terça-feira, 23 de setembro de 2025

Rua da Rosquinha

Aquela rua onde vendia as rosquinhas, uma ladeira seca de terra e vento, escorregadia e boa pra deslizar na descida, ela não existe mais. No lugar onde ficava hoje tem um asfalto duro escuro separando casas altas renovadas, de portões fechados e jardins cuidados por profissionais. A gurizada que pedalava a bici e empurrava de volta pra subir a lomba hoje tá cada um num carro, janela fechada, ouvindo notícia. Sobem e descem com o mesmo esforço, movimentos mecânicos. Na calçada ninguém mais brinca.

A rosquinha foi deixada pra lá, ou talvez virou empreendimento. Será que é um baita negócio, que começou do nada e hoje vende em tonelada?

Embaixo de todas essas ruas tem terra enterrada. Embaixo dessa cidade muita coisa aconteceu e a gente nem sabe, só pode imaginar, desconfiar. E agora tá tudo tapado, exceto por algumas frestas. Quando chove nem precisa muito, alaga facinho apesar das obras e vá valão. Mas falta espaço pra terra respirar, lixiviar. A chuva lava tudo mas o asfalto fica; sujo. O portão fecha automático e na calçada as crianças passam apressadas indo trabalhar, cabeça baixa, passo apertado, procurando não pensar no passado.

terça-feira, 11 de junho de 2024

O Inço

Tuc, tuc, tuc, tic, tuc, tuc
Graças a deus deu uma parada ein, deus me livre aqui ainda tamo com sorte, escapamo, é
Tuc, tuc, tic, volta e meia a enxada erra o inço e acerta o asfalto puro, ou o concreto do meio-fio
Que tristeza toda vida agora isso, onde vamo parar desse jeito, e os político não fazem nada, nada nada
Tuc, tuc, tuc, clap, um estalo diferente ressoa no intervalo das enxadas. Não são palmas, ninguém na rua aplaude a obra deste trabalhadores: um tapa erra o mosquito e acerta a própria perna
Uh diabo, isso tá cheio ein, agora veio dá pra cá essa merda, deus me livre nunca vi tanta água!
O pequeno demônio voa furtivo e ataca de novo em outra parte, indefensável; não chega a ser visto mas sua presença é notada, sentida; cada trabalhador nas ruas se sente sugado sem saber como se defender.
O inço vai sendo partido golpe a golpe, sem pressa, num progresso que quase não se enxerga. Enquanto isso, o ônibus da turma arranca e para mais adiante, lá na esquina.
O inço é derrotado mas só na superfície; é pouca a terra que se enxerga na sarjeta e a maldita raiz desta praga está protegida. Lá embaixo do asfalto e da calçada, ela sobrevive, apesar da sua fragilidade e podridão, apenas por força dessa estrutura que a cerca.
Volta e meia a enxada risca o concreto e o barulho muda o rumo da conversa.
Eu penso sobre deuses e patrões, enquanto não participo da conversa, se é que ela existe, mas observo de longe, alheio. Compartilhamos alguns metros da cidade, alienados uns dos outros.
Sufocados pelo inço que nos cerca, pelo mosquito que nos suga. Nada mais do que arranhando a superfície e sentindo a dor nas costas.
A patrola grunhe, resmunga e ronca rouca do outro lado da rua: é hora de avançar.
Vamo lá, gurizada

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Sobreviver pra viver depois, depois que tudo ficar bem, o momento que nunca virá... Acompanhado por diversos nadas, decorações de palavras bonitas de uma grande câmara de eco, de uma conexão com o vazio. Com nada. Depois de tanto buscar nos únicos lugares errados que restam, grandes desertos a céu aberto repletos de lixo... pessoas como figuras patéticas de miseráveis catadores, terminando de juntar o que sobrou do céu. Pés molhados de ter de caminhar nas próprias lágrimas de lembrar que um dia ouviu que a vida era mais do que humilhação. Mais um episódio de malhação, na academia financeira.
Sobrevivendo enquanto ainda restam as lembranças das vezes que a ficha não caiu. O dia que as lembranças se forem, pode dormir pra não mais acordar.
Esperança. Sobreviver a custo de quê?

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

 

Como não havia quem cuidasse das feridas das tropas, esse fardo obviamente caiu sobre mim. Encontrar o caminho seguro pela floresta, espreitar durante a noite para manter os inimigos longe - ou perto, conforme a conveniência. Até mesmo acalmar os homens de ânimos exaltados, quando a comida era pouca e as noites eram frias. Tudo que ninguém soubesse fazer sobrava para mim.

É o pagamento por querer liderar seu próprio bando, você poderia me dizer. Não estaria errado, claro. Mas a palavra querer talvez não seja a mais exata. Fui jogado nesta vida aventureira por uma catastrófica enxurrada, que praticamente destruiu minha vila natal. Foi quando descobri que meu lugar era aqui fora, onde as coisas podem mudar pela ação humana, e parti, sem um destino traçado.

