperado. Relutante, caminha até o armário e para em frente ao espelho.
Olhando em frente, vê seus cabelos brancos, os seios caídos. Não reconhece a si mesma, vê ali uma velha senhora. Olhando mais para baixo, percebe a gravidade da situação; Na sua pressa aflita em sair da cozinha, esquecera de tirar o avental.

Um comentário:

  1. Muito bom meu caro!

    E "o assoalho resmunga um barulho estranho" é pura literatura.


    Parabéns, pois.




    Forte abraço.

    ResponderExcluir