sábado, 16 de fevereiro de 2013

A raiva que dói no estômago


Em alguma língua, cliente deve significar inferno. Carniça. Porra. Merda. Certo, é injusto generalizar, mas os bons acabam pagando pelos ruins, já dizia minha mamãe. E lá no restaurante não era diferente. Meu estabelecimento nunca foi fino, na verdade, nem sei se é um restaurante, porque eu sirvo pratos à la carte mas sirvo lanches também, de dia e de noite. Mas sempre foi meu ganha pão, é honesto. Tento juntar uma boa qualidade com preço razoável, e tenho minha clientela. O pessoal do comércio aqui da rua vem comer aqui seguido, e isso seria muito bom não fosse o seu Evaristo.

Evaristo é corretor de imóveis, falso moralista, falso cristão. Desses que torram o saco com essas conversas de que "no meu tempo, as coisas não eram assim". Mas, caro amigo, sinto muito em lhe dizer, mas aquele tempo acabou. O tempo é agora. Evaristo Castro de Lima, ele tem o dom de ser irritante. Irrita com piadas inoportunas, comentários desnecessários sobre o tamanho de minha barba, sobre a cor do balcão. Era incrível que ele ainda era meu freguês, tamanhas eram as críticas ao meu estabelecimento, comida, preço. "Esse espaguete está crú, como sempre", diz o Evaristo. "Não está crú meu amigo, está al dente", respondo eu, toda santa vez. O que mais me irritava era o fato de depender do dinheiro de miseráveis como esse, eu não podia dizer o que pensava. Até porque o que eu pensava não envolvia palavras, mas sim os punhos. Um martelo, talvez. Ano após ano, o ranço daquele desaforo se instalou em minha ideia sobre aquele homem, e toda vez que ele entrava lá, era automático, meu estômago começava a doer.

Eu preferia ouvir gritos de pavor da minha própria mãe do que dar bom dia àquele verme miserável e mesquinho. Mas lá estava eu, de sorriso aberto, cumprimentando-o. "O de sempre, seu Evaristo?", eu perguntei. "E dá pra comer outra coisa? Acho que não...". Ah... imaginem uma faca, uma faca aguda, lentamente deslizando entre as camadas vivas daquele traste. "O senhor que manda, seu Evaristo". Então um dia eu tive um estalo. Acho que foi fadiga. Fadiga de tanto engolir merda daquela saca imunda de carne pútrida e asquerosa que ousam chamar de pessoa. Ou pior, de "seu". Depois de mais uma corriqueira reclamação do meu espaguete eu perguntei à ele: "Escuta aqui homem, tu acha que eu sou o que?" Evaristo mudou o semblante carrancudo para carrancudo surpreso. E eu segui: "Se tu acha tão ruim a minha comida, procure outro restaurante, faça você mesmo, ou pare de me encher o saco, tu não é obrigado a comer aqui". Nisso eu já me tremia de ódio, e então o sujeito conseguiu uma superação, uma evolução na sua própria repugnância. "Eu tenho preguiça de andar até o Bar Biroto, por isso me contento com esse grude". Evaristo atirou o dinheiro no balcão e saiu. Eu, entrei e vi o mundo ficar negro, e uma sensação de que meu estômago estava sendo trabalhado com um maçarico.

Passado esse episódio, um outro fato grotesco ocorreu no meu estabelecimento. O filho da Jurema, o Luan, de cinco anos, de vez em quando ia lá no restaurante. Como ele era gordinho, nunca reparamos na sua barriga. Mas vimos que ele andava jururu, sem ânimo. Num belo dia, aquele moleque desandou a vomitar lá atrás na cozinha. Corri pra ajudar e quase que eu pedi ajuda. O menino estava sofrendo de ascaridíase. E não teve buraco por onde não saiu lombriga daquele pobre coitado. Foi então que eu tive a mais brilhante ideia de toda minha vida. Às pressas, recolhi tudo aquilo, com a mão mesmo, e coloquei num pote, no congelador. Depois disso levei o guri para o hospital. Ele ficou bem. Minha esposa Clarice, que trabalhava comigo, parece que não só percebeu, mas adorou meu plano. E complementou: "Me aguarde mais uns dias, minha regra está por vir".

Eu estava ansioso, até que o grande dia chegou. Seu Evaristo veio comer, e de praxe, pediu o espaguete. Então eu falei que havia elaborado uma receita nova, pensando no que ele me dissera, e ofereci à ele. "Coma Evaristo, e como o senhor vai provar, não precisa me pagar. Apenas me diz se gosta." O homem ergueu as sobrancelhas e sorriu. Não prestou atenção à primeira parte, mas ouviu bem que era de graça. Fui ao congelador e peguei os dois potes, o de "espaguete" e o outro, com o "molho especial". Fervi de leve, afinal não tenho experiência no cozimento de ascaris lumbricoides, e temperei o molho com ervas finas. Uma pitada de sal. Nos escoramos no balcão, minha esposa e eu, e ficamos admirando nosso velho cliente se deliciar com o recheio das entranhas do pobre Luan. Ele demorou um pouco, deu umas três ou quatro garfadas. Clarice e eu caímos na gargalhada, e o homem ficou furioso por virar alvo de piada, e uma piada que ele não estava entendendo. Até que ele começou a olhar para o prato, e entender a situação, viu que aquele cheiro não era saudável. Meu estômago não doeu naquela hora. Meu coração bateu relaxado admirando a expressão de pavor e asco que dominou aquele homem, que agora parecia um bebê, de tanto que chorava e esperneava. Nunca limpei um vômito com tamanha felicidade. Agora vou sentar e esperar os processos, mas nisso vão-se anos até que se resolva algo. Mas não importa, o que importa é que eu fiz com que aquele crápula cometesse um ato canibal. Fiz um verme comer vermes.

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