Éramos poucos, meus companheiros ainda mais inexperientes do que eu. Procurávamos trabalho, aceitando qualquer coisa. Mas muitos se negaram a nos confiar qualquer ordem, diziam que não seríamos bons o bastante, numerosos o bastante.

Nessa terra rasgada pela guerra, brotam e se espalham os piores tipos de malfeitores. Aí nós encontramos a oportunidade de que precisávamos. Trabalho honesto, árduo e perigoso. Pois para cada saqueador acorrentado, outros tantos surgiam correndo atrás das caravanas, infernizando os pobres aldeões que tentam vender, na cidade, o fruto de seu suor e cumprir com suas obrigações. Sim, eles me lembram de casa, da minha velha família. E por isso eu luto com mais gana.

Mas se engana quem pensa que é só por isso que luto. Pois não há algo como cavalgar um cavalo bem treinado, vestir um colete quente e reforçado, batalhar em um torneio enquanto gritam seu nome na multidão. Sim, eu sei aproveitar as boas coisas da vida. E é também por isso que eu luto.

Hoje, está conosco uma moça que cuida dos prisioneiros; contratei um senhor que entende de geografia e sabe até ler mapas. Um capitão organiza nossa parede de escudos e já tenho o dinheiro separado para contratar um cirurgião de verdade. Cansei de costurar o couro dos homens, inclusive o meu próprio.

Me recordo que antigamente eu não sabia sequer o que falar antes de uma batalha. Apenas rangia os dentes e apertava o arco ou a lança até os dedos ficarem roxos. Por isso, a cada vez que me pego entretendo os vigias em torno da fogueira ou ouço a minha própria voz berrando aos homens o que fazer, conduzindo-os a mais uma vitória, percebo que finalmente entendi que o destino é uma besteira e que eu sei muito bem como abrir o meu caminho.

E onde os ventos estiverem espalhando o cheiro de medo e de morte, de glória e lucro, lá estarei eu, com meu estandarte tremulando.



por Joca Pastoril, senhor apenas de si, buscando seu lugar em um velho mundo

 

 


 


sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Tanto blues

Não é possível falar, é impossível sentir. Não é razoável esperar assimilar qualquer sensação que seja. É nossa vocação de símia imitação a razão desse defeito. Defeituosa como essa frase que passou e o que passou? A palavra defeito se traduz de muitas formas erradas.
Ah, e os bichinhos que vivem no olho da gente nos ensinam a lição desde a primeira vez que os percebemos: qualquer perseguição resultará em fuga. Treinados pela geração anterior, somos macacos astrais que repetem os truques aprendidos. Volta e meia errando, aí é bom que dá uma ilusão de veracidade.
Nenhum supermercado satisfará nossos corações, dos incapazes de compreender nossa própria caixa de miolos. O que se passa ali dentro?
Ocupamos nosso tempo fazendo algo, algum trabalho, alguma atividade. Em geral por vontade alheia, por pura razão de sobrevivência.
Não é necessário aprendermos a entender como funciona essa cabeça peluda, então apenas alguns ilustres terão essa ambição e algum mísero sucesso parcial.
Mas ah! Sorte que alguns de nós deixaram para trás uns encaroçados versos; e de vez em quando nalguns deles se molda um significado que faz tanto sentido para um pobre símio cinzento como eu. Como um biscoito da sorte, um pastel de recheio surpresa. Aquele quentume bom que vem de saber que alguém esteve por aí pensando na mesma coisa; e que pelo menos um de nós soube o que fazer com isso.



quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Ideal

Fica em pé, passa um cafezinho
Bota um rock pauleira na caixinha
Mas tem que ter bons graves
A vida é muito grave, gravíssima
A vida é terminal
Deguste como melhor puder
Acompanhado por um docinho, ideal


sexta-feira, 3 de março de 2023

Give me the wine you keep the bread

Não me parece muito surpresa que o sangue se assemelhe a determinadas bandeiras, símbolos e tudo o mais. O coração como um propulsor dele e um símbolo para as mais criativas bobagens que se possa imaginar. O amor, o romance, a emoção. Caldo mental e ideário para uma grande quantidade de material cultural para o bem ou para o mal.
Para alguns a bandeira nunca deve ser vermelha.
Com bastante frequência percebo como é fácil o estalar da língua, o movimento de uma boca cheia de dentes, esse movimento mecânico, se fazer arauto de frases chavões, eventualmente cheias de preconceito e mesquinhez, sem qualquer reflexão íntima acerca do que nos cerca. Íntima, sincera...
Se mão ferramenta não dá carinho, que dirá a boca ferramenta. Manipulada por vontades aquém.
Contra a vontade, esmagada entre as engrenagens apodrecidas de uma coisa grande. Não sei falar de outra forma, uma coisa grande. Digna de um terror cósmico.

