quinta-feira, 4 de março de 2021

Não importa se eu morrer

Volto ao ponto alto do meu prédio.
Fazendo o velho passatempo noturno de observar os semáforos funcionarem sozinhos, na sombra sonora dos prédios, longe da loucura do dia a dia.
Eu e meu cinzeiro, companheiro de longa data, estático como as caveiras que o habitam. Uma delas minha, provavelmente.
Deixei a aparelhagem inteligente no apartamento. Assim dificulta a vigilância. Vigilância de toda a sorte de idiotas, desde donos de empresas até aquele cara que falou uma vez comigo e acha que é meu namorado.
É engraçado porque esse lugar aqui eu gosto bastante e já tá incluído nas tantas contas a pagar, vindo eu aqui ou não, usufruindo ou não. Eu pagaria extra pra poder vir, pagaria entrada. E ninguém mais vem aqui.
Desde criança eu tenho a impressão que ando na contramão. Não exatamente retroceder, mas andar desajeitadamente, andar errado, fazia coisas que não era pra mim fazer.
Fiz porque quis.
Minha mãe dizia que eu parecia um menino. Eu não culpo ela, ela é de outros tempos. Já meu pai foi mais compreensivo.
É sempre essa coisa, é sempre esse incômodo. Nunca estar conscientemente numa boa em absoluto.
E a mulher ainda tem um extra, por ser o que é, calculo eu.
Mas com o tempo eu tive impressão cada vez mais certa de que ninguém tá numa boa em absoluto. E aí veio a dúvida, e aí eu fiquei mais tranquila de certa forma. Deixando o meu ego falar mais alto.
Nunca entendi quem me chamou de compassiva. Claramente não me conhecem. Como poderiam? Nem eu mesma me conheço. Ou conheço, mas esqueço diariamente.
Faço o que faço porque achava que era porque gostava de ver sangue mesmo. Mas o pessoal gosta de um romance, um conto de fadas, então ninguém levou isso muito a sério. Talvez nem eu mesma. Mas as perguntas precisam de respostas não é mesmo?
Acontece que acho que o que faço não tem mais sentido. Acho que sempre foi, mas ultimamente tem sido cada vez mais, trabalhar no contra fluxo. Contrária a uma birra. Uma fagulha que perdeu o controle dentro da mente desses macacos entediados, que se tornou um incêndio. Conforme o tempo passa, ou a sinaleira troca suas cores, ou o expediente encerra, não há quem possa controlar as chamas. Certamente eu não posso. Quando me dei conta da calamidade, eu era muito retardada, muito nariz empinado, muito mais que hoje, muito apegada a uma raiva, pra conseguir efetivamente fazer qualquer coisa. E havia quem me chamasse de inteligente. Eu gostaria de poder dizer para algumas pessoas que me olham como a última cartada, como a segunda vinda de jesus cristo, como o último elo de esperança, que eu poderia fazer algo por elas. Uma grande mentira. E acho que não sou boa em mentir. Hoje são algumas pessoas, antigamente eu não sentia nada por nenhuma. Poderia chamar isso de evolução, mas pra quê?
Você só pode seguir fazendo um trabalho inútil até certo ponto. Mesmo que esse trabalho implique em melhorar vidas que não querem que melhore.
Apago o cigarro na metade. Tem mais, tem sempre mais. Se acaba essa carteira, simplesmente desço e busco outra.
Lembrei daquela vez que fui em uma escola da periferia. O planejamento revelando seus frutos. As crianças reutilizando papel de uma fábrica de calçados. Não tenho raiva delas. Mas é pra se ter. O plano parece esse.
Eu ainda não acredito. Mas e daí?
Humanoides genocidas.
Cabe.
De onde vem uma raiva tão grande?
Semana passada eu estava febril, com dores no corpo. Melhorei.
Peguei a porcaria e sobrevivi.
Mas e daí?
O plano segue o mesmo. Ignorantes safados e falidos. Multidão imbecilizada rangendo os dentes na sua raiva auto justificável, não enxergando mais nada em ninguém, senão os próprios vícios.
Não me fale em deus, por favor. Ele não. Mintam o quanto quiserem, mas não éramos anjos. Nunca fomos.
Nós vimos o que aconteceu com as frases famosas de obediência a deus e sobre deus acima disso ou daquilo. Os gestos infantis de um bando de adolescentes mimados. Falso deus, falso messias, profeta apodrecido. Não fale de deus pra mim que sou mulher, pois só posso te dizer que se sequer essa merda existiu, já tá é morta e sepultada. Se não estiver, eu mesma o mato. De forma parecida com algumas imagens que volta e meia surgem na minha mente de quando mato o presidente. Sonho acordada.
Sorrio.
Morro logo após, obviamente. Onde já se viu matar o herói do brasil.
Não me importo mais em morrer. Eternamente jovem. Louca.
Mas acontece que não importa se eu morrer ou ficar viva.

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