domingo, 17 de maio de 2009

Ameaça I - O inatingível

A luz daquela manhã ainda era quase escura como a noite. Ahmiad levantou-se em silêncio, deu um beijo na irmã, que dormia, e foi com o pai até a porta. Nas suas costas levava a mochila, com algumas moedas, pena, tinta, um livro vazio, outro cheio de escritas e roupas simples; também seu arco e pouco mais de uma dúzia de flechas. Vestia seu robe cinza claro. Seu cavalo estava pronto do lado de fora. Pensou: “e eu, estarei?” O abraço no pai demorou algum tempo, até que este se desvencilhou de seus braços e, com os olhos, apontou o animal que esperava. Ainda mirou o velho Sombra da Noite por alguns segundos, pensando no tempo em que passariam juntos e como era bonito seu pelo escuro com manchas negras, mesmo tendo passado pelo amanhecer tantas vezes. Ajeitou a bainha do sabre e montou.
Olhou de volta para casa. Viu o que sempre via, mas de um jeito que o fez sentir saudades antecipadamente. A casa não era muito extensa, tinha dois andares. Era uma casa de elfos numa cidade de homens; ficava no chão e tinha paredes sólidas de madeira meio escura, porque estava numa cidade de homens. Na frente, no lado direito (na visão de quem chega) da larga porta havia uma grande janela, sob ela uma floreira com flores claras e incomuns, porque era uma casa de elfos. No segundo andar mais duas janelas, menores que a de baixo, a da esquerda sendo a do quarto de Ahmiad, a da direita, a do quarto de Adamud e da esposa, Érika. O telhado era feito de telhas de barro, escuras e bonitas. De fato, toda a casa era bonita, simples e de bom gosto, como uma casa de elfos numa cidade de homens. O chão era feito com tábuas estreitas e curtas, as paredes internas eram pintadas de branco e, numa delas, na sala, acima da lareira, estava pendurado um grande retrato de Selmone, o patriarca da família, que morreu na guerra. Fora pintado numa pose honrosa, vestindo uma belíssima malha élfica, com a mão direita sobre o punho da espada embainhada na cintura, e a outra segurando o elmo prateado com o desenho de uma meia lua, elmo este que usava em batalha.
A luz do amanhecer dava àquela construção de madeira um ar belo e melancólico, o que fez com que ambos pensassem em coisas vagas e distantes. Talvez lembranças de pessoas que se foram, talvez daquelas que nem vieram.
- Será um longo caminho...
- Será. - depois de alguns segundos silenciosos Ahmiad acrescentou, sem tirar os olhos verdes do nada: - Voltarei logo.
- Voltará na hora certa.
Abaixou a aba do chapéu pontudo. Nesse instante, o sol nascia no horizonte. Ambos observaram o belo momento por um instante silencioso.
- Que o Criador ilumine seu caminho - disse Adamud.
- Que Sua luz se divida sobre todos nós.
Após essas palavras, cutucou o cavalo e partiu, sem pressa ou com medo de chegar logo. Preferiu não falar com seu irmão, até por não saber onde este andava, nem com a madrasta, pois nada havia a lhe dizer, como sempre. Sairia pelo oeste e pelo norte. A poeira não se levantou enquanto os cascos leves de Sombra da Noite pisavam lentamente o chão. Não olhou para as pessoas por quem passava ao sair da cidade, apenas cumprimentou um ou outro conhecido que gritou seu nome. E esses pouco se importaram com sua muda passagem, conversa não lhes faria falta. Mas uma voz o chamou de uma maneira familiar, mesmo soando diferente. Uma voz meio cansada, meio triste e meio distante. Olhou para trás e viu a irmã correndo com os pés delicados nus, os cabelos loiros esvoaçando. Parou e desceu do cavalo. Logo ela o alcançou.
- Partiria sem dizer adeus? - perguntou Alana ofegante, segurando os braços do irmão.
- Dizer adeus me dói, principalmente a você - respondeu Ahmiad.
- Então não vá, não precisaria dizer adeus se não nos deixasse...
- Ficar aqui me faria sofrer ainda mais. Por mais que eu goste daqui e de vocês todos, esse é um lugar que me traz angústia e lembranças as quais não queria ter. Eu preciso ficar um tempo fora, respirar ares mais leves, sentir no rosto um vento fresco de terras longínquas.
- Quanto tempo pretende ficar longe?
- Não sei dizer. Até que eu já possa sorrir novamente, ou até que não tenha mais olhos para chorar - disse Ahmiad enquanto passava suavemente a mão nos cabelos da irmã.
- Suas palavras são tristes e pesadas. Eu sinto tanto... - disse ela segurando a mão fina e de dedos compridos dele.
- Triste e pesada tem sido minha vida. Dessa vez não tenho palavras bonitas para usar no lugar dessas, que são duras e ásperas. Não se contagie pela minha tristeza.
- Mas porque saía em silêncio?
- Não quis acordá-la, estava com uma aparência tão tranqüila enquanto dormia.
- Tolice! Não pode e nem lhe permito partir sem dizer adeus!
- Adeus.

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