Aí vem a igreja, o padre e uma porção de lixo. Pretenso semblante de liderança. Dizer o que é e o que não. O que se deve ou não. Pegar uma figura incerta, perdida nos anais da história, fazer uma confusão como quem usa uma máquina de fumaça, usá-lo como símbolo de alguma pureza doentia, pendurado em um pau, sangrando e perto da morte. Sangue esse representado com o vinho.
Até o padre bebe o vinho. O sangue de cristo. O cara que sempre me pareceu legal mas o fã clube me ataca desde a catequese. Catequista. Só de me lembrar, já dá um asco. Um bando de velhas azedas, repetindo o som dos grilhões que carregam consigo. Nunca me convenceram. Tentaram me reduzir à meretriz pecadora, indigna da benção de deus, aquele outro canalha, machista, sádico e enlouquecido. Afinal a mulher de nada vale, competindo com deus no milagre da criação. Onde já se viu? Ousadia, rebeldia, criticidade. Nada disso vale, pois faz com que acabe com o conto muito bem estruturado pra arrastar a humanidade a uma existência de miséria.
Ironicamente na época do catecismo eu comecei a menstruar. O tabu social. Até hoje mal falado.
Comecei a sangrar tal qual jesus, porém pelos motivos errados, segundo o ensinamento.
Sentia vir direto do ventre uma intuição infalível. Foi o que me norteou a adolescência até uma relação conflituosa com tudo ao meu redor.
Quando aprendi um pouco sobre de onde vem deus e a igreja, tudo meio que começou a fazer sentido.
A europa. Nome até bonito, elegante. Nome de uma lua que deve ser linda, se um dia fosse possível eu descobrir. Um continente que reflete exatamente todos os problemas da dita religião. Os reflete para o resto do mundo, uma grande mancha de lixo, um esgoto a céu aberto, uma putrefação entranhada em ideais miseráveis, racistas, criminosos, saqueadores, golpistas. Tudo isso com uma maquiagem da melhor qualidade, pra fazer parecer um reduto civilizatório, de boas práticas e exemplos de conduta.
Uma riqueza sim. Riqueza extraída de outros povos, através da violência e da guerra. Através de colonizações destrutivas, opressoras. Se a mentira que deus fez o homem a sua imagem e semelhança fosse verdade, eu poderia dedicar a eles um elogio: seriam, além de tudo isso, honestos. Dentro da visão desse deus aí. De mãos dadas. Provando o fato histórico de ser o berço do fascismo.
Bela contribuição! Que grande benevolência!
Mas sou obrigada a dizer que os povos assassinados por essa conduta, tendem a discordar.
Esse deus está morto.

Eu gosto de uma boa taça de vinho e um cigarro na outra mão. O que mais posso querer?
Entre uma tragada e outra do cigarro, quase corto o filtro. Os dentes cerrados de angústia, de nervoso e de raiva.
O pão eu não quero, fique com ele. O corpo não me interessa, apenas o sangue. Em reflexo à paisagem urbana, que suga toda a energia de quem a sustenta. Os mais pobres. Os que vem de baixo. E os que nunca vão conseguir seguir dicas de empreendedorismo de palco e histerias sobre fábulas incríveis de meritocracia e esforço próprio. Não. Sua própria carne mostra a mentira escancarada. Seus corpos mostram.
Portanto o pão eu não quero.

O sangue desce e a chuva se torna vermelha.

Me entristece saber-me ciente de misérias profundas e incontáveis, escancaradas por onde ando, em calçadas, em notícias e camas de hospital. Creio que se contasse as estrelas do céu, seriam poucas em comparação.
Que tipo de mulher enlouquecida e vazia me tornei ao longo do tempo?
O jornal do almoço mais uma vez serve o prato principal. Ao molho de palavras chave. Seriam notas frutadas, mas nesse caso são 'notas de posicionamento', pedidos de não-desculpas, culpando as vítimas por sua situação desumana causada pelas ações sanguessugas de gente merda. Se o prato principal é a escravidão mais uma vez, o que será da sobremesa?
Povo amortecido e castigado por uma existência insana infelizmente não é tão difícil de agradar.

Há um limite em algum lugar em algum tipo de horizonte.
As mentiras começam a saturar.
O mar das finanças está podre há tempos.
Deus está morto e fedendo.
A jangada de pedra que navega nesse esgoto já não mais suporta tanto tempo vagando.
Será que ela tem data de vencimento?
A dor do chicote que estala é sempre disfarçada de alguma bobajada sobre mercado, política ou individualismo.
Uma constatação ainda salva, como um grito ensurdecedor a quem quer que seja que não consiga por uma razão ou outra enxergar nada: Olha pra isso e me diz que funciona! Está lançado o desafio!
E então, separemos aqueles que já morreram por completo, por dentro e por fora.
Não dá mais.