Tuc, tuc, tuc, tic, tuc, tuc
Graças a deus deu uma parada ein, deus me livre aqui ainda tamo com sorte, escapamo, é
Tuc, tuc, tic, volta e meia a enxada erra o inço e acerta o asfalto puro, ou o concreto do meio-fio
Que tristeza toda vida agora isso, onde vamo parar desse jeito, e os político não fazem nada, nada nada
Tuc, tuc, tuc, clap, um estalo diferente ressoa no intervalo das enxadas. Não são palmas, ninguém na rua aplaude a obra deste trabalhadores: um tapa erra o mosquito e acerta a própria perna
Uh diabo, isso tá cheio ein, agora veio dá pra cá essa merda, deus me livre nunca vi tanta água!
O pequeno demônio voa furtivo e ataca de novo em outra parte, indefensável; não chega a ser visto mas sua presença é notada, sentida; cada trabalhador nas ruas se sente sugado sem saber como se defender.
O inço vai sendo partido golpe a golpe, sem pressa, num progresso que quase não se enxerga. Enquanto isso, o ônibus da turma arranca e para mais adiante, lá na esquina.
O inço é derrotado mas só na superfície; é pouca a terra que se enxerga na sarjeta e a maldita raiz desta praga está protegida. Lá embaixo do asfalto e da calçada, ela sobrevive, apesar da sua fragilidade e podridão, apenas por força dessa estrutura que a cerca.
Volta e meia a enxada risca o concreto e o barulho muda o rumo da conversa.
Eu penso sobre deuses e patrões, enquanto não participo da conversa, se é que ela existe, mas observo de longe, alheio. Compartilhamos alguns metros da cidade, alienados uns dos outros.
Sufocados pelo inço que nos cerca, pelo mosquito que nos suga. Nada mais do que arranhando a superfície e sentindo a dor nas costas.
A patrola grunhe, resmunga e ronca rouca do outro lado da rua: é hora de avançar.
Vamo lá, gurizada
terça-feira, 11 de junho de 2024
O Inço
segunda-feira, 29 de abril de 2024
Sobreviver pra viver depois, depois que tudo ficar bem, o momento que nunca virá... Acompanhado por diversos nadas, decorações de palavras bonitas de uma grande câmara de eco, de uma conexão com o vazio. Com nada. Depois de tanto buscar nos únicos lugares errados que restam, grandes desertos a céu aberto repletos de lixo... pessoas como figuras patéticas de miseráveis catadores, terminando de juntar o que sobrou do céu. Pés molhados de ter de caminhar nas próprias lágrimas de lembrar que um dia ouviu que a vida era mais do que humilhação. Mais um episódio de malhação, na academia financeira.
Sobrevivendo enquanto ainda restam as lembranças das vezes que a ficha não caiu. O dia que as lembranças se forem, pode dormir pra não mais acordar.
Esperança. Sobreviver a custo de quê?
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024
Como não havia quem cuidasse das feridas das tropas, esse fardo obviamente caiu sobre mim. Encontrar o caminho seguro pela floresta, espreitar durante a noite para manter os inimigos longe - ou perto, conforme a conveniência. Até mesmo acalmar os homens de ânimos exaltados, quando a comida era pouca e as noites eram frias. Tudo que ninguém soubesse fazer sobrava para mim.
É o pagamento por querer liderar seu próprio bando, você poderia me dizer. Não estaria errado, claro. Mas a palavra querer talvez não seja a mais exata. Fui jogado nesta vida aventureira por uma catastrófica enxurrada, que praticamente destruiu minha vila natal. Foi quando descobri que meu lugar era aqui fora, onde as coisas podem mudar pela ação humana, e parti, sem um destino traçado.
Éramos poucos, meus companheiros ainda mais inexperientes do que eu. Procurávamos trabalho, aceitando qualquer coisa. Mas muitos se negaram a nos confiar qualquer ordem, diziam que não seríamos bons o bastante, numerosos o bastante.
Nessa terra rasgada pela guerra, brotam e se espalham os piores tipos de malfeitores. Aí nós encontramos a oportunidade de que precisávamos. Trabalho honesto, árduo e perigoso. Pois para cada saqueador acorrentado, outros tantos surgiam correndo atrás das caravanas, infernizando os pobres aldeões que tentam vender, na cidade, o fruto de seu suor e cumprir com suas obrigações. Sim, eles me lembram de casa, da minha velha família. E por isso eu luto com mais gana.
Mas se engana quem pensa que é só por isso que luto. Pois não há algo como cavalgar um cavalo bem treinado, vestir um colete quente e reforçado, batalhar em um torneio enquanto gritam seu nome na multidão. Sim, eu sei aproveitar as boas coisas da vida. E é também por isso que eu luto.
Hoje, está conosco uma moça que cuida dos prisioneiros; contratei um senhor que entende de geografia e sabe até ler mapas. Um capitão organiza nossa parede de escudos e já tenho o dinheiro separado para contratar um cirurgião de verdade. Cansei de costurar o couro dos homens, inclusive o meu próprio.
Me recordo que antigamente eu não sabia sequer o que falar antes de uma batalha. Apenas rangia os dentes e apertava o arco ou a lança até os dedos ficarem roxos. Por isso, a cada vez que me pego entretendo os vigias em torno da fogueira ou ouço a minha própria voz berrando aos homens o que fazer, conduzindo-os a mais uma vitória, percebo que finalmente entendi que o destino é uma besteira e que eu sei muito bem como abrir o meu caminho.
E onde os ventos estiverem espalhando o cheiro de medo e de morte, de glória e lucro, lá estarei eu, com meu estandarte tremulando.
por Joca Pastoril, senhor apenas de si, buscando seu lugar em um velho mundo