terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Platina


O bom e o ruim de ser um repórter como eu era estar sempre viajando. Eu tinha saudades de casa, mas ao mesmo tempo tinha a oportunidade de conhecer lugares que jamais sonharia, e ainda receber por isso. E quando digo conhecer, é no cerne da coisa, sem programas turísticos, sem guias. Era guiado pelo povo, tinha contato com eles, quase sempre uma grata experiência. É claro que sempre houve muita miséria, ainda mais no norte e nordeste do país, e eu me deparava com todo tipo de pedintes, ciganos, vendedores de artesanato, prostitutas, etc. No começo ficava comovido, principalmente com as crianças, mas depois aprendi a ignorar e criar uma carapaça pra me isolar deles.

Pois foi no interior de Belém, no estado do Pará, que eu encontrei o artesanato indígena mais peculiar de todos. Nas rotineiras viagens que o ofício exigia, não raramente ficávamos hospedados em espeluncas miseráveis, mas éramos bem recebidos. A equipe era formada por mim, o operador de câmera que atendia pela alcunha de Toco, e o nosso motorista, o Gilmar. Gilmar era o mais velho, e não tinha buraco nesse país que ele não conhecesse. Ele mesmo se dizia surpreso por ainda estar vivo, depois de ter se quebrado tantas vezes no trânsito. Por seu conhecimento rodoviário, Gilmar fazia o serviço de motoboy, buscava comida, bebida e qualquer outro passatempo que se usaria durante a estadia. O hotel, bom, chamar aquilo de hotel já é quase um exagero. Uma casa velha de madeira, com muito cupim, várias frestas no assoalho de tabuão, e paredes simples, com mata-junta. Por dentro era pintado de um rosa barato, e as aberturas azuis. Por fora era branco, com o mesmo padrão nas aberturas, e a fachada, "Hotel Tupinambá."

Tudo sairia conforme o normal, não fosse o fato de o Gilmar ter saído uma noite para se acabar nos braços da boemia, e não regressar até o dia claro. Não seria um absurdo, poderia estar num motel ou na casa de alguma mas liberal. Celular desligado. Poderia ter ficado sem bateria, é coisa que acontece. Mas aquelas horas viraram dias, e nosso amigo e colega não dava sinal de vida. Começamos então, o Toco e eu, a tentar refazer seu passos daquela noite. Não era difícil obter informações de um senhor grisalho de um metro e noventa e picas, magro, de pele clara e voz retumbante. Ainda mais no meio de maioria de pele escura e baixa estatura. Começamos a ficar realmente preocupados quando nos alertaram sobre com quem ele havia se envolvido. Provavelmente atrás de diversão sexual, haveria supostamente assediado uma índia jovem, descendente dos Tupinambá. As autoridades foram acionadas, e iniciou-se uma investigação sem muito afinco. Parecia que aquele homens, aqueles oficiais, também tinham medo dos Tupinambás. Cada vez mais angustiados e tristes, começamos a aceitar a ideia da morte do nosso colega.

De volta ao hotel, recebemos a sugestão de deixar o local, o mais rápido possível. Disseram-nos que deveríamos deixar aquilo para a polícia e a família do Gilmar, para nosso bem. E que provavelmente nosso amigo "estaria com eles agora, e lá ficaria". Na minha cabeça Gilmar fora obrigado a casar com a índia, ou foi por vontade própria. Se livrou das amarras da vida urbana cotidiana, e se embrenhou na pureza daquele povo, daquela selva. Entretanto, o semblante dos que lá viviam não dizia isso. Eles tinham um que de pavor, de repugnância. E unanimidade quanto ao silêncio. Não se devia perguntar, porque os Tupinambás não eram muito políticos, digamos.

Decidimos que partiríamos ao amanhecer. Fechariam seis dias desde o sumiço no Gilmar. E àquela noite foi impossível dormir, com tantos temores rondando minha cabeça. Foi então que o serviço de quarto nos ligou: Tupinambás estavam subindo e queriam falar conosco. Morri naquela hora, de pavor e angústia. Toco dormia profundamente, não achei justo acordá-lo. Com mil pensamentos terríveis me turvando as ideias, pensei que poderia precisar me defender. Ao revirar o quarto, para minha agradável surpresa, encontrei no fundo do roupeiro um martelo e um serrote. Alguém bateu à porta. Com minhas ferramentas feitas armas ao alcance da mão, abri vagarosamente a porta do quarto, para espiar a visita e tentar discernir suas reais intenções. Não queria mostrar hostilidade, para não despertar uma reação agressiva de nenhuma das partes. De tão nervoso, tinha os lábios e nariz dormentes.

Para meu alívio, havia uma velha índia e uma criança, que trazia um balaio. A velha calada me observava com desconfiança, enquanto a criança me oferecia peças ornamentais de seu artesanato local. Não eram exatamente belos, mas como a propaganda que me foi feita sobre aquele povo não era das melhores, não ousaria recusar a oferta, pelo preço que fosse. Segundo a criança, eram feitos de ossos de animais mortos que eles encontravam. E que aquela peça que ela me oferecia havia sido feita especialmente para nós, que não éramos dali. Perguntei o valor, e ela disse que era um presente, uma lembrança pra nós. Disse que nosso amigo "estava com eles agora", e que não precisaria me preocupar, ele "estava" lá por causa de sua inteligência e por ter causado admiração entre os Tupinambás. Ao ter em mãos o artesanato, o mais terrível sentimento quase me tirou a consciência e a sanidade. Suei frio e engoli seco, esboçando um sorriso falso, enquanto as índias iam embora. Era impressionante aquele artefato, feito de osso, e pintado com pigmentos naturais.

Mas o mais impressionante de tudo eram as marcas de dentes e os dois pinos de platina inseridos na peça.

3 comentários:

  1. Gosto muito da forma como tu te expressa.
    É simples, de uma forma intensa.

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  2. Bah, obrigado gente! Eu sonhei com isso, não exatamente assim, mas veio de um sonho.

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